A ideia com que se fica após assistir ao DVD que acompanha Overture: Live in Nippon Yusen Soko 2006 é de que os Ghost poderão muito facilmente ser responsáveis pelo mais memorável espectáculo musical do mundo, num tempo em que os Van Halen se encontram fora de competição. Embora essa fosse já certeza cimentada pela variedade incrÃvel de registos integrados no comemorativo (CD + DVD) Chronicles: 1984-2004, Overture - composto pelas versões audio e vÃdeo da mesma actuação - supera o que se acreditaria insuperável e volta a ser maior que a vida, e provavelmente maior do que o suporte do bolso comum que pode bem frustrar as esperanças de quem quisesse viajar até ao Japão para testemunhar uma ocasião tão desigual quanto esta - registada num armazém abandonado em Yokohama que chegou albergar navios de grande porte antes de passar a ser uma sala vocacionada para as artes. O melhor será mesmo começar a amealhar uns cobres. Isto porque os Ghost não possuem a capacidade de Maomé, significando isso que os aficionados deverão deslocar-se aos cenários mais propÃcios para tomarem parte num baptismo psicadélico deste calibre, já que são nulas as probabilidades do inverso acontecer em condições tão perfeitamente favoráveis.
Apostado em garantir a simulação possÃvel das sensações próprias da experiência in-loco, Overture não tem mesmo mãos a medir no esbanjar completo de toda a riqueza e substância que obtém a banda de Masaki Batoh quando dá por si no seu habitat natural (templos, ruÃnas, espaços grandiosos) que constituiriam arrepiante pesadelo para a equipa de produção e membros de um qualquer vulgar agrupamento de vedetas a prazo. Desafiando todas as logÃsticas possÃveis, os membros dos Ghost por aqui não mantêm qualquer contacto visual entre si ou com o público – ficam entregues aos seus instrumentos numa posição que os deixa camuflados por cortinas onde é projectado, em “câmara (muito) lentaâ€, um ciclónico marasmo visual multicolorido que pareceria vanguardista se apresentado numa futura EXPO 2020.
Durante hora e meia, psicologicamente equivalente a um transe sem medida possÃvel, os Ghost comunicam telepaticamente entre si sem nunca somarem à improvisação conjunta um excesso que seja. Serve esse calculismo para tornar a ocasião num ritual mais densamente climático do que propriamente performativo – uma comunhão mantida através de um fôlego mútuo que oxigena a música a partir do que essa colhe ao espaço e vice-versa. Os Ghost, tal como representados em Overture, são sábios guardiões de tudo o que é salubre, lúcido, resplandecente e - somadas todas as partes - incrivelmente visionário (mesmo que os sÃmbolos apontem até uma incerta era ancestral).
No branco da tela, ficam marcados os rostos intrigados identificados entre o público, uma incessante orgia de luz e sombras, caracteres japoneses projectados nos tais cortinados, um assombroso banquete visual que representa dignamente a herança do realizador Masaki Kobayashi (famoso pelas suas adaptações de ghost stories). No ouvido, ficam cravados os freak-outs cortantes verificados à euforia que, a espaços, se apodera da guitarra wah-wah, de um piano infiltrado, dos saxofones e de tudo o resto (inclusive de alguém que, trajando uma máscara de gás, sova os pratos de uma bateria como se a sua respiração dependesse disso). No sensÃvel coração de melómano, por fim, fica tatuada a quase-certeza de que, quando em casa, os Ghost serão muito provavelmente capazes de cumprir um espectáculo a todos os nÃveis soberbo e avassalador – capazes de um milagre como já não se via desde The Wall dos Pink Floyd ou monstro sagrado parecido.