O glitch revela-se por meio das mais misteriosas formas. Como expressão incidente no aproveitamento da anomalia, varia conforme os tempos e ameaça não acusar desgaste enquanto forem questionáveis os dogmas de um corpo sonoro puro e primo. Ran Slavin, em meditação sobre o território de Médio Oriente que abrange a sua pátria Israelita, parece bem ciente dos múltiplos atributos de que se pode valer o glitch se for seu propósito reter cerebralmente a atenção enquanto lhe é servida um conjunto de paisagens, cenários virtuais e argumentos alegorizados. Não se julgue com isso que The Wayward Regional Transmissions envereda pela mais traiçoeira via panfletária ou explicitamente política - Ran Slavin tem na manga propósitos muito mais dignificantes e elaborados para a teia que tece a partir do imponente glitch, guitarra e acrescentes étnicos conferidos pela Bulbultarang (uma espécie de banjo indiano), Ud (instrumento de cordas egípcio) e samples de pop regionalmente típica (em “Kiosk in Furadis”).
Antes de serem revelados os tais propósitos, importa primeiro citar Bom filho a casa torna como um dizer que se aplica na perfeição ao sentido protector que leva a portuense Crónica a manter por perto os estetas mais cativantes integrados no seu catálogo. Depois do convite para integrar o segundo tomo da série Product, Tropical Agent / Ears in Water, Ran Slavin regressa à label de Miguel Carvalhais com este The Wayward Regional Transmissions, numa altura em que atravessa inspiradíssimo período na sua já longa e multifacetada carreira, ou assim o demonstra o soberbo disco de perdição Insomniac City, editado o ano passado pela Mille Plateaux e que ainda não deixou de revelar câmaras ocultas desde aí.
Sem mais demoras, enumerem-se as peculiaridades que fazem do glitch de Ran Slavin o código de cuja a assimilação se depende para ler ou se perder no mapa formado por The Wayward Regional Transmissions. Dificilmente se acredita encontrando-o assim, apenas escrito, mas é possível simular a sensação de pesado jet lag a partir do glitch - tornando-o insoluvelmente denso e subterfluente, aplicando-o à corrosão da guitarra e outras frequências mais lineares de modo a que sobra apenas a estranheza. Ran Slavin recebe-nos de um modo calorosamente étnico (com a manipulação dos instrumentos acima citados) e depois espera que, de olhos vendados por um glitch críptico, consigamos regressar até um ponto seguro. Com a agravante de neste seu último trabalho, tal como já acontecia em Insomniac City, a tendência seja por alongar-se além do esperado, talvez como forma de fazer com que se sinta ainda mais perdido e privado de piso firme quem der por si tão distante do início como do fim da faixa.
Mesmo assim, não podia esta resenha terminar sem mencionar a imensurável obrada deixada por Muslimgauze (Bryn Jones, falecido em 1999), que será muito provavelmente dos mais inestimáveis reaproveitadores da inspiração oferecida musicalmente pelo Médio Oriente – ele que apoiava incondicionalmente a causa Palestiniana e procurava arrastar o brio dessa até aos seus mil e um discos (é literal a afirmação). Embora se encontrem em lados opostos da barricada, Muslimgauze e Ran Slavin trabalham o apelo étnico da conturbada zona de forma equivalentemente apaixonante. Muslimgauze convida a percorrer fantasiosamente as ruas e a contactar de perto com elas (quando ele, em vida, nunca o fez), Ran slavin propõe a que as observemos desde que filtradas pela sua vontade alquímica. The Wayward Regional Transmissions é uma bússola que se pretende desregulada. Por pura coincidência ou não, representa, ao lado de The Temple Bell de Old Jerusalem, um dos grandes lançamentos deste ano a conhecer carimbo de uma casa cá do burgo.