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Robert Wyatt Comicopera

2007
Domino


Podíamos resolver isto com apenas uma frase. Trocávamos depois as letras; conferíamos diferentes entonações às vogais pondo, qual índio Apache, as mãos à frente da boca, e repetíamos o processo até estarmos fartos. Seria o nosso grito de guerra; diríamos tratar-se de uma qualquer reza xamã pós-moderna, muito boa para quem sofre de asma – era, afinal, uma boa desculpa para permanecermos mais cinco minutos na cama. Mas o que diria essa frase? Podia ser: Não, ainda não foi desta que Robert Wyatt lançou um disco abaixo da marca da genialidade, marca essa que o acompanha desde os tempos em que era baterista dos Wilde Flowers, desde o tempo em que a casa dos seus pais, a Wellington House, acolhia todo o tipo de pessoas, desde Daevid Allen e a sua enorme colecção de discos de jazz (formaria com Wyatt, os Soft Machine, e, anos depois, por causa de um problema com um visto que o reteve em França, os não menos impressionantes Gong), ao escritor 'beat' William S. Burroughs e o seu romance, The Soft Machine (1961).

Seria nos Soft Machine que Wyatt aperfeiçoaria o seu grito apache, melhor descrito pelo próprio como uma corneta humana (outra que não a de Louis Armstrong, evidentemente), ao passo que nos Matching Mole, já livre das amarras estilísticas impostas pelo teclista Mike Ratledge, era já a sua consciência politica que falava mais alto – alargavam-se as fronteiras do movimento/corrente estilística Rock-in-Opposition, que teve em grupos como os Art Bears, Etron Fou Lelouban, Henry Cow, Samla Mammas Manna, Stormy Six e Thinking Plague, alguns dos seus maiores porta-estandartes. Em jeito de 'bookmark' lançamos dois exemplos máximos: Wyatt tem o seu melhor momento enquanto 'corneta humana', no álbum epónimo dos Hatfield and the North, de 1974 – ouçam a faixa “Calyx”, um exemplo maior da estética de Canterbury; e Nothing Can Stop Us (1982) é o seu álbum mais politizado, um exercício brilhante feito quase todo ele de versões de canções populares de várias partes do mundo que espelham, todas elas, a uniformidade no meio da diferença, as aspirações, mas também os lamentos, comuns a todos os povos.

Editado em Setembro deste ano, Comicopera inscreve-se, porém, num outro registo (ainda que, como veremos mais tarde, se estabeleçam ligações): é a sequela perfeita de Shleep (1997) e Cuckooland (2003), álbuns em que Wyatt e Alfie (Alfreda Benge, sua esposa e parceira de crime) voltam a receber terceiros, também conhecidos por suspeitos do costume: Annie Whitehead, Brian Eno (esteve nos Roxy Music, até que as turras com Bryan Ferry o levaram a enveredar por uma carreira a solo, editando em 1973, o seu espantoso álbum de estreia, Here Come The Warm Jets - diz-se que Ferry comeu os cotovelos), Chucho Merchan, Gilad Atzmon, Jamie Johnson, Paul Weller (esteve nos/foi os The Jam), Phil Manzanera (Roxy Music) e Yaron Stavi. A equipa completar-se-ia com Beverley Chadwick, David Sinclair (Caravan, Matching Mole), Del Bartle, Mônica Vasconcelos, Orphy Robinson e Seaming To.

Menos denso que os outros dois tomos desta, até agora, espécie de trilogia, Comicopera encontra-se dividido em três blocos: “Lost in Noise”, “The Here and The Now” e “Away with the Fairies”. Wyatt já antes havia dividido Cuckooland em duas partes. Em entrevista ao semanário Expresso, Wyatt afirmou que “Os CDs são demasiado grandes. Até Mozart tem sinfonias com 35 minutos. Um CD só devia ter 20 minutos. É como um banquete com oito pratos, principalmente um disco com cantores. Mesmo os melhores tornam-se monótonos”. Porém, se a divisão de Cuckooland servia apenas, segundo Wyatt, “para o ouvinte ir tomar chá ou poder desistir de ouvir o resto do disco”, as três partes de Comicopera oferecem as diferenças temáticas e estilísticas que conferem ao álbum a forma de uma ópera cómica, embora o não seja de facto; a designação poderá ser melhor entendida enquanto expressão aglutinadora dos temas aí retratados: o amor e a perda; a Inglaterra (religião e guerra); e a persistência face à adversidade. Ou seja, é a própria vida que se assemelha a uma ópera cómica, a uma ópera tragicómica.

O estilo operático é ainda realçado pela repetição de motivos musicais: “Just as You Are” repete-se em “Fragment”; “A Beautiful War” em “A Beautiful Peace”. Estabelecem-se, desta forma, pontes temáticas entre as três partes que, estruturalmente, ajudam a defini-las enquanto movimentos de uma mesma peça. No entanto, e porque Wyatt é um pouco avesso às convenções (terá dito a Mike Ratledge, ainda enquanto baterista dos Soft Machine, que não desejava aprender a ler música porque, no dia em que o fizesse, este podia dizer-lhe exactamente o que fazer), há em “Away with the Fairies” um ligeiro desvio da lógica estrutural da obra. Porque o inglês é considerado por Wyatt como a língua oficial da opressão, a terceira parte de Comicopera é quase inteiramente cantada em línguas 'dominadas', naquilo que é um quase regresso ao que já antes havia feito em Nothing Can Stop Us – e se neste, a revolução cubana tinha o seu galhardete em “Caimanera”, em Comicopera, assumindo as honras do fecho, encontramos “Hasta Siempre Comandante”.

Como podíamos resolver isto com apenas uma frase, uma frase que, com alguma sorte, nos daria o direito de mais tarde poder dizer-vos que bem avisámos, estamos certos que Wyatt não ficará por aqui: também o próximo álbum estará, certamente, pejado de génio – e, quem sabe, talvez contenha a “Internacional” com as letras trocadas; as vogais com diferentes entoações e um homem pondo, qual índio Apache, as mãos à frente da boca.


Samuel Pereira
an_american@paris.com
05/12/2007