A compilação temática efectuada por David Cotner em Otherness merece um grau de interesse que tem vindo a ser sinalizado com os vários ensaios que o californiano tem dedicado principalmente à música feita à margem do óbvio, sem que isso implique a recusa total da cultura popular, que chega a cativar a atenção do ensaísta. É possível tomar contacto com uma parte representativa dos textos de David Cotner na residência mantida na LA Weekly (alinhada aqui) e nas participações ocasionais na muito recomendável publicação online Paris Transatlantic (a conhecer aqui). Não faltam ideias a alguém que, em meados dos anos 90, propôs um método – conhecido em inglês por literalism - em que encorajava à produção de música a partir da representação física dos vários elementos de composição (referindo, como exemplo disso, a hipótese de alguém desenhar letras no em frente de um theremin). O próprio expõe em Otherness o seu método com “I Think the Limite Should Be (Three Minutes)”, enigmática faixa em andamento invertido, que não oferece grandes esclarecimentos, mas que comporta uma enorme dose de manipulações.
Contudo, e excepcionando esse e mais um par de exercícios menos convincentes, Otherness é de uma validade enorme enquanto levantamento do que de mais representativo se produz num limiar musical distante de toda a terra firme. De acordo com Cotner, a Otherness representa não ser-se jovem, mas também não ter chegado ainda à idade adulta, a ausência súbita do som constante de um motor, tudo aquilo que se situa no espaço imediatamente inferior ao planeta Terra. Com a sua selecção, o colaborador da LA Weekly pretende essencialmente expor exercícios dificilmente identificáveis como musicais a uma primeira escuta, teorias aplicáveis que ainda não obtiveram o estatuto de dogma (persistentemente contrariado por aqui), tentativas arrojadas de quem se manifestou primeiro e só muito mais tarde reparou que isso poderia ser alvo de juízo.
Enquanto observatório de um limbo musical, Otherness aponta quase sempre a sua preferência na direcção das facetas mais ocultas retratadas a nomes majestosos: os Faust conhecem direito a referência dupla na companhia de dois colaboradores diferentes, o visionário Karlheinz Stockhausen vê “3x Refrain 2000” ser limitado a um excerto de sete minutos, Z’EV surge numa elegia em modo drone dedicada a Arthur Lee dos Love. Além disso, tem a atenção ganha qualquer objecto que conte com um testemunho de Lee Ranaldo (guitarrista dos Sonic Youth) em que o próprio expõe os motivos que o levaram, em “Shibuya Displacement”, a reaproveitar uma mensagem transmitida nos altifalantes do metro de Shibuya, em Tóquio, para suscitar uma ideia de deslocação ao reproduzir a mesma em Nova Iorque. As revelações não se ficam por aqui. Os Indian Jewelry são justificadamente promovidos à nova out-music norte-americana com a inclusão do êxtase sujo de “Lost My Sight” (que já concluía o fabuloso Invasive Exotics) e Michael Prime detalha num artigo o processo meticuloso adoptado na sua ode experimental às propriedades benéficas dos cogumelos, através de uma ideia recuperada a uma frase de um dos episódios que John Cage incluiu em rodapé no seu obrigatório livro Silence. Otherness é manual de peso para quem tencione aventurar-se por este lusco-fusco categoricamente documentado por um David Cotner a manter debaixo de olho.