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Vashti Bunyan Some Things Just Stick in Your Mind

2007
Fat Cat / Flur


A justificada repescagem que abonou Vashti Bunyan motivou a que uma nova geração de aficionados mais ponderadamente se decidisse por uma dada atitude, quando exposto pela primeira vez a um músico até aí incógnito. Nunca se sabe qual é o próximo alvo de um culto prestigiado e vale sempre a pena manter longe de agentes de erosão os discos predilectos actualmente incompreendidos ou pouco estimados pela maioria. A aura entretanto formada em torno de Vashti Bunyan também ilumina e premeia a teimosia de quem não descansou de relatar maravilhas acerca do radiante Just Another Diamond Day, primeiro álbum da cantora britânica, que passou despercebido aquando do seu lançamento e que, aos poucos, foi surgindo nas bocas de Devendra Banhart e Stephen Malkmus.

Os restantes contornos desse revivalismo já foram repetidos dezenas de vezes e os mesmos podem encaixar exactamente aqui, após breve pesquisa pelo nome (por parte de quem ainda não conhece a saga por inteiro). Importa mais agora referir que toda a lenda canonizada pela aclamação tardia de Just Another Diamond Day encontra uma espécie de prequela na dupla compilação Some Things Just Stick in Your Mind, vistoria compreensiva e contextualizada - pelas notas que acompanham o disco - de (praticamente) todo o material – singles e demos – que permanecera esquecido numa temporada de despertar artístico prévio à transposição para disco do tal dia diamantino.

Em primeiro lugar, saúde-se a inteligência de quem optou por dividir Some Things Just Stick in Your Mind, quando a sua duração total podia até ser incluída num só disco. As duas faces da mesma moeda Vasthi oferecem revelações dispares entre si e não há como fechar os olhos ao facto do valor documental do primeiro disco só fragilizar o conteúdo mais acessório do segundo. Além de cumprir viagem por entre singles lançados e outros cancelados (equivocadamente, percebe-se hoje), a primeira rodela prova que as contrariedades sofridas por Vashti Bunyan são decisivas no sentido que tomou a sua carreira. Repare-se no fosso que existe entre a pop grandiosa de “Some Things Just Stick in Your Mind†(1965) e o intimismo plácido de “Wishwanderer†(1967), que mais denúncia as marcas folk que se haveriam de fixar ao nome da musa inglesa sem que ela nunca as reclamasse. A primeira foi escrita por Mick Jagger e Keith Richards, alegadamente entusiastas de Bunyan, e atribuída à própria por meio do manager dos Rolling Stones, Andrew Loog Oldham, que foi figura determinante nas primeiras tentativas de internacionalizar aquela voz límpida, que se revelava um fenómeno expectante do momento certo para singrar. Percebe-se que a recusa por parte do grande público é fatal para que a cantora britânica se veja forçosamente privada da luxúria orquestral (que adorna os primeiros singles editados pela Decca e Columbia) e, numa fase posterior, se ajuste à ideia de que a sua carreira passaria mais pela contenção e aceitação de que bastaria voz e guitarra – e muita harmonia – para relatar os contos de nomadismo de quem gradualmente aprende a conviver com a sua identidade (e abandono o idealismo pop). A génese dessa mesma identidade não podia conhecer mais rico apanhado que o formado pela metade inicial de Some Things Just in Your Mind.

O segundo disco cava ainda mais fundo no catálogo de Vashti Bunyan e recupera na íntegra aquela que terá sido a sua primeira sessão de estúdio, registada em 1964, numa altura em que a songwriter regressara a Londres estimulada pela enorme ambição cultivada por uma passagem por Nova Iorque. Não se descobre, contudo, quaisquer vestígios de pretensiosismo nas onze faixas que não podiam transmitir maior naturalidade e fluidez, nem que seja pela brevidade que cada uma ocupa (raramente ultrapassando os dois minutos). O pior é perceber como a escassez de momentos realmente memoráveis, descobertos na tape de 1964, torna menor o número de Some Things que Stick in Your Mind. As semelhanças demasiado óbvias entre “Train Song†e “17 Sugar Pink Elephants†(incluídas no primeiro disco), em termos de métrica e melodia, passam, no discurso aberto da sessão de 1964, a ser perceptíveis em demasiados casos. Fica-se a saber que a primeira colheita de Vashti Bunyan indiciava a essência lírica que a afamou décadas depois, mas também que a mesma se revela amorfa – possível eufemismo de aborrecida - quando exposta apenas através de guitarra e voz. Em retrospectiva, o benefício da dúvida pode até levar a crer que neste segundo disco estejam armazenadas canções de um porte excepcional que só carecem mesmo dos arranjos à altura e de orquestra para executá-los. A condição de sobrevivente concede a Vashti Bunyan o direito a esse benefício da dúvida e ao registo honroso de todo o inicial germinar sem o qual persistiriam na memória as mesmas dúvidas acerca desta figura cujo carisma formou lenda.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
23/10/2007