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Xiu Xiu Remixed & Covered

2007
5RC


Existem especificidades que, no caso dos Xiu Xiu, tornam secundárias as suspeitas que quase sempre geram os discos de remisturas e/ou covers, que, quando não são absolutamente obsoletos, só muito raramente superam um valor que excede o curioso. A particularidade que, de imediato, destaca Remixes & Covered dos seus semelhantes respeita à sensação de que por aqui se manifestam mensageiros e cúmplices e não apenas tarefeiros, porque reformular ou desconstruir o multiforme indie torturado dos Xiu Xiu é também comungar do pesar de Jamie Stewart, membro residente e principal compositor. Neste caso, por comungar entende-se remexer no lirismo de Stewart que, como se sabe, exige pinças de subtileza e a sedução exacta de ultra-romantismo e kitsch sem que esses nunca passem a ser alicerces, mas apenas os limites que mantêm os Xiu Xiu à margem do que é puramente patético. A proximidade mantida pelo trio perante esses factores de risco torna-os no mais bravo dos colectivos a percorrer actualmente a corda-bamba do indie ambicioso e iconoclasta no seu trespassar de géneros. Contudo, convidar dezasseis nomes diferentes a cumprir esse delicado exercício e esperar que nenhum se estatele sobre o chão é abusar da fé. Mas fé é a exigência primária dos Xiu Xiu.

Jamie Stewart, com a prudência de Marsellus Wallace em Pulp Fiction, sabe que a alma não se confia a quem não estiver disposto a perder a vida por ela e os Xiu Xiu optam aqui por se entregar nas mãos de projectos que habitam a sua periferia afectiva e artística. O brio e responsabilidade de bem representar um consanguíneo sente-se, de facto, a vários dos presentes na metade reservada às covers: o vociferar minimalista dos Oxbow consegue frisar o aspecto maldito a uma “Saturn”, que é tema praticamente banido dos concertos de Xiu Xiu, enquanto que Marissa Nadler purifica através de folk profunda o clássico “Clowne Towne” que reclamava por uma bênção como esta. Mesmo que repetindo uma faixa incluída num split lançado há algum tempo, Devendra Banhart reestrutura o belicismo irónico de “Support Our Troops” através de um doo-wop cheio de vibrato que faria certamente sorrir Lauryn Hill.

O pior acontece quando o excesso de confiança inflige golpes descabidos no que à partida seria sagrado: escute-se, por exemplo, o puro disparate a que se afoitam os Her Space Holiday que conseguem o impossível ao tornar um hino trágico - e perfeito single oculto - como “I Luv the Valley OH!”, do marco Fabulous Muscles, numa estéril cançoneta amanhada em torno de um piano que se parece afundar com a canoa que o suporta. Nas piores situações, as covers aqui arquivadas são moedas atiradas a um poço na esperança de uma transformação que se revela aberração.

Outro cenário clássico, em termos do que sugere os primeiros discos de Xiu Xiu (e Jamie Stewart em entrevistas), é o do cioso jovem suburbano que percorre as discotecas da cidade desesperado por sexo casual e acaba desgraçado numa solidão que maior parece mediante o falhanço e sob as luzes dos estabelecimentos vistoriados. Isto para explicar que só não morre sozinho o que de mais foleiro se escuta à face das remisturas porque toda esta electrónica irrealmente energética serve perfeitamente como banda-sonora à divisão do existencialismo Xiu Xiu que mais procura o movimento do corpo como forma de purificação. O desequilíbrio impera e aqui existe tempo de antena suficiente a todo o tipo de reformulações incidentes em elementos já existentes. O hi-nrg desvairado volta a possuir digitalmente os Xiu Xiu numa descartável “Ceremony” que os próprios assinam como quem se mutila a si mesmo (sem que isso soe estranho a quem conhece as teias com que se coze o projecto da 5RC, label que encontra neste disco o epitáfio da sua actividade). A adulteração do (im)perfeito obtém resultados mais satisfatórios nas mãos de Warbucks, que aproxima, tanto quanto possível, “Suha” de um protótipo Depeche Mode multiplicado em loops, e “Buzz Saw” vê ser-lhe garantido um disfarce que ninguém lhe antecipava quando, em The Air Force, era apenas um lamento em tapete rolante de sons distorcidos – ganha, desta feita, corpulência de glitch manipulativo e passa a ser tema ideal para orientar robots dedicados à arte da dança do ventre. Assina esse momento o neurótico projecto This Song is a Mess But So Am I que vence a divisão das remisturas por factor surpresa.

Em termos figurativos, Remixed & Covered acaba por equivaler à wishlist amargurada de Jamie Stewart rasgada em dezoito pedaços, que passam a ser peças de um puzzle existencial onde cada um dos encarregados coloca a peça de modo comprometido (minimamente, em alguns casos) para com o original, mas sem noção do papel que essa representará no conjunto. Sobra um retrato esquizofrénico e pós-moderno de uns Xiu Xiu que glorificam a distorção de si próprios e contam, em cinco discos e outros tantos EPs, com clássicos suficientes para suportar um empreendimento como este. Mas seria de primeira urgência a reinvenção do que por si só é excelente? À questão que se coloca à grande maioria dos objectos deste tipo oferece-se como resposta uma constatação que não lhe satisfaz directamente: não se encontra por aqui nada tão eficaz e singular como a cover que os Xiu Xiu fizeram da evasiva fábula urbana “Fast Car”, êxito-maior de uma Tracy Chapman que é bem mais do que aparenta o seu estatuto FM. O precioso disco de covers atribuído aos Xiu Xiu surgirá no dia em que forem eles os executantes e não os executados.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
11/05/2007