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Dez mil anos de música: Leyland Kirby é o fantasma do Barreiro durante 11 dias e falou com o Bodyspace
· 06 Out 2010 · 12:54 ·


Nas barbas de uma época que delira com o efémero e que parece às vezes ter um alcance limitado aos quatro minutos de um single, James Leyland Kirby lançou no ano passado uma espécie de disco interminável: Sadly, the future is no longer what it was. Tecnicamente, o triplo álbum preenche as suas quase quatro horas com colossos new age e música carregada como os céus cinzentos, até que termina com as últimas notas do (recorrente) piano de “And At Dawn Armed With Glowing Patience, We Will Enter The Cities Of Glory (Stripped)â€. “Termina†ou então ilude-nos apenas disso, porque o que tem vindo a acontecer, desde aí, é o seu reaparecimento de forma repetida, quando menos se espera. Como se fosse um ser sobrenatural (um Freddy Krueger neura) que sobrevive sempre para atormentar mais gente na sequela.

Perante a imensidão de um disco deste porte, acreditaríamos, à partida, que quase quatro horas de música verdadeiramente assombrosa satisfariam a vontade do seu criador (e a fome de quem se alimenta desta ultra-melancolia). Mas não. Evitando qualquer compasso de espera, Leyland Kirby aproveitou o empurrão de Sadly… para lançar uma versão do mesmo reduzida a dois discos. A mais óbvia solução passaria por reunir nesse par de discos os temas mais representativos da “obra maiorâ€, com umas variantes pelo meio para enganar, mas também não é exactamente isso que acontece. Sem deixar de incluir as esperadas versões alternativas e três das faixas do álbum original, o duplo Sadly… vale sobretudo pelos seus oito inéditos – todos eles dentro do mesmo registo “vou tocar até que os meus pulsos se cortem por si mesmosâ€. E é assim que chegamos a mais de cinco horas que aparentam ter surgido das mesmas sessões de gravação cumpridas em torno de métodos semelhantes. O saldo criativo de Leyland Kirby, em 2009, foi ainda suficiente para extrair outro inédito da mesma poda triste (um “When it rains, the puddles shine black†que recorre uma vez mais ao piano e a sintetizadores em desfalecimento) e o “bicho†tardava em morrer.

Até agora, o ano de 2010 tem surpreendido pela quantidade anormal de participações dispersas por colectâneas e projectos partilhados com outros nomes. Logo no início do ano, Music and Migration, lançada pela Second Language, indicava a sua intenção no título, e contava com faixas adequadas de Vashti Bunyan e Peter Broderick, entre muitos outros. O tema proposto (“música e migraçãoâ€) de nada serve, mesmo assim, para demover Leyland Kirby da sua missão romântica e “Whiffing†volta a soar tão profundamente amargurado como qualquer coisa de Sadly…. A migração explicada através do sedentarismo.

Perguntamos então a Leyland Kirby onde está agora e para onde quer ir. “Procuro sempre seguir em frente. Muitas pessoas têm-me solicitado novos trabalhos ultimamente, o que é altamente positivo, e em breve serão lançadas mais faixas inéditas. O meu último disco surpreendeu muita gente, porque nunca esperariam que fosse capaz de fazer música com esta carga emocional. Os novos trabalhos, que surgirão em 2011, partem do mesmo espaço mental, e reflectem os tempos em que me encontro e que me levam a ser mais pessoal no que façoâ€. O britânico da farta cabeleira não revela muito mais acerca do que tem reservado para 2011, como quem compreende a necessidade de haver algum mistério em torno de um disco antes desse sair – quando o que acontece muitas vezes actualmente é um álbum parecer datado no dia oficial de lançamento, depois das muitas cambalhotas em bootlegs e pré-versões difundidas online.

É óbvio que um volume tão imenso de trabalho corre sempre o risco de ser ignorado ou mal-entendido nestes dias obcecados por devorar tudo o que é novo no mais curto espaço de tempo. Talvez por isso, a gigante Pitchfork, publicação online habituada a fabricar fenómenos instantâneos, tenha dedicado a Sadly, the future is no longer what it was uma das suas mais disparatadas críticas (selada com uma pontuação de 6.8 que não serve para nada). Nessa apreciação algo apressada, Mike Powell começava por referir que “James Leyland Kirby é um artista em primeiro lugar e músico em segundo, o que significa também que pode ser mais gratificante pensar nos seus discos do que realmente escutá-losâ€. A sério, Mike? Como explicar então todo o intricado (e viciante) labor musical que compõe um álbum com um peso emocional quase incomparável nestes últimos anos? A actualidade já não reserva lugar para a entrega desalmada destes românticos, mas a verdade é que Sadly… serve para muito mais que teorizações simplistas.

Depois deste tipo de opiniões desleixadas, não é de admirar que Leyland Kirby tenha ameaçado, há alguns meses e através do seu blogue, abandonar por completo as plataformas de divulgação e apagar todos os seus gigantescos arquivos virtuais. “Essa decisão passa mais por representar o meu trabalho online de uma forma mais dinâmica. A quantidade de informação na internet é tanta que algumas coisas acabam por se perder num meio onde muito se constrói e pouco se apaga. Agora é a altura certa para olhar para o próximo ano e fazer algo que esteja em mutação permanente e que não seja apenas um museu online. É um desafio, mas sempre foi e sempre seráâ€. Estas palavras não soam a amuo. Isto parece mais um legítimo discurso de insatisfação por parte de alguém que, em 1997, já desafiava as debilidades da internet (o dial-up era tortura) ao disponibilizar a sua música em MP3 (um por dia). O processo entretanto banalizou-se e um dos seus principais pioneiros foi muitas vezes esquecido de artigos que visavam a história do MP3.


Contudo, Leyland Kirby não virou as costas à internet, ou então não seria o responsável pelo Ouvido Raro da presente edição do Out.Fest do Barreiro (a decorrer entre os dias 5 e 16 de Outubro). A partir da página do Out.Fest, o Ouvido Raro funciona como um instalação com diferentes pistas de som, que podem ser manipuladas quer em termos de posição no campo estéreo, quer em termos de volume. Leyland Kirby recuperou para o efeito um dos seus principais e mais extensivos disfarces (The Caretaker) e explica as suas funções da seguinte forma: “O objectivo é compor sons que funcionem bem em conjunto e isoladamente. Disponho agora de um grande arquivo de Caretaker, é certo, mas apliquei-me a sério nesta iniciativa. Espero que as pessoas possam tratar os loops que providenciei de maneira a chegarem a algo atmosféricoâ€. Nós esperamos que ninguém afine a sua própria marcha fúnebre enquanto brincar com os sons depressivos de Caretaker. Isto é barra pesada.

De modo a virar o feitiço contra o feiticeiro, o atrevimento deve ser total na hora de manipular a música de Leyland Kirby – ele que até entende essa apropriação como algo lisonjeador. â€Tudo aquilo que se encontra no domínio público é também passível de ser reconstruído, remisturado e recontextualizado. Essa parece ser a natureza da música actual, mas enchia-me de culpa quando fazia isso no final dos anos 90. Não tenho qualquer problema com o facto de outras pessoas utilizarem a minha música. O volume de música lançado hoje em dia é tal que passa a ser muito difícil alguém reparar no que andas a fazer. Isso leva-me a sentir que estamos no bom caminho quando alguém repara e decide remisturar qualquer coisaâ€.

Ele próprio acumulou uma certa infâmia online pelas remisturas medonhas de “Lady in redâ€, do seu predilecto Chris de Burgh, ou de “Eye of the tigerâ€, dos Survivor (“The right eye of the tigerâ€, na versão de V/Vm, o terrorista pop dentro de Leyland Kirby). Perguntamos depois pelo nome de outros iluminados da canção de amor ostensiva típica da primeira metade dos anos oitenta: Airplay? Adrian Gurvitz? Boz Scaggs? Leyland Kirby reconhece alguns dos nomes, mas admite gostar “mais da música da década de 80 lançada em labels como a Zang Tuum Tumbâ€. E não se fica por aí nos elogios à casa que tantas glórias viveu com os 808 State e Frankie Goes to Hollywood: “É fantástico acompanhar a ZTT numa altura em que lança as edições luxuosas de muitos álbuns com diversas experiências de estúdio até aqui desconhecidas. Adoro a música pop dessa era do remixer - gajos como Shep Pettibone, Ian Levine e outros. De alguma forma, a música digital desses anos possui muito mais emoção do que muitos dos discos de hojeâ€. “Emoção†é o nome do meio de Leyland Kirby.

Ouvido Raro: The Caretaker (é necessário Adobe Flash Player).

Crítica de Sadly, the future is no longer what it was aqui.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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