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V/A The Upsetter Selection - A Lee Perry Jukebox

2007
Sanctuary / Trojan


Existe um factor que torna insustentável qualquer acusação apontada à rentabilização constantemente operada pela Trojan no revisitar do largo e superiormente precioso catálogo acumulado por Lee “Scratch†Perry. Aquele que é seguramente dos mais inventivos criadores de reggae e dub repete-se legitimamente em compilações temáticas, elaboradas em torno de si, pelo simples facto de viver num abstraído estado de amnésia desde que alcançou um estatuto que torna imediatamente rentável o seu nome, na inserção em todo o tipo de formatos. Não existe sentimento de culpa ou saturação para um Lee Perry que parece, a cada novo dia, acordar numa realidade inédita para si e para quem lhe observa a rotina de camaleão de pele pigmentada pelo à vontade de lunático – esse que o leva, em catadupa de disfarces, a ser num dia o Anjo Gabriel que redistribuirá justamente o dinheiro dos ricos pelos pobres, no outro o turista alienado que conversa com palmeiras ou dança em preze da chuva no topo de um autocarro londrino, e, num outro contexto mais profissional, a figura intocável que se recusa a apertar as mãos dos admiradores para que esses não lhe furtem a genialidade (a menos que essa troca sirva para transitar objectos em lume brando). A cada nascer do sol corresponde um renovado Lee Perry, por isso não é de estranhar que também uma nova colectânea da sua música. Além disso, sabe-se que os diamantes são eternos e os que brilham intemporalmente bem pode ser revisitados por incontáveis audições. Na impossibilidade de compreender quarenta e cinco anos de imparável produtividade, The Upsetter Selection – A Lee Perry Jukebox fica-se pela selecção comemorativa de quarenta e cinco músicas escolhidas pelo próprio ET Jamaicano em representação do seu trabalho como músico e produtor, ou simplesmente criativo.

Categoricamente, The Upsetter Selection serve, desde logo, como lição histórica no que toca ao uso da música como imaginativo veículo da provocação e picardia avulsa: quando ainda não se vislumbrava sequer o significado do termo hip-hop (apenas as suas fundações estéticas) e muito menos o poder incendiário dos seus ataques verbais, Lee Perry adiantava-se na padronização do rebelde que necessita apenas da palavra e viciosidade das suas produções para ajustar contas com rivais e traidores. O que o diferencia da actualidade thug, que intoxica e vai arruinando o hip-hop, é a leveza lúdica dos acrescentos invulgares e improváveis que iam sendo utilizados nas suas faixas como curiosos mecanismos magnéticos - tal como o choro berrado por uma criança acrescentado ao clássico “People Funny Boyâ€, que também serve de título a uma biografia dedicada à lenda caribenha, ou na repetição absorvente da linha de baixo eficazmente minimalista de uma entranhável “I Am the Upsetter†que coloca a atitude provocatória de Perry como cabeça a prémio. Numa mais tardia “Judgement Inna Babylonâ€, Perry compromete-se efectivamente a fazer justiça pelas próprias mãos e não se poupa a denunciar de modo juncoso os hábitos vampíricos de Chris Blackwell, fundador da Island Records que por aqui é violentamente acusado de ter assassinado Bob Marley e ficar com os seus royalties (as opiniões expressas são da responsabilidade do seu autor). Sobra a partir desta forma de estar desafiadora o rastilho que Nova Iorque só haveria de acender quinze anos mais tarde e que os Specials haveriam de reaproveitar pela mesma altura no ska sarcástico de "Too Much Too Young", que cantava vitória sobre as ex-namoradas agrilhoadas a vidas familiares acomodadas.

Contudo, o legado de Lee Perry não se mede apenas pelas tácticas usufruídas pelo mesmo na erosão do juízo alheio. O Upsetter interviu activamente numa série de ocasiões que não teriam obtido os mesmo resultados excelentes sem o toque místico do Midas da excentricidade. Algumas dessas decisivas no rumo que tomou o reggae - género que conheceu em Bob Marley o seu mais emblemático embaixador não sem antes o tutor Lee Perry optimizar e catalizar de forma proveitosa a espiritualidade do primeiro que transborda vibrante nas indispensáveis “Soul Rebel†e “Natural Mysticâ€. Outras intervenções são dignas de mérito pela ruptura com códigos limítrofes e ortodoxia da década de 60 – esses que se viram abalados no dia em que Perry, com vista a obter os picos necessários ao efusivo reggae-soul de “Prisioner of Loveâ€, incentivou Dave Barker a beber acetona de modo a que sua voz soasse próxima da que imortalizou James Brown. Foi bem sucedido nisso.

Orientando-se quase sempre por uma necessidade prioritária de gozo, Lee Perry demonstra, através do tríptico skank incluído no mais dubby segundo disco de The Upsetter Selection, que ritmos mais complexos (apelativos a uma dança paralelamente sensorial estimulada pela variedade ervanária jamaicana) não implicam incompatibilidade com motes narrativos mais simplistas e pragmáticos. Em modo livre de sound system, “Cow Thief Skank†amanha um espesso caldo a partir dos retalhos de vários temas populares na altura, adiciona-lhe o veneno goofy das farpas disparadas por Charlie Ace e o próprio Lee Perry, autênticos protótipos da concepção moderna de MC, e arremessa tudo isso na cara do produtor rival Niney, the Observer. “Bathroom Skank†é imundo no borbulhar que se escuta às suas sub-texturas, mas higiénico no apelo imperativo de Perry a que se lavem todas as partes do corpo à medida que a guitarra se solta da natureza reggae rumo a um funk que caminha com uma pinta à partida inalcançável. É a mais obrigatória das escolhas na eventualidade de mixtape para banhos. Por sua vez, “Kentucky Skank†inclui os sons efervescentes de uma frigideira com o simples pretexto de documentar a predilecção de Perry por uma receita de galinha frita.

The Upsetter Selection – A Lee Perry Jukebox não arrisca a inclusão de faixas recuperadas a capítulos mais experimentalmente dub e obscuros como Super Ape e Return of the Super Ape (para isso, existira já a colectânea Arkalogy), mas ostenta toda a glória de que se ocupa o criativo que acede, com igual generosidade, a colaborar e a produzir as faixas que haveriam de tornar canónicos os seus congéneres. A colectânea é de uma ponta à outra obrigatória na mostragem das capacidades do génio que elevou o reggae, através da sua ramificação dub, à condição de curativo de propriedades cósmicas. Provoca uma imensa satisfação encontrar Lee “Scratch†Perry eufórico e de braços erguidos na frente da sua próprio jukebox numa fotografia recuperada a uma célebre sessão que servira já ao álbum Jungle Lion. Não surpreende que Panda Bear (Noah Lennox) o tenha apontado como um dos principais responsáveis pela inspiração que serviu a Person Pitch. Ambos provaram, perante gerações diferentes, que é realmente possível ser-se estupidamente alegre e, ao mesmo tempo, elaborar música inteligente sem complexo de roçar a globalidade pop que agrada às massas. Um tal como o outro limitaram-se a celebrar musicalmente os prazeres da vida sem a necessidade de deixar ninguém à porta de tão nobre acontecimento.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
27/04/2007