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Topes Ilustres 2018 - José Valente
· 20 Fev 2019 · 11:37 ·
© Miguel Barbot

É sempre difícil para mim organizar uma lista de destaques musicais. Por um lado porque raramente me preocupo com este tipo de gestão. Ouço discos, músicas soltas etc. todos os dias, por impulso e necessidade, sem questionar por vezes os contextos de edição, o ano de publicação da obra, entre outros factores provavelmente decisivos para a elaboração de critérios mais específicos inerentes a este tipo de distinções. É provável, tendo em conta a minha falta de atenção, que me tenham escapado imensas edições magníficas concebidas em 2018. Por outro lado lancei no ano em questão o meu disco "Serpente Infinita" e para mim, por razões emocionais óbvias e pela concentração artística que a invenção deste disco exigiu, "Serpente Infinita" é e será sempre o melhor álbum de 2018. 
 
Esta lista foi desenvolvida a partir de três pontos de apreciação: 1) discos que pela sua natureza histórica representam um marco importante ou a celebração de um artista cuja obra merece toda a exaltação e entusiasmo por parte do ouvinte; 2) discos ouvidos para a minha investigação - na minha prática criativa há uma escuta mais depurada e detalhada de estilos, influências e linguagens musicais que serve a construção do vocabulário a aplicar numa composição; 3) discos surpreendentes, que ao serem ouvidos por acaso, se tornaram viciantes durante um período de tempo.
 
1)
Inéditos do José Mário Branco: Assisti à entrevista e demais conversas que a Feira do Livro do Porto organizou com o José Mário em 2018. No seu entender a intervenção musical deve ser edificada a partir de um tridente onde a técnica, a estética e a ética se combinam. Este tridente permanece infelizmente ausente das cogitações de muitos dos actuais cantautores.
Both Directions At Once: The Lost Album do John Coltrane: Um testemunho fundamental para a história da música e um agradável recordar da urgência musical, do ímpeto e da vitalidade expressiva que o John Coltrane nos deixou.
The Blue Voice of the Water do Luís Tinoco: O arquitecto Nuno Teotónio Pereira afirmou que a sua Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa era um espaço para os crentes poderem abandonar as dificuldades do dia-a-dia e dar lugar à transcendência, ao fascínio. A arte é a principal alavanca para o ser humano se transcender, se superar. 
Ser capaz de criar e sobretudo de comunicar esta oportunidade oferecida pela arte, deve ser o desafio e a motivação de todos os artistas. O Luís vive este corajoso estado de espírito diariamente enquanto compositor, director de momentos essenciais para a cultura portuguesa e professor. A densidade orquestral que nos invade quando ouvimos, por exemplo, "O Sotaque Azul das Águas", numa alusão metafórica à imensidão do mar, é igualmente assustadora e maravilhosa. Ficamos assoberbados por um sentimento misto entre o receio que a percepção da nossa pequenez nos provoca e o encantamento pela beleza e magnitude deste oceano orquestral. Esta ambiguidade repete-se em "Frisland" onde um burburinho orquestral acompanha uma melodia descendente, posteriormente explorada em várias secções da orquestra - outro momento positivamente incómodo, muito bem composto que nos transporta para misteriosos lugares de reflexão e emoção. Vale mesmo a pena ouvir este disco!
 
2)
I met Her by the River do Dwada Jobarteh: Descobri a música de Dwada Jobarteh durante a pesquisa para a minha próxima composição, onde o afro beat e a kora poderão ser uma influência preponderante no vocabulário musical utilizado. O Dwada toca a kora com um conforto virtuoso e com uma honestidade estilística ímpar.
Ayre de Osvaldo Golijov: Outro dos meus interesses de pesquisa é a felicidade, o riso e acima de tudo o insólito que proporciona momentos cómicos. Além disso, um dos meus desejos para 2020 ou 2021 é fazer um disco de canções. Eu gosto muito da energia rítmica e da melancolia divina das melodias imaginadas pelo compositor argentino Osvaldo Golijov que em "Arye" nos oferece um conjunto de canções brilhantemente interpretadas ao vivo por Miriam Kahlil, entre outros.
 
3) 
Memórias de Fogo de El Efecto: Foi para mim uma surpresa, no sentido que decidi ouvir o disco sem saber do que se tratava. Os El Efecto fazem uma música implicativa, interventiva e satírica, sem descuidar na qualidade e na intensidade musical. Considerando a apatia generalizada do meio artístico relativamente aos múltiplos flagelos políticos que temos vindo a testemunhar, é positivo ouvir um grupo que denuncia dinâmicas repressivas patentes no quotidiano da nossa sociedade ocidental. A escravidão do trabalho, o capitalismo ou ao racismo subtil e escondido que contamina a civilização são alguns dos assuntos abordados.
Talvez o melhor disco que ouvi em 2018 - O Cinema Que o Sol Não Apaga do Thiago Amud: Na minha adolescência ouvi um disco que me marcou para sempre, "Clube da Esquina 2" do Milton Nascimento (curiosamente a canção com o mesmo nome, que eu adoro!, está registada no 1º volume). Naquele momento aprendi que era possível fazer canções amarguradas, canções fortemente políticas, utilizando elementos musicais variados: coros infantis, harmonias ricas, percussões diversas, guitarras modificadas, Elis Regina, e tudo o resto! Longe de mim comparar "O Cinema Que o Sol Não Apaga" do Thiago a um dos álbuns mais importantes da música brasileira. Semelhante relação seria profundamente injusta para ambos os músicos. No disco de Amud, vislumbro a mesma irreverência que me arrebatou há anos atrás com o Milton: a sátira política presente nas letras, sem receios, associada a soluções melódicas, harmónicas e rítmicas extremamente sofisticadas e genuinas. Um tropicalismo zappiano gerado a partir de uma simbiose muito bem orquestrada entre a tradição da canção brasileira com o arrojo da música erudita, comunicada directamente ao ouvinte, sem apetrechos decorativos, sem os artifícios superficiais que hoje em dia nos distraem do que é verdadeiramente essencial, desenvolvida com uma qualidade e um virtuosismo expressivo acima da média. Aqui está uma obra incrível!
 
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José Valente

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