Peter Hammill tem um casaco de cujas mangas saem canções em vez de mãos. O tempo e o uso fizeram dele uma peça que, a estes dias, se confunde com as linhas desajeitadas do seu corpo, com a marca que foi construindo no sofá, com a sombra que projecta nas paredes, nos móveis, no retrato dos seus pais. É-lhe estranho olhar para ela: move-se quando ele se move; acena-lhe se ele lhe acenar. Deve, portanto, ser a sua sombra. E no entanto não lhe vê os calções, nem a fisga, nem sequer um joelho esfolado, nada. É a sombra de um homem velho – disso tem ele a certeza: não conta pelos dedos, não fuma às escondidas, não colecciona álbuns do Mandrake. A sombra de um velho, de um homem cujo reflexo já não reconhece quando ao espelho se olha – de um homem velho. Mas não terá sido sempre assim? Não terá sido Hammill um homem velho durante toda a sua vida? – pois quem mais se põe a escrever tratados da alma se não um homem velho de vinte e três anos? Quem mais compreenderá, em ainda tão tenra idade, que os limites entre o certo e errado são, quase sempre, nebulosos?
Achamo-nos, claramente, na presença de uma figura cujo brilhantismo vai muito para além das primeiras impressões, sendo que a sua obra é, presumivelmente, tão complexa como quem a criou. E se Hammill é uma figura chave para o entendimento, pelo menos, daquilo que foi a nova música popular da segunda metade do século XX, não é apenas porque soube metamorfosear o “si” em vários “eles”; é-o também porque teve a coragem de permanecer independente, de se afastar dos outros e de si próprio – ter visão é, sobretudo, saber como e quando mudar. Foi assim que, na década de setenta, fez a ligação entre o glam-rock e o punk, para logo a seguir juntar o rock à música electrónica (olá Thom Yorke). No entanto, apesar da proeminência do seu papel enquanto músico e pensador, jamais se tinha acercado, à séria, da sua própria singularidade. Dizemos à séria porque se ao longo da sua carreira houve momentos nos quais se auto-cantou (houve-os, de facto), estes tinham sempre como receptor outro, ou outros, que não o próprio.
Em Singularity, porĂ©m, Peter canta quase exclusivamente para si, num misto de expiação do passado e celebração da vida. Tem, de resto, razões para isso: em 2004, no dia seguinte ao lançamento de Incoherence – a sua obra-prima para o sĂ©culo XXI –, sofreu um ataque cardĂaco que o colocou entre a vida e a morte. A experiĂŞncia levou-o a adoptar uma postura diferente perante a vida: descobriu a singularidade, a sua singularidade, aquilo que o distingue dos demais. Está agora, sobretudo, feliz por ter escapado e “Singularity” acaba por ser um “livrei-me de boa”. Isto Ă© tĂŁo ou mais evidente quando Hammill relaciona a sua experiĂŞncia com a da mĂŁe, doente de Alzheimer, em “Meanwhile My Mother”, e com a do afinador do seu piano, que morreu quando um condutor embriagado embateu contra o seu automĂłvel, em “Friday Afternoon” – o progressivo desaparecimento do mundo em que vive Ă© um sinal de que tambĂ©m ele irá, inevitavelmente, desaparecer.
Mais eis que volta a amanhecer; eis que a luz do dia volta a percorrer as divisões da casa, demorando-se num ou noutro canto antes de prosseguir a sua marcha. TambĂ©m ela acabará, eventualmente, por ceder Ă escuridĂŁo; tambĂ©m ele irá, num dia em tudo igual ao de hoje, fazer-se Ă estrada. É, pois, tempo de voltar a contemplar a sombra que projecta nas paredes, nos mĂłveis, no retrato dos seus pais (presume que seja a sua sombra). Volta, como já (quase) o havia feito em A Black Box (1980), a escrever, cantar, tocar e gravar tudo aquilo que aparece no álbum. De resto, as semelhanças entre os dois registos sĂŁo notĂłrias, principalmente se atendermos Ă forma como Hammill vai sobrepondo várias linhas melĂłdicas (“Famous Last Words”), ou como junta o rock Ă electrĂłnica (“White Dot”). Mas existem mais olhares por cima do ombro: se a beleza de “Our Eyes Give It Shape” nos remete para “I Will Find You”, do álbum Fireships (1992), e a vitalidade de “Vainglorious Boy” nos lembra “Narcissus (Bar & Grill)”, de X My Heart (1996), tambĂ©m a guitarra que principia “Naked to the Flame” nos traz Ă memĂłria o tema “Solitude”, incluĂdo no álbum Fool`s mate, de 1971.
Dir-se-á, entĂŁo, em jeito de pequena trama, que todos estes piscar de olhos poderĂŁo advir das remasterizações dirigidas pelo prĂłprio, as quais, para alĂ©m de abrangerem a sua discografia inicial a solo, tiveram ainda o condĂŁo de nĂŁo deixar de fora a produção clássica dos Van der Graaf Generator, grupo de que Hammill Ă© membro fundador. É, de facto, perfeitamente concebĂvel que estas lhe tenham avivado a memĂłria, que lhe tenham feito pensar nos dias do antigamente, de quando ele, munido de muita arte e poucos engenhos, se lançava Ă descoberta das várias facetas do “eu”, do “eles” e do “nĂłs”, num processo em que quem ganhava eram sempre os outros, esses que tambĂ©m sĂŁo eles, que tambĂ©m somos nĂłs.
Por isso saĂmos Ă socapa (sai-se sempre Ă socapa quando se ganha): Singularity inscreve-se na marca dos grandes álbuns assinados por Hammill, dando seguimento Ă boa forma demonstrada em Clutch (2002) e Incoherence. É um olhar para trás, sim, mas um olhar para trás vindo de um homem cuja vida foi feita de olhares em frente, talvez Ă procura de apaziguação, talvez em busca de um final que nĂŁo o abandonasse Ă mercĂŞ de um novo inĂcio – um olhar para trás que nos parece convidar para um copo. Porque nunca iremos morrer.