RETRO MAN脥A
No fundo do po莽o dos Depeche Mode
路 23 Mar 2018 路 10:45 路
Como sobreviver a Songs Of Faith And Devotion.


Os Depeche Mode não andavam bem em 1993. A pop feita com sintetizadores, que os tornou estrelas mundiais na década anterior, já tinha perdido a guerra para o grunge e para o rock alternativo. Dave Gahan, vocalista, perdeu-se para as drogas e quase morreu em palco - o ataque cardíaco que sofreu, durante um concerto em Nova Orleães, não foi forte o suficiente para o levar. As sessões de gravação de Songs Of Faith And Devotion, e a digressão que se sucedeu ao lançamento do disco, levaram Alan Wilder a abandonar a banda.

Como em qualquer história rock, tudo parecia estar a cair aos bocados, mas resultou num dos melhores discos da carreira dos Depeche Mode - se não mesmo o melhor. É certo que álbuns como Violator terão o seu lugar no cânone, quanto mais não seja pela força de temas como "Personal Jesus" ou "Enjoy The Silence". Mas Songs Of Faith And Devotion é diferente; é um álbum onde a tensão é claramente palpável do início ao fim, onde o desgosto toma uma forma monstruosa e aterradora. É o negrume que já existia em muito do output dos Depeche Mode elevado a 11.



E é, também, o álbum onde a banda britânica rejeita grosso modo os sintetizadores para recuperar as mesmas guitarras que haviam rejeitado no início de carreira. Ouça-se uma canção como "I Feel You", logo a abrir: o riff elástico e repetitivo, a voz de Gahan soando como Lúcifer nos infernos, insurgindo-se contra o mesmo céu que o expulsou. Normalmente, o "épico" costuma guardar em si uma sensação de alegria; ela aqui não existe, é vomitada de forma sarcástica. I feel you..., mas ele ou ela não parecem estar lá. É uma canção sobre um amado invisível, sobre um sexo que nunca aconteceu.

As gravações terão contribuído para este estado de espírito de fundo de poço. Pela primeira vez e sob a batuta de Flood, os Depeche Mode juntaram-se na mesma casa durante vários meses, com o resultado a ser a percepção de que não gostavam assim tanto uns dos outros. Ou de si próprios. Gahan nunca soou tão auto-depreciativo como em Songs Of Faith And Devotion, tapando o brilho e a sensualidade com um par de óculos escuros e heroína. E com um pedido de socorro, repetido vezes sem conta desde então: "Walking In My Shoes".



Após apelos por piedade ("Mercy In You") e acusações ("Judas"), encontramos um dos temas mais sensualmente depressivos dos Depeche Mode: "In Your Room", electrónica negra e concreta que rebenta de forma impiedosa quando entra a bateria. Only you exist here..., ouve-se. O vício de Gahan consome-o e impede-o de se reerguer. Seis minutos de escravatura, um cordão umbilical que liga os Depeche Mode à miséria. O sangue corre infinitamente nas veias à espera que alguém as corte, possibilitando a fuga. Uma ligeira redenção surge no final em "Higher Love", ou talvez não; talvez seja só resignação. I surrender all control to the desire that consumes me whole... .

Os próprios Depeche Mode admitiram por várias vezes que nunca estiveram tão perto do fim como naquela altura. Mas, e isso também é uma história rock, o abismo foi um motor para a criatividade. Ficou provado que Songs Of Faith And Devotion era um álbum especial quando se tornou no primeiro da banda a chegar a número um nas tabelas de vendas britânica e norte-americana. Fica provado hoje, 25 anos após o seu lançamento: ainda soa tão negro, tão depressivo e tão fantástico quanto no passado. A fé, seja no que for, move realmente montanhas.

Paulo Cec铆lio
pauloandrececilio@gmail.com

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