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Keb Darge / Cut Chemist Lost and Found – Rockabilly and Jump Blues

2007
BBE / Popstock!


Caso Harvey Keitel não tivesse deixado recado no gravador de chamadas de Quentin Tarantino, informando-o de que estava disposto a produzir e a integrar o elenco do agora clássico Cães Danados, o mundo poderia ter perdido um cineasta revolucionário e ganho um genial DJ dotado de um extenso conhecimento sobre a pop e o seu verso mais obscuro das décadas de 50, 60 e 70. O público no Festival Cannes, tal como os restantes privilegiados que viram o filme em cinema, percebeu, ao escutar os primeiros acordes de baixo de “Little Green Bag†de George Baker Selection, que a coolness da cena inicial de Cães Danados, em que o gang trajado a rigor desfila em câmara lenta, dependia principalmente da trama insinuada pelo tema musical escolhido.

Desde aí, a eficiência de grande parte das sequências-chave, que formaram o canône Quentin Tarantino e o estabeleceram como autor, esteve directamente ligada à capacidade de surpreender de êxitos musicais arredados da memória pop entretanto reavivada: fosse “Bang Bang (My Baby Shot Me Down)†de Nancy Sinatra e o modo nostálgico como antecipa a vingança em série de Kill Bill ou, mais recentemente, o quase homicida lapdance protagonizado por Vanessa Ferlito em Deathproof e a marca que deixa num slasher movie que seria mais vazio sem isso. Afinal, qual é a real utilidade de John Travolta num filme quando não pode exibir os seus dotes de dançarino? Já se percebeu que não serve como anjo, fenómeno sobredotado ou vilão cientológico. Também Lost and Found – Rockabilly and Jump Blues não é adequado a todas as disposições ou particularmente inovador e, mesmo assim, consegue reunir todas as condições para, a partir daqui, ser amuleto obrigatório no porta-luvas dos mais ousados aficionados de rockabilly.

É provável que sejam muitos aqueles que um dia foram seduzidos pela ideia de prolongar a estadia no restaurante temático Jack Rabbit Slim’s, onde se sucede a dança imortal de Pulp Fiction. A escuta de Lost and Found – Rockabilly and Jump Blues ajuda à materialização dessa fantasia e reúne um concentrado de empolgamento rock que serve como antídoto para o embaraço das gentes mais “quadradas†e quebrar os silêncios desconfortáveis de que falava Mia Wallace no tal Jack Rabbi Slim’s. Os anfitriões de tal empreitada de rock pioneiro, principalmente oriundo das paragens mais sulistas da América do Norte, dão pelo nome de Keb Darge e Cut Chemist (o duplo corresponde um disco à vontade de cada um): o primeiro é mensageiro absoluto do deep funk, amplamente exposto nas compilações concebidas pelo próprio, o segundo fez de Quality Control um dos momentos de topo na carreira dos Jurassic Five, no lugar do excepcional DJ de hip-hop que, pelo que agora se percebe, estará certamente disposto a farejar o bafio a uns quantos caixotes de rock de colheita 54 para avolumar a sua fonoteca de breaks.

Em comum com Quentin Tarantino, calcula-se que Keb Darge e Cut Chemist mantenham uma obsessiva vontade de tomar contacto com todo o tipo de música produzida em eras douradas (do mais popular ao mais obscuro) e um apurado gosto que os leva a escolher, para a compilação, música com um infalível travo vintage (desde a rendição do standard “Fever†assinada por Carlos & The Bandidos até algumas espreitadelas às origens do surf rock). Entre temas que se limitam a persuadir o corpo até à dança do momento e elaborados relatos ofegantes de existências arruinadas por tentações que vestem renda, Lost and Found – Rockabilly and Jump Blues resulta numa espécie de Nuggets apropriado ao gosto de rockabillies com um fraquinho pelo cinema de Tarantino.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
27/03/2008