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Victor Gama Periférico

2007
Sonic Arts Network


Quem senão Victor Gama para conduzir o levantamento das várias expressões musicais situadas no exterior de uma redoma ocidental que, a bem da sua estabilidade, filtra convenientemente o que entra e sai através da sua linha fronteiriça? O perfil do artista luso-angolano aponta-o como a pessoa ideal para conceber a compilação Periférico – Sounds From Beyond the Bubble, documento determinado a incluir os que, à partida, ficam excluídos de participar no trânsito de informação e cultura que desenvolve para si próprio o eixo ocidental. Presta-se, assim, tempo de antena a criativos estigmatizados com a sombra de um terceiro mundo, contudo bem capazes de elaborar música com a competência e engenho de um primeiro.

Sem que a iniciativa adquira um carácter humanista ou panfletário, países como o Líbano, Irão, Peru, Brasil ou a Colômbia passam, através dos respectivos representantes, a integrar um válido quadrante de músicas do mundo, apesar de habitualmente constarem apenas como pontos de escala num roteiro negligenciado e pouco consumível em termos de marketing. Aos ouvidos de alguém habituado a conviver, mesmo que acidentalmente, com a omnipresença da pop de origem anglo-saxónica, Periférico soa como prepotente amostra de música distintamente “fora” e esteticamente rebelde, nem que seja por partir de indivíduos com necessidades próprias, muitas vezes condicionadas por cenários de grave instabilidade política (“Taht it ankad” do Palestiniano Boikutt, por exemplo, é hip-hop perspectivado como discurso de alguém que se encontra entre os escombros de uma habitação). Motivações diferentes propiciam música diferente - dificilmente o conforto de casa, carro e férias resulta no mesmo tipo de arte que parte de quem tem a estrutura da sua moradia constantemente ameaçada.

A experiência acumulada por Victor Gama – cuja valiosa obra tem um informativo portal em http://www.pangeiainstrumentos.org/ - deixa-o antecipadamente preparado para elevar Periférico acima do que poderia ter sido uma fácil colectânea de world music marginal. Victor Gama tem sido tudo menos fácil ou simplista nos conceitos que tem vindo a adoptar como estimulantes para a sua criação musical e “cartografia” exaustiva da que colhe aos outros (sobretudo em Angola). O autor de Pangeia Instrumentos - marco editado na Rephlex de Aphex Twin apesar de não incluir electrónica - tem, em termos muito resumidos, promovido a música como forma capaz de absorver as pistas e regalias oferecidas pela interacção com o meio ambiente e tem também admitido a utilização dos mais avançados recursos tecnológicos no tratamento do som produzido pelos Pangeia Instrumentos que constrói como auto-didacta (atento aos antecedentes históricos da matéria que maneia no seu oficio). O próprio Victor Gama participa por três vezes – em nome próprio, ao lado do cantor Dembo e integrado no Odantalan Collective – no alinhamento de Periférico e prova que as mais excitantes exportações de Angola não se limitam apenas às suas vogas actualmente muito badaladas – há por aqui arrojo experimental capaz de quebrar e reinventar moldes vários da herança étnica, existe dinamização natural suficiente ao preenchimento de quatro páginas bem medidas na revista Wire.

À audição mais aprofundada de Periférico sobressaem também as semelhanças mantidas entre alguns manifestos de punho erguido (“Tabla Dubb no.16” de Hassan Khan, principalmente) e a retaliação radical tornada “música” pelo britânico Muslimgauze que, nas centenas de discos concebidos durante a reclusão que manteve em vida, pouco o nada fez por suavizar o seu repúdio por Israel (na sua ofensiva contra a Palestina) ou moderar o peso tóxico e desconcertante das suas produções violentamente físicas. Em Periférico, por efeito da despreocupação generalizada em atrair um público alvo, nada aparenta a necessidade de se adequar a determinada sensibilidade, seja através de uma pacificação ou do alisamento de conteúdos que, logo à nascença, foram dotados de rudes características acústicas. Assim permanecem, convertendo as chagas do meio adverso em vantajosas capacidades de guerrilha. Ana Romano, por exemplo, utiliza sons captados (em 1969) ao cultivo e produção de cocaína e emprega-os de um modo militante que opta por conservar a sujidade na música em desrespeito para com a tendência de auto-limpeza por parte dos sons tecnológicos e digitais da actualidade. O mundo passa bem sem os Rage Against the Machine quando ainda existem vigilantes dispostos a tão inteligentes formas de conduzir a revolução através do som.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
14/02/2008