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Jeffrey Lewis 12 Crass Songs

2007
Rough Trade / Popstock!


Aos poucos, Jeffrey Lewis merecerá uma estátua de bronze que homenageie o seu mais que franco esforço empregue em tudo o que o afaste do ideal folk que, por correspondência de clichés, se associa automaticamente ao pacato homem branco de cabelo algo comprido com uma guitarra acústica ao nível do umbigo (descrição possível do próprio). Poderá a ironia tornar inglória essa demanda e o mais certo é que o nome de Jeffrey Lewis permaneça agrilhoado à divisão reservada a discos folk – em todo o caso, todos os esforços foram empreendidos pelo mesmo no sentido de contornar essa imagem do vegetativo baladeiro de utopias. O rapaz já dedicou duas músicas à desmistificação do proveito sensorial que se obtém com a ingestão de ácidos, relativiza constantemente a sua pertinência musical ao assumir-se também como cartoonista (sendo muito convincente nessa actividade), integrou como ponta-de-lança a compilação Antifolk vol. 1 armada pelos (extintos) Moldy Peaches, quando o timing ainda era o adequado para encapsular o que se ia passando nesse sentido musical em certa parte de Manhattan, Nova Iorque (cidade presente na celeridade verbal característica de Jeffrey Lewis).

Posto isto, o surgimento de um disco totalmente composto por versões recuperadas ao sólido legado dos Crass, colectivo britânico de punk fervorosamente hostil em relação a toda a ética e política que não a sua, representa uma vincada afirmação por parte de alguém sem papas na língua, mesmo que, na tentativa de subjectivar a seriedade do projecto, Jeffrey justifique a tarefa como resultante de uma obsessão incontrolável – conforme se vê na incluída banda-desenhada elaborada pelo próprio - e prometa doar metade dos lucros obtidos com o disco a instituições aprovadas pela banda a que presta ode por aqui. Não será necessária a cumplicidade de um piscar de olho para entender que não existe mais brutal ataque iconoclástico do que aquele que usufrui dos recursos visados para favorecer uma mensagem que constitui a antítese do meio que a veicula. O processo é mais simples do que parece.

Ou seja, 12 Crass Songs é de excepcional valor curioso enquanto objecto que inverte as funções de uma folk tipicamente utilizada na propaganda de sensações estaticamente brandas, colocando-as ao serviço de um discurso punk politicamente intemporal no seu convite a todo o tipo de resistência que contrarie o domínio tirânico de um poder altivo. A partir das letras reproduzidas neste corajoso tributo, constata-se que a independência mais autêntica e militante dos Crass permitia-lhes a uma ferocidade reaccionária muito mais crua do que a exercitada por uma banda punk de final da década de 70 que integrasse o catálogo das majors EMI ou CBS (que possuía a Columbia e Epic). Embora fosse rotativa a autoria das letras no caso dos Crass, 12 Crass Songs serve como ponto a favor dos partidários do baterista Penny Rimbaud como o mais infalível dos escribas envolvidos no clássico Penis Envy: a prova está na naturalidade que se sente à revitalização de temas de protesto tão cruciais como “I Ain’t Thick, It’s Just a Trick”, “Banned From the Roxy” e “Big A, Little A” (quase standards no seu género). Jeffrey Lewis confia acertadamente na frescura do sangue que nunca chegou a secar à guelra destes malditos clássicos anárquicos e toma-a como ponto de partida para a pândega comunal onde, contando com o contributo dos amigos mais próximos, converte a frontalidade eléctrica dos Crass numa folk atipicamente eufórica nos coros que juntam vozes masculinas e femininas, rodeando-os de guitarras acústicas irrequietas e outros instrumentos desviados das suas utilidades mais pacifistas.

Por esta altura poderá já alguém ter colocado a jeito a questão habitualmente dirigida a Mark Kozelek a que não escapa também 12 Crass Songs: qual é a quantidade de real suor dispendido por alguém num disco exclusivamente dedicado a versões? Frise-se, em resposta a isso, que Jeffrey Lewis efectuou toda a apropriação reformulando grande parte das estruturas originais, adicionando instrumentos inexistentes no universo Crass (violinos?!), adornando tudo isso com um personalizado artwork que é argumento suficiente para convencer um coleccionador a quebrar o mealheiro. Além de que é louvável o esforço de quem transforma o hino ateu “I Ain’t Thick, It’s Just a Trick” num coro de catequese, tendo o cuidado suplementar de substituir o nome de Sara Farah Fawcett pelo de Sarah Jessica Parker (sex symbols nas suas respectivas eras). Tudo isto facilita o esbranquiçar dos sorrisos e o palpite de que, algures, também John Peel – confesso entusiasta do músico aqui na berlinda – estará a obter um enorme gozo a 12 Crass Songs, consistente e improvável prego assente no humorístico caixão que Jeffrey Lewis tem vindo a construir para que nele descanse a folk mais sisuda e estéril.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
23/11/2007