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Jandek on Corwood Jandek

2003


Pouco há a dizer sobre Jandek. Pouco ou nada. Desde 1978, um homem que responde pelo nome de Jandek – o próprio confessou que o seu nome artístico é proveniente de uma curiosa mistura entre o mês em que se encontrava na altura (January) e o nome de uma pessoa com quem estava a falar ao telefone enquanto olhava para o calendário – edita, à média de dois por ano, discos que bebem da folk, do blues e da música avant-garde e do próprio isolamento e recolhimento a que se dedicou em toda a sua misteriosa existência. As letras das suas canções são de complexa decifração - quase que como encriptadas – e a sua guitarra acústica parece estar absolutamente desafinada ou, como o próprio confessou numa das suas raras entrevistas, numa afinação própria, de acordo com aquilo que deseja retirar do instrumento (numa crítica a um dos seus discos, publicada na OP Magazine, terminava-se o texto com a curiosa e esclarecedora frase: “May he never tune his guitarâ€). Por estas e outras características, não é nada estranho que a sua música tenha surgido logo após o explodir do punk e da atitude DIY (Do It Yourself) que se começava a instalar no meio artístico. No documentário mostram-se excertos das primeiras críticas aos seus discos onde se descreve a sua música com adjectivos como "spooky", "suicidal†e "honest". Descreve-se até o cenário perfeito e idealizado para a concretização artística de Jandek: um homem, num quarto de hotel a altas horas da noite, toca guitarra e canta sem saber que está a ser gravado. As capas dos discos mostram por vezes fotografias suas, de baterias, objectos vulgares do dia-a-dia comum ou então de cenas retiradas daquilo que poderá ser o bairro onde vive - no documentário, os experts/fãs/críticos/jornalistas como Calvin Johnson da K Records, Brooks Martin, John Trubee e Phil Milstein, chamados para discutir a obra e a vida de Jandek, comentam que todas estas imagens que surgem nas capas dos seus discos, colocadas de forma cronológica por lançamento, retratam quase todo um imaginário de vida americano e da sua própria decadência e obscuridade. A verdade é que estas imagens poderiam retratar uma qualquer cidade em qualquer canto do mundo. Na parte de trás do disco, em fundo branco, surgiam o nome das músicas, a “famosa†morada de contacto – Corwood Industries / P.O. Box 15375 / Houston, TX 77220 – e única forma de contacto do músico e pouco mais.

Outro dos grandes mistérios da vida de Jandek é a forma como editava e edita os seus discos. As Corwood Industries misturam-se com o próprio Jandek e acabam por ser a sua janela para o mundo, representada maioritariamente sob a forma de uma caixa do correio. Os seus discos eram enviados a críticos e a jornalistas sem o habitual press release, escondendo assim a sua identidade e aumentando a cada dia o mistério, o enigma. Por vezes, na mesma folha onde indicava apenas os títulos editados e disponíveis, adicionava um ou outro comentário: “Hope I’m not bagging you down with materialâ€. Mas Jandek é uma moeda com duas faces. Uns classificam-no como um sociopata, um recluso e acercam-se do mistério que o envolve como sendo verdadeiro e honesto. Outros consideram-no um homem inteligente, perspicaz e sabedor das técnicas de marketing como se tivesse criado o seu próprio mistério com a ideia de que menos é mais – no documentário alguém confessava que toda a falta de informação e o mistério que envolvem Jandek geram mais interesse e discussão do que por exemplo Elvis Presley ou qualquer outro artista que tenha cultivado a sua exposição junto dos media e do público.

No que diz respeito à sua extensa discografia, há quem resolva dividi-la em várias secções: os primeiros discos mais intimistas, essencialmente construídos à base de guitarra acústica e voz, que parecem resultar de uma criação in loco, sem ensaios prévios; os registos posteriores mais ruidosos, mais cheios, traçados com uma guitarra eléctrica, e que abriram pela primeira vez a porta a outras participações – “Nancy Sings†introduziu pela primeira vez uma colaboração, uma voz pura e angelical de alguém que, pela habitual auto-evidência quase hilariante dos títulos das suas canções (“Nancy Singsâ€, “… plays drumsâ€), se julga ser de alguém chamado Nancy (Jandek nunca relevou o mínimo pormenor acerca das suas colaborações, o que acabou por, por um lado, aumentar ainda mais o mistério e, por outro, quebrar aquela ideia de recluso, sociopata e de Homem distante do próximo); e, por último, um estranho par de discos a cappela - editados mais recentemente – que parecem não ser mais do que uma colagem de mensagens deixadas num gravador por um louco. A juntar às vozes, à percussão e às guitarras eléctricas e acústicas, Jandek decidiu também ocasionalmente abrir os seus discos à participação de um piano que presumivelmente ele próprio toca, como se fosse uma criança, lentamente descobrindo os sons e as vibrações que cada tecla pode e deve libertar.

No documentário, não raras vezes, a acompanhar as suas canções surgem imagens de casas aparentemente abandonadas, árvores solitárias, do mar e de cenários propícios à criação de imagens mentais de melancolia e recolhimento sugeridas pela música de Jandek – o sucesso desses momentos (e de todo o documentário) deve-se à dupla Chad Freidrichs e a Paul Fehler, os criadores de Jandek on Corwood. Devido à falta de informação e factos sobe Jandek, a prolífica discussão que se desenvolve no documentário baseia-se em suposições e hipóteses – cada testemunho parece, pela sua relação mais ou menos próxima com Jandek, possuir uma verdade própria acerca de todo o mistério. E a respeito disso mesmo, Brooks Martin dispara: “I Want the mistery to remain alive. I would feel cheated and robbed if all of a sudden I found out who Jandek was. I don’t want finalityâ€. Ironia do destino. Pouco tempo após o lançamento do DVD, Jandek himself saiu por detrás do manto de mistério que o cobria e actuou pela primeiríssima vez em toda a sua carreira no Instal.04, o festival em Glasgow, na Escócia (17 de Outubro de 2004) e acabou por, ele próprio, fazer com que o documentário se tornasse incompleto e inocente. O mistério não se quebrou totalmente mas há com certeza novos elementos a juntar a toda a história que não parece ter fim tão cedo – Jandek contínua, até à data, a editar pelo menos dois discos por ano. Independentemente de toda esta revelação, o DVD continua a ser um documento fundamental na tentativa de compreensão do mistério que roda à volta de Jandek e na tentativa de juntar mais adeptos à causa e à sua música – há até quem diga que Jandek se aproveitou do lançamento do DVD (que teve a oportunidade de visualizar pois a equipa de produção enviou uma cópia para a Corwood e recebeu duas semanas depois uma resposta que afirmava que a Corwood tinha apreciado o filme) para se revelar finalmente ao mundo e tornar a sua obra cada vez mais visível – nos primeiros anos, Jandek vendeu uma quantidade irrisória de discos e não se imagina que o cenário se tenha modificado muito ao longo dos anos e das dezenas de discos editados pois, como o próprio documentário alerta, “nobody noticed.â€

A finalizar o documentário surge a entrevista telefónica - uma das poucas entrevistas existentes - que Jandek deu em 1975 a John Trubee para a Spin Magazine (outra das entrevistas abordadas durante o documentário é a feita por Katy Vine para o Texas Monthy que permanece até hoje vista com alguma desconfiança por se acreditar que não é autêntica). Reduzida do seu formato original de 50 minutos para uns essenciais 7 ou 8, esta entrevista é talvez aquela onde se revelam mais pormenores acerca de Jandek. Mas com algumas reservas. Apesar de esclarecer alguns pontos essenciais da sua ligação com as Corwood Industries, Jandek permanece silencioso durante quase um minuto quando Trubee o questiona acerca dos músicos que participam em alguns dos seus discos para depois, entre algum nervosismo, afirmar: “I don’t think I can tell you thatâ€. Quando questionado finalmente sobre a relação que a sua música desenvolve com a natureza e com elementos naturais, Jandek compara as relações humanas com as rochas. Para ele, a súbita ausência de alguém na vida de outrem é como o processo de deterioração de uma rocha e a consequente transformação em pequenos grãos de areia tocados ao de leve pelo mar: a rocha é o todo da memória e a presença, os grãos de areia a separação, o desfazer da memória inicial em pequenas partículas de recordação de alguém que já não se encontra presente. Jandek é Jandek. Essencial e fabuloso. O resto é história, pura história.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
04/04/2005