PodĂamos resolver isto com apenas uma frase. Trocávamos depois as letras; conferĂamos diferentes entonações Ă s vogais pondo, qual Ăndio Apache, as mĂŁos Ă frente da boca, e repetĂamos o processo atĂ© estarmos fartos. Seria o nosso grito de guerra; dirĂamos tratar-se de uma qualquer reza xamĂŁ pĂłs-moderna, muito boa para quem sofre de asma – era, afinal, uma boa desculpa para permanecermos mais cinco minutos na cama. Mas o que diria essa frase? Podia ser: NĂŁo, ainda nĂŁo foi desta que Robert Wyatt lançou um disco abaixo da marca da genialidade, marca essa que o acompanha desde os tempos em que era baterista dos Wilde Flowers, desde o tempo em que a casa dos seus pais, a Wellington House, acolhia todo o tipo de pessoas, desde Daevid Allen e a sua enorme colecção de discos de jazz (formaria com Wyatt, os Soft Machine, e, anos depois, por causa de um problema com um visto que o reteve em França, os nĂŁo menos impressionantes Gong), ao escritor 'beat' William S. Burroughs e o seu romance, The Soft Machine (1961).
Seria nos Soft Machine que Wyatt aperfeiçoaria o seu grito apache, melhor descrito pelo prĂłprio como uma corneta humana (outra que nĂŁo a de Louis Armstrong, evidentemente), ao passo que nos Matching Mole, já livre das amarras estilĂsticas impostas pelo teclista Mike Ratledge, era já a sua consciĂŞncia politica que falava mais alto – alargavam-se as fronteiras do movimento/corrente estilĂstica Rock-in-Opposition, que teve em grupos como os Art Bears, Etron Fou Lelouban, Henry Cow, Samla Mammas Manna, Stormy Six e Thinking Plague, alguns dos seus maiores porta-estandartes. Em jeito de 'bookmark' lançamos dois exemplos máximos: Wyatt tem o seu melhor momento enquanto 'corneta humana', no álbum epĂłnimo dos Hatfield and the North, de 1974 – ouçam a faixa “Calyx”, um exemplo maior da estĂ©tica de Canterbury; e Nothing Can Stop Us (1982) Ă© o seu álbum mais politizado, um exercĂcio brilhante feito quase todo ele de versões de canções populares de várias partes do mundo que espelham, todas elas, a uniformidade no meio da diferença, as aspirações, mas tambĂ©m os lamentos, comuns a todos os povos.
Editado em Setembro deste ano, Comicopera inscreve-se, porém, num outro registo (ainda que, como veremos mais tarde, se estabeleçam ligações): é a sequela perfeita de Shleep (1997) e Cuckooland (2003), álbuns em que Wyatt e Alfie (Alfreda Benge, sua esposa e parceira de crime) voltam a receber terceiros, também conhecidos por suspeitos do costume: Annie Whitehead, Brian Eno (esteve nos Roxy Music, até que as turras com Bryan Ferry o levaram a enveredar por uma carreira a solo, editando em 1973, o seu espantoso álbum de estreia, Here Come The Warm Jets - diz-se que Ferry comeu os cotovelos), Chucho Merchan, Gilad Atzmon, Jamie Johnson, Paul Weller (esteve nos/foi os The Jam), Phil Manzanera (Roxy Music) e Yaron Stavi. A equipa completar-se-ia com Beverley Chadwick, David Sinclair (Caravan, Matching Mole), Del Bartle, Mônica Vasconcelos, Orphy Robinson e Seaming To.
Menos denso que os outros dois tomos desta, atĂ© agora, espĂ©cie de trilogia, Comicopera encontra-se dividido em trĂŞs blocos: “Lost in Noise”, “The Here and The Now” e “Away with the Fairies”. Wyatt já antes havia dividido Cuckooland em duas partes. Em entrevista ao semanário Expresso, Wyatt afirmou que “Os CDs sĂŁo demasiado grandes. AtĂ© Mozart tem sinfonias com 35 minutos. Um CD sĂł devia ter 20 minutos. É como um banquete com oito pratos, principalmente um disco com cantores. Mesmo os melhores tornam-se monĂłtonos”. PorĂ©m, se a divisĂŁo de Cuckooland servia apenas, segundo Wyatt, “para o ouvinte ir tomar chá ou poder desistir de ouvir o resto do disco”, as trĂŞs partes de Comicopera oferecem as diferenças temáticas e estilĂsticas que conferem ao álbum a forma de uma Ăłpera cĂłmica, embora o nĂŁo seja de facto; a designação poderá ser melhor entendida enquanto expressĂŁo aglutinadora dos temas aĂ retratados: o amor e a perda; a Inglaterra (religiĂŁo e guerra); e a persistĂŞncia face Ă adversidade. Ou seja, Ă© a prĂłpria vida que se assemelha a uma Ăłpera cĂłmica, a uma Ăłpera tragicĂłmica.
O estilo operático Ă© ainda realçado pela repetição de motivos musicais: “Just as You Are” repete-se em “Fragment”; “A Beautiful War” em “A Beautiful Peace”. Estabelecem-se, desta forma, pontes temáticas entre as trĂŞs partes que, estruturalmente, ajudam a defini-las enquanto movimentos de uma mesma peça. No entanto, e porque Wyatt Ă© um pouco avesso Ă s convenções (terá dito a Mike Ratledge, ainda enquanto baterista dos Soft Machine, que nĂŁo desejava aprender a ler mĂşsica porque, no dia em que o fizesse, este podia dizer-lhe exactamente o que fazer), há em “Away with the Fairies” um ligeiro desvio da lĂłgica estrutural da obra. Porque o inglĂŞs Ă© considerado por Wyatt como a lĂngua oficial da opressĂŁo, a terceira parte de Comicopera Ă© quase inteiramente cantada em lĂnguas 'dominadas', naquilo que Ă© um quase regresso ao que já antes havia feito em Nothing Can Stop Us – e se neste, a revolução cubana tinha o seu galhardete em “Caimanera”, em Comicopera, assumindo as honras do fecho, encontramos “Hasta Siempre Comandante”.
Como podĂamos resolver isto com apenas uma frase, uma frase que, com alguma sorte, nos daria o direito de mais tarde poder dizer-vos que bem avisámos, estamos certos que Wyatt nĂŁo ficará por aqui: tambĂ©m o prĂłximo álbum estará, certamente, pejado de gĂ©nio – e, quem sabe, talvez contenha a “Internacional” com as letras trocadas; as vogais com diferentes entoações e um homem pondo, qual Ăndio Apache, as mĂŁos Ă frente da boca.