Assim: um pé e depois o outro, ambos nus, sobre uma rocha que, de quando em quando, recebia as ondas de um mar cuja imensidão o seu olhar media. Atrás de si, as roseiras bravas. O cheiro doce que delas emanava confundia-se com o eterno desdobrar das ondas, com um sol de final de tarde, com a aragem própria de um Setembro ainda recente. Alongou mais uma vez os olhos pelo mar e notou que estava só. Viu ao longe uma famÃlia de focas a desenhar-se contra o céu, acima das águas, desaparecendo pouco depois e ressurgindo adiante. Reconheceu então que uma mulher nunca está só quando olha o mar.
Inquietou-se depois perante a ideia de que teria algo para fazer; não a casa que estava limpa, e também tinha comida no frigorÃfico suficiente para uma semana. Deixou-se ficar. Não havia nada nem ninguém à sua espera. Partiu quando já só uma réstia de dourado planava sobre as águas, apercebendo-se apenas no caminho de casa do real fundamento da sua inquietação: não sabia o que fazer até à chegada da hora em que o cansaço a levaria a procurar a cama. Não voltaria a rever os filmes antigos que a tinham acompanhado durante os nove anos que entretanto haviam passado sobre a edição de Taming the Tiger, e tão pouco esperava encontrar conforto nos livros que conhecia de cor. Encontrava-se sozinha; Chaplin e Bergman haviam levado Kipling e Yeats a tomar um copo. Sentou-se por isso ao piano. Os seus dedos principiaram a arrancar dele padrões que exprimiam na perfeição aquele final de tarde. E porque nada mais tinha com que se inquietar (- A casa está limpa, e tenho comida no frigorÃfico suficiente para uma semana), decidiu prosseguir. Nasceram ao todo sete padrões diferentes, um para cada dia da semana, aos quais chamou de “One Week Last Summerâ€. Deve ter fumado um cigarro a seguir. Havia terminado a parte ‘durante os nove anos que entretanto haviam passado’.
Provavelmente não o sabia ainda. O contar dos dias era longo e Joni Mitchell havia anunciado a sua irrevogável saÃda de cena com Travelogue (compilação, 2002). No entanto, quando recebeu um telefonema de Jean Grand-Maitre, director artÃstico do Ballet de Alberta, era quase certo que as possibilidades se haviam tornado em génese. Sabia-o agora. Grand-Maitre falou-lhe da eventual realização de Dancing Joni (mais tarde rebaptizado de The Fiddle and the Drum), um bailado que teria por base algumas das suas canções. Joni gostou da ideia e subiu a parada: não era apenas à s canções que iria regressar; ocupar-se-ia também da mise en scène. Pegou para isso em algumas telas que tinha planeado expor em breve e juntou-lhe duas canções: “If†e “If I Had a Heart I'd Cryâ€. Shine era agora uma evidência: «Eu já estava a escrever o álbum que seria o bailado completo, mas apenas o acabei agora, pelo que o Jean não teria tempo de o coreografar, tendo, porém, incluÃdo esses dois temas», revelava Mitchell à edição de Abril da revista The Word.
Seguiu-se a materialização. Editado no passado mês de Setembro, Shine marca o regresso de Mitchell à s inquietações polÃtico-sociais – largamente evidenciadas no álbum Dog Eat Dog (1985), e em canções como “Turbulent Indigo†(Turbulent Indigo, 1994), “Banquet†(For the Roses, 1972) e “The Fiddle and the Drum" (Clouds, 1969) –, que agora se vêem assentes em frases musicais onde a forma é quase inexistente, e onde a voz, profunda, se acha num misto de ira e esperança. Por vezes, as melodias não são mais do que panos de fundo sobre os quais proliferam palavras que se desdobram entre o real e o imaginário, obrigando o ouvinte a ligar os pontos entre sugestão e realidade.
“This Placeâ€, por exemplo, parece lidar com a história de um urso que, uma vez por outra, ronda os caixotes do lixo à procura de comida, uma imagem que poderia servir de reforço a “One Week Last Summerâ€, quando na realidade nos remete para a diminuição dos habitats naturais; a balada “Strong and Wrong" poder-se-ia encaixar na veia romântica pela qual Mitchell é mais conhecida mas, no entanto, frases como «Onward Christian soldiers...» logo se apressam a encaminhar o ouvinte para a religião enquanto fomentadora da guerra, para a troca do amor espiritual e romântico por valores menos laudáveis. Ao enveredar por esses desdobramentos, Mitchell parece querer instigar o ouvinte à participação cÃvica mas, a forma como o faz limita consideravelmente o impacto da mensagem. As letras raramente saem do registo panfletário – “Ifâ€, cujo texto se serve de um poema de Rudyard Kipling, é a grande excepção – e existe uma separação demasiado exacta entre conceitos tão difusos como o “bem†e o “malâ€. Joni Mitchell sempre primou pelas letras na primeira pessoa, canções sobre um universo individual que, porém, espelhavam outros universos, outras unicidades. Mas o que era verdade – assim o entendemos – para canções que abordavam, não as largas avenidas, mas as lúgubres esquinas do amor romântico, deixa de o ser quando o objecto retratado extravasa as fronteiras do pessoal. Perdoar-se-ia, contudo, este passo pejado de ingenuidade – são coisas que se perdoam a quem, talvez ainda embutido do espÃrito da década de sessenta, conserva os sonhos da juventude –, não fosse a qualidade destes textos ser manifestamente inferior à dos textos incluÃdos em álbuns anteriores. Neste ponto, “Shine†é, de facto, um rude golpe para quem, até agora, seguia a velha máxima que dizia que os álbuns de Mitchell se lêem primeiro e ouvem depois.
Resta-nos, em jeito de consolo, o brilhantismo dos temas “One Week Last Summer†e “Night of the Iguanaâ€; o momento em suspenso que é “Shineâ€; a audácia de “Hana†(talvez o momento esteticamente mais próximo de Dog Eat Dog); e a certeza de que uma Joni Mitchell em baixo de forma continua, ainda assim, a situar-se muito para além dos seus pares.