É surpreendente dar conta de que por vezes basta activar um conceito inteligente para alumiar uma perspectiva até aà desconsiderada ou pouco questionada. A partir de uma selecção que privilegiou a consistência e validade da matéria, a And / OAR, selo prestigiado de Seattle, conseguiu, através de uma dupla compilação, provocar uma reavaliação da relação a manter com o cinema do mestre japonês Yasujiro Ozu - conhecido também como o poeta do quotidiano, tal era a sua tendência para retratar a rotina da classe média japonesa do seu tempo, frisando aspectos globais como a circularidade e o carácter transitório da vida, e recusando, sempre que possÃvel, colocar em prática acessórios ocidentais como a moral fácil e artifÃcios melodramáticos.
Ao longo dos cinquenta e quatro filmes que compõem o seu muito apreciado (e imitado) cânone, Yasujiro Ozu manteve-se fiel aos mesmos temas e estrutura narrativa utilizada. Sobre a última, sabe-se que progredia através de diálogos e outras vulgares ocorrências familiares, e que - respeitando a resistência do público - abria espaço a momentos reflectivos através da inserção pontual de pillow shots (conhecidos também como espaços intermediários). A funcionalidade dos pillow shots assentava principalmente na necessidade de assinalar a passagem do tempo de um modo neutro e desvinculado de um só personagem – por regra, consistia simplesmente num plano único de uma paisagem campestre ou industrial, um estendal de roupa sujeita à vontade do vento, o registo circunstancial da circulação de comboios ou barcos.
A And / OAR reconheceu perspicazmente o valor dos pillow shots como pontos de referência passÃveis de interpretação livre por parte de diversos artistas sonoros - levando isso a que distribuÃsse por algumas dezenas desses estetas um generoso número de pillow shots, encorajando a que a imagem atribuÃda fosse considerada como parte do filme a que pertence. O resultado materializou-se na compilação Hitokomakura, que, além dos exercÃcios reunidos, contém, em cada um dos seus discos, um ficheiro PDF que corresponde cada pillow shot a seu dono e, assim, permite uma mais completa contextualização de tudo o que por aqui desfila.
A partir dos múltiplos matrimónios instigados por Dale Lloyd (patrão da And / OAR e participante directo em Hitokomakura), descobre-se então o germinar de outros enquadramentos lógicos que poderiam, porventura, passar despercebidos até aqui. Serve isso para esclarecer que Ozu dedicava meticuloso cuidado à s suas composições visuais tal como à s sonoras - sendo habitual escutar aos seus filmes passagens que somam ou isolam o cantar de pássaros, o ruÃdo de transportes e o burburinho constante de uma localidade habitada (gomos de uma mesma roda dos sons comuns). Hitokomakura esmera-se por demais em prestar elegia a essa noção de que Ozu era, além do celebrado poeta do quotidiano, também um estudioso do som e do seu enquadramento na vida de cada dia. É evidente que isso cativa estudiosos das propriedades do som como Taku Sugimoto, Toshiya Tsunoda ou Marc Behrens – esses que, entre outros, se servem do mote para, à sua maneira, elaborarem um diário metódico directamente inspirado pelo tal pillow shot. A partir de field recordings e instrumentos acústicos, obtêm-se postais naturalistas que nem sequer deixam de parte a harmonia zen-budista parcialmente presente no cinema de Ozu (essa perspectiva é nitidamente constatável nas participações de Yoshio Machida e do Aono Jikken Ensemble).
Contudo, cada levantamento verificado é inevitavelmente hipotético. Hipotético porque, na vida tal como no cinema de Ozu (o corpo e o seu espelho), tudo se encontra submisso a uma relativização a que não há escape possÃvel. Hitokomakura acaba por ser um objecto de um valor imenso, pelas tais pistas que deixa soltas em relação à composição sonora, enquanto subestimada extensão do génio de Ozu. Além disso, repare-se que funciona em pleno mesmo quando à revelia desse paralelo – assim dita o seu desdobramento em paisagens perfumadas e divisões (templos) propÃcias ao apuramento de uma estabilidade espiritual superior. Fica-se pelo excelente, mas...