Aos poucos, Jeffrey Lewis merecerá uma estátua de bronze que homenageie o seu mais que franco esforço empregue em tudo o que o afaste do ideal folk que, por correspondĂŞncia de clichĂ©s, se associa automaticamente ao pacato homem branco de cabelo algo comprido com uma guitarra acĂşstica ao nĂvel do umbigo (descrição possĂvel do prĂłprio). Poderá a ironia tornar inglĂłria essa demanda e o mais certo Ă© que o nome de Jeffrey Lewis permaneça agrilhoado Ă divisĂŁo reservada a discos folk – em todo o caso, todos os esforços foram empreendidos pelo mesmo no sentido de contornar essa imagem do vegetativo baladeiro de utopias. O rapaz já dedicou duas mĂşsicas Ă desmistificação do proveito sensorial que se obtĂ©m com a ingestĂŁo de ácidos, relativiza constantemente a sua pertinĂŞncia musical ao assumir-se tambĂ©m como cartoonista (sendo muito convincente nessa actividade), integrou como ponta-de-lança a compilação Antifolk vol. 1 armada pelos (extintos) Moldy Peaches, quando o timing ainda era o adequado para encapsular o que se ia passando nesse sentido musical em certa parte de Manhattan, Nova Iorque (cidade presente na celeridade verbal caracterĂstica de Jeffrey Lewis).
Posto isto, o surgimento de um disco totalmente composto por versões recuperadas ao sĂłlido legado dos Crass, colectivo britânico de punk fervorosamente hostil em relação a toda a Ă©tica e polĂtica que nĂŁo a sua, representa uma vincada afirmação por parte de alguĂ©m sem papas na lĂngua, mesmo que, na tentativa de subjectivar a seriedade do projecto, Jeffrey justifique a tarefa como resultante de uma obsessĂŁo incontrolável – conforme se vĂŞ na incluĂda banda-desenhada elaborada pelo prĂłprio - e prometa doar metade dos lucros obtidos com o disco a instituições aprovadas pela banda a que presta ode por aqui. NĂŁo será necessária a cumplicidade de um piscar de olho para entender que nĂŁo existe mais brutal ataque iconoclástico do que aquele que usufrui dos recursos visados para favorecer uma mensagem que constitui a antĂtese do meio que a veicula. O processo Ă© mais simples do que parece.
Ou seja, 12 Crass Songs Ă© de excepcional valor curioso enquanto objecto que inverte as funções de uma folk tipicamente utilizada na propaganda de sensações estaticamente brandas, colocando-as ao serviço de um discurso punk politicamente intemporal no seu convite a todo o tipo de resistĂŞncia que contrarie o domĂnio tirânico de um poder altivo. A partir das letras reproduzidas neste corajoso tributo, constata-se que a independĂŞncia mais autĂŞntica e militante dos Crass permitia-lhes a uma ferocidade reaccionária muito mais crua do que a exercitada por uma banda punk de final da dĂ©cada de 70 que integrasse o catálogo das majors EMI ou CBS (que possuĂa a Columbia e Epic). Embora fosse rotativa a autoria das letras no caso dos Crass, 12 Crass Songs serve como ponto a favor dos partidários do baterista Penny Rimbaud como o mais infalĂvel dos escribas envolvidos no clássico Penis Envy: a prova está na naturalidade que se sente Ă revitalização de temas de protesto tĂŁo cruciais como “I Ain’t Thick, It’s Just a Trick”, “Banned From the Roxy” e “Big A, Little A” (quase standards no seu gĂ©nero). Jeffrey Lewis confia acertadamente na frescura do sangue que nunca chegou a secar Ă guelra destes malditos clássicos anárquicos e toma-a como ponto de partida para a pândega comunal onde, contando com o contributo dos amigos mais prĂłximos, converte a frontalidade elĂ©ctrica dos Crass numa folk atipicamente eufĂłrica nos coros que juntam vozes masculinas e femininas, rodeando-os de guitarras acĂşsticas irrequietas e outros instrumentos desviados das suas utilidades mais pacifistas.
Por esta altura poderá já alguĂ©m ter colocado a jeito a questĂŁo habitualmente dirigida a Mark Kozelek a que nĂŁo escapa tambĂ©m 12 Crass Songs: qual Ă© a quantidade de real suor dispendido por alguĂ©m num disco exclusivamente dedicado a versões? Frise-se, em resposta a isso, que Jeffrey Lewis efectuou toda a apropriação reformulando grande parte das estruturas originais, adicionando instrumentos inexistentes no universo Crass (violinos?!), adornando tudo isso com um personalizado artwork que Ă© argumento suficiente para convencer um coleccionador a quebrar o mealheiro. AlĂ©m de que Ă© louvável o esforço de quem transforma o hino ateu “I Ain’t Thick, It’s Just a Trick” num coro de catequese, tendo o cuidado suplementar de substituir o nome de Sara Farah Fawcett pelo de Sarah Jessica Parker (sex symbols nas suas respectivas eras). Tudo isto facilita o esbranquiçar dos sorrisos e o palpite de que, algures, tambĂ©m John Peel – confesso entusiasta do mĂşsico aqui na berlinda – estará a obter um enorme gozo a 12 Crass Songs, consistente e improvável prego assente no humorĂstico caixĂŁo que Jeffrey Lewis tem vindo a construir para que nele descanse a folk mais sisuda e estĂ©ril.