Todos reconhecemos que o hype que se cria em torno de um músico ou produtor nada facilita o processo criativo do mesmo. Talvez por isso, a superação do registo debutante é frequentemente uma dificuldade nata que tem na pressão um inimigo que corrompe o esforço que procura novos horizontes. E admitia-se que, amiúde, na falta de melhor entendimento para a necessidade de um novo caminho se opte por um trilho paralelo que conduza a música para uma realidade alternativa mas sem rupturas substanciais com o passado. Talvez se entenda como uma continuação, uma fuga da arte para um terreno pantanoso que permite o reconhecimento natural de percursos anteriores enquanto o tempo prepara novos azimutes.
No caso de Burial seria de esperar uma curiosidade ampliada e um entusiasmo exagerado em torno de Untrue. Admita-se, também, que a tarefa de suceder o álbum homónimo editado no ano passado não era tarefa fácil para quem assumiu uma posição de ruptura evidente com o status quo da música de dança electrónica. O próprio Burial admitiu numa entrevista recente essa mesma dificuldade de superar o material que calmamente criara entre 2000 e 2005: â€I've just been trying to get back to why I wanted to make tunes in the first place. The first one got slightly out of where it belonged, and I found it a bit difficult to just block things out and make tunes in a low key way again…â€
Então como poderá ser encarado este segundo capitulo na vida de Burial? Com naturalidade ou com desconfiança? Cada cabeça será livre de procurar o significado para as novas ideias da forma mais conveniente já que Untrue permite varias leituras que vão desde o aproveitamento dos pressupostos iniciados em Burial à paralisia do verdadeiro seguimento dos primeiros trabalhos. Em análise profunda, e diga-se de boa verdade, Untrue não provoca o mesmo choque que o seu antecessor. Nem seria de esperar que a ruptura fosse muito evidente em tão pouco tempo. Untrue não difere substancialmente no conteúdo e na forma, antes procura aperfeiçoar as técnicas de produção com rebordos vocais mais luminosos e geometrias 2-Step mais evidentes. E nada disso soará mal nesta música que se mantém desusada no escalão do dub e repleta de marcas únicas de autor.
Com experiência adquirida, Burial produz um disco conceptual que simultaneamente procura pensar o futuro sem ignorar a matéria-prima que levou a sua música a ser elogiada por diversos quadrantes. O tom melancólico subsiste, mas sem repetições: as vozes soul, soberbas, deslizam tristemente pelo tempo num lamurio que adquire novas dimensões, as melodias reluzem uma beleza pós-apocaliptica e angustiada, os estalidos do vinil preenchem o espaço com inquietação, os baixos informes rugem com invulgar força vulcânica e as texturas rÃtmicas, longe dos paradigmas do dubstep, invocam o falso prazer fÃsico e hedionista da pista de dança.
Com Untrue, Burial devolve com eloquência, e num tom ainda mais sedutor, a essência que nos apresentou há um ano e explora com entusiasmo o que a noite obscura e claustrofóbica de Burial não permitia de livre vontade. Ou seja, e procurando uma metáfora que ilustre todo o quadro criativo, se o disco de apresentação representava o universo urbano escuro, soturno e sem esperança, Untrue exibe os primeiros tons da alvorada - numa lenta fuga ao fusco fantasmagórico -, recupera os primeiros sentidos depois da ressaca rave e restitui a confiança num futuro que se julgava perdido no cataclismo inevitável. Nesse prisma a capa não deixará de fazer perfeito sentido quando sugere alguma bonança na breve pausa para um café de um vulto mergulhado no desgosto. E se extrairmos prazer "religioso" dessa imagem pesarosa, não será vergonhoso admitir que Burial produz mais um disco sumptuoso, não obstante a bem aventurada e vaidosa redundância que aqui tem todos os motivos para continuar a existir.