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The Cinematic Orchestra Everyday

2002
Ninja Tune


A surpresa. De um convite do Porto 2001, a banda de Jason Swinscoe apresenta o disco sucessor de “Motionâ€, um dos álbuns mais badalados de 1999. A “encomenda†da Capital da Cultura à Cinematic Orchestra foi a de compor a banda sonora para acompanhar o filme de Dziga Vertov “Man With The Movie Camera†de 1929. O que significa isto? Significa que a partir de um convite do Porto 2001 se criou algo com vida que depois evoluiu e ganhou forma de disco. Acaba por ser um dos poucos projectos com “selo†português a ganhar inevitável exposição fora de portas. Apesar de todo o disco ser inspirado no filme, apenas a imprensa portuguesa deu destaque a esse feito. Ainda andamos à procura de um forma eficiente de dar rendimento mediático a coisas com berço português no pacto de incumbência.

A Cinematic Orchestra vive, invariavelmente, do seu maestro, e é de estranhar que J. Swinscoe tenha um passado nos Crabladder, uma banda ligada a hardcore e punk. Mas foi mesmo aí que começou a sua aprendizagem, acabando por introduzir o Jazz nesse mundo. É com a entrada na Ninja Tune em 1997 que tudo, ou quase tudo, muda. Foi nessa editora – mais ligada à dança que propriamente ao Jazz – que colaborou com temas para a compilação “Ninja Cuts 3â€. A Cinematic Orchestra acabaria por surgir e lançar em 1999 o seu disco de estreia, com um arrojo e criatividade que teve um impacto colossal.

Se por um lado somos confrontados com um Jazz mais “clássico†do que em “Motionâ€, é facto que a Cinematic Orchestra continua a estar ligada à música de dança e a assombrar frequentemente os seus escaparates. E compreende-se porquê. O disco surge de um meio de corte e colagem muito utilizado na música de dança moderna: dão-se aos músicos um conjunto de samples sobre os quais eles improvisam e tocam os seus instrumentos. O que brota daí é de novo samplado, tendo em atenção que aqui houve uma influência directa do filme “Man With The Movie Cameraâ€. O disco acaba por ter uma maior coesão que o seu anterior porque as faixas foram escritas não só por Swinscoe mas também por Phil France, baixista da banda. Um efeito claro dessa colaboração é o facto de aqui a Cinematic Orchestra soar mais como banda. A música tornou-se mais minimal mas continua cinemática (não é esse o objectivo óbvio da orquestra?), e contemplamos “Man With the Movie Camera†como uma das melhores pérolas Beat-Acid Jazz devedoras do Jazz, música electrónica e bandas sonoras que a música contemporânea nos deu.

A juntar a tudo isto temos ainda que falar de duas participações muito especiais. A primeira, Fontella Bass (“All That You Give†e “Evolutionâ€), mulher do falecido Lestar Bowie e uma das maiores divas da soul norte-americana, que dá ao disco o toque espiritual e sentimental que ele exige. A segunda participação é a de Roots Manuva, rapper e poeta, a deferir ao álbum uma vertente mais Trip-Hop que não se esgota nem se conforma na música que encerra.

Os devaneios e divagações continuam a ter como matéria-prima o Jazz, mas não se consomem nem se perdem apenas nessa escola. As divagações deixam de ser fechadas, passam a ser livres e épicas, e tornam-se consequências de uma aprendizagem simultaneamente rica e aformoseada. A orgânica domina mais, e Fontella Bass dá ao disco o golpe de génio que ele precisava. Há quem diga que “Everyday†é um candidato a clássico que dá uma visão luminosa da música. É certo e sabido que os clássicos fazem-se com o tempo, mas o tempo por certo tenderá a decretar isso.


Tiago Gonçalves
tgoncalves@bodyspace.net
06/01/2003