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Zé Eduardo
O Mauzão


É uma das grandes figuras do jazz português e será, provavelmente, a mais irreverente. Contrabaixista maior, editou em 2005 o disco Bad Guys - em que partilhou a liderança com o trompetista americano Jack Walrath - e que foi considerado um dos álbuns nacionais do ano. Já antes, com o seu trio Zé Eduardo Unit, tinha editado os álbuns temáticos A Jazzar no Cinema Português e A Jazzar ao Zeca, transformando com muito engenho temas populares em jazz. Actualmente forma com Carlos Bica e Carlos Barretto um forte trio denominado Contra3aixos, que promete dar que falar durante este ano. Para lá do papel de músico, é professor e acumula ainda a função de presidente da Associação Grémio das Músicas (AGM), colectividade que promove o jazz no Algarve. Sem papas na língua, com muita ironia e sem esconder alguma amargura, Zé Eduardo dispara em todas as direcções e assume-se como um verdadeiro bad guy.

Como decorreu a gravação do disco Bad Guys com Jack Walrath? Em Bad Guys há composições de todos os membros do quarteto e ainda uma música alheia (de Charles Mingus). Como é que se consegue lidar tanta democraticidade e formar um resultado coeso?

Conheço o Jack Walrath desde 1985. Nesse ano a Big Band do Taller de Músics de Barcelona, da qual eu era director, gravou um LP e o Jack tocou segundo trompete (a estante do trompete solista). Fez uns solos incríveis. Lembro-me que aproveitámos a sua presença no workshop que organizávamos anualmente e “voilá”… Desta vez, 19 anos depois, aconteceu exactamente a mesma coisa. O Pedro Costa da Clean Feed sugeriu-me gravar um disco fora da linha dos “A Jazzar”. Perguntou-me quem é que eu poderia convidar. Como desde há 20 anos eu e o Jack somos cúmplices, nomeadamente para inventarmos coisas em conjunto (mais ou menos loucas, como aquela em que ele queria comemorar a passagem do milénio, em Greenwich, à meia noite, com uma Big Band de All Stars… claro que nunca se fazem), não tive dúvidas: telefono para NYC: “Agora é que vamos partir isto tudo, Jack!…” Ele respondeu do outro lado: “Cool...”. Falei com o Ruben de Carvalho, director da Festa do Avante!. O Walrath já lá tinha tocado, no Palco 25 de Abril, numa super big band que eu dirigi em 1998 num espectáculo chamado “Canções de Atalaia”. Portanto foi fácil. O Ruben meteu-nos lá a tocar o “A Jazzar no Zeca” e ainda nos facilitou a vida para ensaiarmos no hotel onde eles alojam os artistas que vão à Festa. Nessa altura também começava o 3º Workshop “Tavira em Jazz” (organizado pela AGM). É claro que programei o Walrath como “artist in residence”. O Costa, por seu lado, marcou o estúdio e comprometeu-se a meter o CD cá fora, fazer publicidade e distribui-lo. Fizeram-se as contas, juntámos os trapinhos e o resto já é história. Ah… o Marc Miralta… pois… também me foi sugerido mudar de baterista. Acontece que o Marc (além de ter sido meu aluno desde puto) tocou e gravou com as primeiras formações do Unit em Barcelona. É um dos meus bateristas favoritos, junto ao Jordi Rossy e o Mário Barreiros. Contactei-o, negociámos o cachet e já está! O CD foi gravado numa tarde, por isso soa assim. Não foi desinfectado nem esterilizado como mandam as normas actuais. Quanto ao tema da “democraticidade” acho que, nestas coisas, a democracia acontece naturalmente. Não precisamos dos que nos dão explicações de democracia pelos “media”. Respondi à multi-pergunta?

Bad Guys tem uma personalidade própria, diferente dos anteriores discos A Jazzar…. Pretende continuar a trabalhar com o quarteto que gravou o disco em simultâneo com o trio Zé Eduardo Unit?


A personalidade dos “Bad Guys” é o somatório da minha com a do Jack, mais o contributo precioso das personalidades de dois grandes músicos que alinharam na aventura. Para que se saiba: o Jack Walrath também é um “Bad Guy”. Há vários anos que não gravava nada e estava “na prateleira” na sua própria terra. Sempre gostou de mandar “bocas”. Ali paga-se caro não dizer: “I love my country, God bless América!”. Continuar este quarteto seria muito interessante mas é completamente irrealista. Sai muito caro e há que ter em conta que eu sou uma espécie de proscrito (diga-se: “Bad Guy”) do Jazz português, o que torna certas coisas um pouco mais difíceis… Proscrito? Yep… estou consciente que um tipo como eu – polémico, reguila, respeitado e renegado - faz sempre falta para dar um pouco de cor à coisa (que tende a ser parda), um tipo de quem a malta pode falar mal à vontade - por trás - mas com quem tem “receio” de se cruzar – pela frente. Um “bocas” que adora armar confusão, principalmente quando quase tudo, nesta terra de tão nobre passado (segundo nos contam), parece estagnado, na mais espantosa incapacidade de movimento, imaginação, audácia. Sim… sou uma espécie de bobo das cortes medievais… Meto-me com as pessoas, provoco-as. Como dizia o Zeca, “o que faz falta é…” Em Espanha, onde vivi treze anos, não era preciso ser “desmancha-prazeres” nem mandar “bocas”. Eles sempre souberam armar confusão, diria que gostam mesmo de armá-la. Tiveram duas guerras civis no século XX e têm um movimento terrorista de estimação há mais de 35 anos. Claro que, e ao contrário de nós, já são actualmente uma das potências europeias mais competitivas e já controlam a maior parte da nossa economia… Já não haverá mais Aljubarrotas. Não é preciso. Mas voltando à minha carreira de “Bufão”… Lembro-me uma vez em que ameacei cortar o pescoço a um “importante promotor” que andava a importar e a vender as reedições dos primeiros discos do Unit, gravados em Barcelona, sem me dizer cavaco… o pobre ficou aterrorizado e contou a aventura aos colegas. Desde aí é perfeitamente normal que a minha entrada seja vedada em quase todos os festivais nacionais. Eu faria o mesmo a um “Bad Guy” com tamanha ousadia. É pena é que “Bad Guys” a sério não abundam cá por estas terras. Aqui a maioria dos Bad Guys pratica um tipo de trafulhice atabalhoada e “chico-espertice” ingénua, com as habituais frases “é tudo malta baril” e “tá-se bem” e somos “um povo especial meu, temos brandos costumes”. A maioria das vezes nem isso conseguem fazer bem porque comem-se uns aos outros na sua própria ganância subdesenvolvida. Mas isso é outra história…faz parte da herança de não termos entrado na 2ª Guerra Mundial e não termos tido o Plano Marshall ou não ter havido o terrível e ameaçador “golpe” dos “comunas” em 1975. Se tivesse havido, nesta altura já não haveria criancinhas para a Casa Pia. Tinham-nas comido ao pequeno-almoço. Entrámos para a CE por Decreto, tarde. Em 1986. Isso paga-se. Respondi? Já agora…também me lembro de chamar corruptos a uma série de pessoas “respeitáveis” do djézz nacional, publicamente, há dois anos, na “Grande Festança do Djézz” no São Luís. Com estes e outros exemplos acho que já dei motivos suficientes para me considerarem o Marilyn Manson do djézz aqui do burgo. Ah… e sem falar dos arquivos, que se suspeita estarem em meu poder, que desmentem uma série de mentiras (que agora já são verdades e, no futuro, dogmas) sobre a história do Hot Clube nos últimos 30 anos. Isso é um assunto mais sério. Mas tudo se resolverá quando eu ficar gá-gá (aí candidato-me à Presidência da República) ou dar-me o badagaio e os arquivos “desaparecerem” ou forem “recuperados e reclassificados”. Eu faria o mesmo. Tudo a Bem da Nação. Definitivamente os “Bad Guys” não interessam ao progresso de nenhum país sensato. Quanto ao trio com quem toco habitualmente… Adoro tocar com o Santandreu. Gosto muito do seu sentido de humor e da pureza intelectual enquanto ser humano. Ele sim, é um autêntico “Good Guy”. Talvez um dos últimos. Também conheço e toco com o Bruno há muitos anos. Inclusivamente tenho um Unit gravado em 98 – já em Portugal - por mim produzido e (claro…) nunca editado, em que ele é o baterista. Acho que todos gostamos de tocar uns com os outros. Enquanto puder, está claro que vou manter este trio. Quando acabar, vou trabalhar no que fizer falta. Não tenho má boca e já fiz de tudo na música. Felizmente, trabalho não me falta. Também estou habituado a inventá-lo quando não existe.

Depois do cinema português e de Zeca Afonso, qual será o próximo autor/tema homenageado na série “A Jazzar…”? Já há ideias?

O Pedro Costa da Clean Feed talvez possa responder melhor que eu a essa pergunta. Ele já tem as suas ideias. A mim apenas me compete concordar, pô-las em música e, preferentemente, divertir-me no processo.

Qual a sua opinião sobre a editora Clean Feed? A ligação à editora é para continuar?

Acho que sim. Inclusivamente a Associação Grémio das Músicas (AGM) já co-produziu com eles 4 CDs. Neste momento acabaram de gravar os T.E.C.K. String Quartet ao vivo no Teatro Lethes, em Faro, em co-produção com a AGM. Quanto a mim… acho que, nesta altura do campeonato, já tanto me faz. Se tiver que estar sem gravar outros 12 anos (não gravei nada de 1990 a 2002) não deixarei de tocar melhor ou pior que agora e não deixarei de estudar todos os dias que posso. Não é um assunto que me preocupe demasiado. Vivo e saboreio a vida cada dia que passa. Quando me levanto de manhã e vejo o meu velho contrabaixo sei que tudo está certo. A Ordem do Cosmos manteve-se.

Numa entrevista em Outubro, Carlos Bica disse-me que planeavam gravar o disco do projecto Contra3aixos em Fevereiro. Como está a decorrer a preparação do disco e quando será editado?

O disco será gravado nos dias 20 e 21 de Fevereiro. Será editado em Maio e o lançamento está previsto para Junho. Aqui não posso deixar de me referir ao entusiasmo e empenho do Carlos Barretto neste projecto. Sem ele tudo teria sido muito mais difícil ou mesmo impossível. Desde os tempos do conservatório (onde fomos colegas) que o Cató é um lutador obstinado. Desde estas linhas faço-lhe uma vénia e sussurro-lhe ao ouvido que “a sorte protege os audazes”. Acho que nos vamos divertir bastante a tocar e gravar o CD, o que resultará num assunto muito grave (piada para músicos).

O projecto Contra3aixos vai começar agora uma tour por todo o país. O que esperam destes espectáculos?


Depois de todos estes anos nesta “vida” quando subo a um palco quero “curtir” e transmitir essa energia aos que estão a ouvir-me. Faço as minhas “performances” o melhor que posso mas não “sofro”. Quando era novo sofria muito quando tocava…não dá: o público vai-se embora mal disposto sem saber porquê. Claro que nem toda a gente gosta do meu sentido de humor pessoal e musical. Mas, sinceramente, que aborrecido seria se todos se rissem ao mesmo tempo como nos “shows” da televisão-nossa-de-cada-dia…

Actuou recentemente na Galeria Zé dos Bois. Como foi a experiência?

São uns putos porreiros.

Onde prefere actuar? Em espaços alternativos como a ZDB, em clubes bares especializados como o Hot Clube ou nos festivais locais, descentralizando o jazz?

Prefiro tocar para muita gente. Claro que é complicado depois do que expliquei antes...

É mentor da Associação Grémio das Músicas, que promove o jazz pelo Algarve através de concertos, workshops, etc. Quais são os próximos projectos da associação?

Gostava de ser mentor (essa palavra tresanda a poder revolucionário) mas apenas sou o Presidente da Direcção e este ano temos eleições. A primeira meta é que o IA/MC pague a tempo e horas. Temos quatro grandes projectos, todos virados para a formação, ao abrigo do “apoio sustentado” que são protocolos de dois ou quatro anos. No nosso caso, e de muitas outras entidades congéneres, vamos sempre pelos dois anos pois nunca sabemos qual será o próximo governo, ministro, secretário de estado ou mesmo director que vai mudar tudo o que o anterior fez. Esta prática, tão portuguesa como as sardinhas assadas ou os caracóis, obriga os agentes culturais às maiores acrobacias. Mas já estamos todos treinados. Felizmente não tem havido baixas significativas na frente de combate. Desde aqui outra vénia aos meus indomáveis colegas “associativos”. Dos projectos, passados e futuros, e como isto é uma webzine, o pessoal que consulte o nosso site: www.gremiodasmusicas.org. Desculpem-me a publicidade. Também podem mandar bocas à vontade no fórum.

Com quem gostava ainda de gravar um disco?

Com o Candidato Vieira. Acho que depois desse disco ele seria finalmente o Presidente que todos desejamos e merecemos e eu teria o “tacho” que mereço por todos estes anos a dizer disparates.

Cascais Jazz 1976

Carlos Bica editou o ano passado o disco Single, um arriscado álbum de contrabaixo solo que acabou por ser muito elogiado. Carlos Barretto editou o Solo Pictórico. Tal como os seus colegas dos Contra3aixos, tem algum plano no sentido de editar um disco a solo?

Não posso dizer “desta água não beberei” mas considero-me mais um homem da secção rítmica que gosta de experimentar ideias com outros músicos. Raramente ouço contrabaixos na minha cabeça. Ouço saxes, guitarras de rock (não gosto do som da guitarra de jazz), trompetes, baterias, violinos, cellos, trompas, tubas… eu sei lá. Aliás tento – muitas vezes - tocar como se não fosse contrabaixista. Adoro o meu velho Fender Precision e continuo a estudar com ele. Aqui entre nós: o A Jazzar no Zeca foi praticamente composto no Fender. Adoro-o. O Costa cortou-me uma curta intervenção no último tema desse CD – que aliás é uma desbunda free - com o argumento que na sua editora não se fazem overdubs”… Tretas!… Overdubs não podem fazer mas podem editar nota-a-nota com o “Pro-Tools” (passe a publicidade) as passagens “baldadas” da maioria do pessoal. Jamais lhe perdoarei. Também gosto de tocar piano e sintetizadores, mas aí sou outra personagem. Mudo de nome e fico ainda mais parvo. Ah… e contradição das contradições: também toco guitarra-jazz. Ajuda-me a compreender o mistério dos instrumentos de cordas além de que a posso fazer passar por pedais e outros “gadgets” afins.

Que análise faz do actual momento do jazz nacional?

Desde há uns anos a esta parte que o panorama tem melhorado muito (principalmente na qualidade e quantidade de novos músicos). Do lado dos “opinion makers” (vulgo, críticos) vejo, com pena, que os tipos que sabem de jazz a sério estão a ficar velhos e que os novos já estão muito ao estilo “MTV” ou seja: tudo é descartável. Fast food, fast jazz, fast sex, fast art. Fast bullshit. Os “velhos” lá tinham e têm os seus tiques mas, pelo menos, sabem bastante desta Música que amam. O seu maior defeito sempre foi uma grande dose de paternalismo que se lhes escapa quando “correm” os discos portugueses todos a quatro estrelas (será que somos todos tão bons?) Mas é boa gente. Vêm do tempo em que “ouver” (© Zé Duarte) jazz em Portugal era um acto de coragem e uma postura política. Têm desculpa. Os grandes Festivais andam por aí com maiores ou menores venturas. Geralmente programam estrangeiros e 1 (um) grupo nacional para serem politicamente correctos e terem apoios no ano seguinte. Também começam a aparecer outro tipo de iniciativas que são exactamente o contrário. Paternalistas, só programam grupos portugueses e ainda por cima pagam-lhes abaixo do “cachet”. Tresanda a paternalismo foleiro e à nacional-trafulhice pós-moderna misturada com o tradicional nacional-porreirismo. Pessoalmente acho que devem prevalecer as leis da oferta e da procura… ou seja: quem tem unhas que toque guitarra. As velhas regras do mercado: os melhores que tenham os melhores “gigs” e que ganhem mais dinheiro. Menos mal que o público não é estúpido. E em época de crise ainda menos. Quanto à questão do mercado de trabalho: claro que maior oferta acaba por gerar mais procura e, portanto, não há terreola, por esta Lusitânia fora, que não tenha uma rotunda à entrada e um festivaleco de jazz no tradicional Auditório Municipal. Quem me dera isto (as rotundas) quando eu tinha 20 anos. Demorávamos um dia inteiro para ir de Lisboa a Faro…ai ai quem se lembra das 365 curvas da estrada nacional – na serra - à entrada do Reino dos Algarves? Se não fosse o medronho para as somar aos pares… bem, ficava sempre uma de fora. Trezentos e sessenta e cinco aos pares? “Life is a Role Playing Game with no savegame option.”


Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
14/01/2006