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PAPISA
Aprendiz de feiticeira


Na sua autobiografia constam outras bandas mas Rita Oliva parece ter encontrado em PAPISA o veículo mais ajustado às suas necessidades. No final de 2016 lançou um EP que anuncia a sua missão e o seu propósito nesta existência a solo. Nele assinou canções sem medo do rock nem da crueza. Sempre intensas, sempre belas - e com rasto de feitiço.

Em conversa com Rita Oliva, falamos sobre o que é ser mulher no mundo da música nos dias que correm, em auto-suficiencia e ficamos a saber que o seu disco de estreia a solo chega, finalmente, em 2018. E, perto do fim, assumiu-se sem restrições: podem dizer muita coisa sobre ela mas o que ela se sente realmente é aprendiz de feiticeira.
Antes de chegares aqui fizeste parte de outros projectos, como Cabana Café e Parati...

Isso, tive outras bandas antes de idealizar Papisa. Em todas eu dividia a parte criativa com outras pessoas, e foram anos que me ensinaram muito, tanto musicalmente quanto em relação ao mercado, às formas de trabalhar, sou muito grata por todas minhas experiências anteriores.

O press release do teu EP fala no simbolismo, misticismo e elementos da natureza. Como acreditas que relacionaste esses temas nas tuas canções?

Esses aspectos estão profundamente ligados ao processo de criação do EP, que foi muito inspirado na minha experiência em retiros e vivências ligados à espiritualidade. Usei elementos rituais para criar o ambiente de imersão onde gravei e produzi as músicas, com a intenção de despertar um sentimento de conexão, de presença. E nas apresentações, busco compartilhar esse ambiente com o público, levando esses elementos para o show. Faz parte da linguagem do projeto. Nas letras, tem questões trazidas pelas vivências que são significativas para mim, como a percepção mais cíclica do que linear do tempo, que se desenvolve como uma espiral. O ‘lobo guará’ apareceu para mim em um momento de sincronicidade, que considero mágico, e é citado em “Instinto” como um aspecto interior que podemos acessar. “Delusional” fala de impressões após um dos retiros, fala sobre nossas ilusões e nossas máscaras, e o que tem por trás delas. Existem pontos específicos nas letras, mas a ideia é que as camadas de simbologia apareçam também nas melodias, nas estruturas das músicas, nos shows, no cenário, na forma da apresentação. E isso tá relacionado com a percepção, com engajar os sentidos, com as sutilezas. A espiritualidade e o mistério fazem parte de um universo que me interessa muito desde pequena, que estudo até hoje, então acho muito interessante e divertido me relacionar com ele pela música e pela arte.



Li algures que tocaste tudo sozinha no teu EP, e produziste o registo. Como foi esse processo?

Foi um processo intenso. Eu criei as músicas em casa, tenho um homestudio, e fui construindo o EP de forma artesanal, testando possibilidades, tocando, experimentando, ouvindo opiniões e validando minha intuição, baseando as decisões no que eu estava sentindo. Mergulhei nas músicas e na energia da Papisa, trabalhei no meu ritmo. Tive algumas trocas com um amigo que mora em outra cidade, enviei algumas demos para ele, inclusive outras que não entraram no EP, ele me enviou ideias, e fui adaptando tudo isso conforme as músicas iam tomando forma. A princípio as músicas tinham beats eletrônicos, mas comecei a tocar bateria junto com as bases e senti que queria gravar a bateria de forma mais orgânica. “Instinto”, é uma música em que gravei todos os instrumentos e criei todo o arranjo, por isso tenho um carinho especial por ela. Nas outras tem alguns synths, ideias de beats, solo de guitarra de Delusional, que convidei outros músicos para fazer. Gostei de como tudo foi feito porque aprendi muito durante o processo. Considero as contribuições que tive muito valiosas para o desenvolvimento do trabalho, ao mesmo tempo que essa liberdade para criar do meu jeito é muito motivadora para mim.

Li também que isso foi também uma afirmação, um statement, pelo estigma que exista da mulher que é apenas cantora.

Olha, eu produzi o EP simplesmente porque senti que sabia como queria que as músicas soassem e porque gosto muito de trabalhar com autonomia. Para mim, esse é o ponto principal. No fim, isso acaba sendo uma afirmação porque infelizmente não é um senso comum que uma mulher pode tocar todos os instrumentos, produzir, ao mesmo tempo que vejo cada vez mais mulheres fazendo isso hoje em dia. Então acho sim que é preciso olhar para o trabalho feminino de forma mais ampla, valorizando todas as etapas, inclusive de composição, idealização, ao invés de analisar superficialmente e achar que somos simplesmente a estampa de um produto final.



O nome PAPISA vem também daí, presumo?


Papisa vem da energia com que me sintonizei para criar o trabalho, e acho que de alguma forma também se relaciona com todas essas coisas de que estamos falando.

A escolha da editora também não me parece inocente. Fala-me da PWR Records e da sua missão.

A PWR Records é um selo voltado para a representatividade, que surgiu com a ideia de destacar e promover o trabalho de bandas que possuem ao menos uma mulher na formação. Fui a primeira artista do casting a ser lançada, o selo surgiu praticamente ao mesmo tempo em que a Papisa, e fui muito pela intuição, por sentir que estava no caminho certo. Hoje o selo cresceu, muitas das bandas da PWR são formadas exclusivamente por mulheres, ou com mulheres em sua maioria, ao mesmo tempo que o selo caminha no sentido de promover oficinas, buscando também a formação musical e profissional de mulheres e de pessoas interessadas em fortalecer esse movimento. Sinto que temos bastante a desenvolver nesse sentido, que é um campo de atuação amplo que pode e deve ser cada vez mais ocupado.

As próprias fotos que tiraste para este projecto, belíssimas, são resultado de auto-retratos. Este projecto é a vitória da autossuficiência?

Obrigada, que bom que gostou das fotos! De novo, eu tirei as fotos por uma questão de sentir como eu queria fazer, e a forma com que eu queria fazer. Foi um processo interessante de brincar com a câmera, e me deu uma sensação boa de autonomia e liberdade, tanto que acabei despida no final, algo que não planejei. Então acabou sendo uma vitória pra mim, de certa forma, como um encontro íntimo com meu próprio trabalho.



Que outras mulheres te inspiram neste momento no Brasil? Dentro e fora da música?


Cecília Valentim é uma mestra para mim, uma pessoa que me ensinou e me ensina muito tanto na formação que ministra, que conclui ano passado, quanto na sua forma de se relacionar com o mundo. A Luiza Lian com seu último trabalho, o Oya Tempo, é uma artista e amiga que me inspira muito pela forma e pelo conteúdo. Todas as mulheres que fazem o Girls Rock Camp acontecer, que é um acampamento musical dedicado a ensinar garotas a tocar, compor, produzir, formar banda. Admiro também a Marisa Monte, Tiê, La Baq, pela auto gestão das suas carreiras.

Tens andado a mostrar as tuas canções pelo Brasil. Como tem o público reagido à tua proposta?

Senti uma resposta muito positiva nesse último ano, um interesse real das pessoas em relação ao trabalho, aos temas e à energia propostos. Gosto muito quando as pessoas me mandam suas versões das músicas, ou me contam o que sentem quando ouvem meu som. Também fico muito feliz com a aproximação de pessoas que estão criando ou produzindo seus primeiros trabalhos e vêm mostrar músicas, trocar experiências, adoro esse contato. Inaugurei um show experimental na semana passada. que é como um ritual, em um teatro, com mais quatro mulheres formando a banda, e tivemos uma resposta maravilhosa, o teatro encheu em uma segunda-feira. Isso tudo me motiva muito para continuar criando e trabalhando.

São Paulo é mesmo a cidade onde tem que se estar no Brasil para as coisas acontecerem mais rapidamente no mundo da música?

Não acho que isso é uma premissa, apesar de eu mesma me sentir estimulada a ficar na cidade por conta de trabalho e também porque tem muita atividade cultural acontecendo. Muita coisa acontece por aqui, então um artista em movimento vai passar por São Paulo de uma forma ou de outra. Mas vejo bandas morando em outros lugares do Brasil e com trabalhos ganhando cada vez mais força. Sinto que a circulação é importante. Temos eventos e festivais acontecendo por todo o país, e mais importante do que estar em São Paulo é estar atento a tudo que está rolando por aí, ir até o público, tocar, se relacionar.



A música é a tua vida neste momento? Qual é a tua área de formação?


Sou formada em Comunicação Social, mas me dedico à música, sim, com meu projeto, tocando com outros artistas. Já dei aula de canto e piano, e recentemente comecei a dar oficinas, que é um campo que quero desenvolver mais.

Já fiz esta pergunta a muitos homens e acho que raramente a tenho feito a mulheres: como é que uma mulher olha para o Brasil dos dias que correm?

Depende do ângulo. De um lado mais próximo, dentro de uma bolha, vejo um lado artístico de florescimento, de expressão, da força feminina. Mas em um aspecto mais amplo, temos uma tendência conservadora e retrógrada que acho preocupante. Um episódio político dessa semana ilustra isso: foi aprovada a PEC 181, uma proposta de emenda constitucional que pode criminalizar o aborto em caso de estupro, de anencefalia do feto ou de risco de morte para a mãe, direitos já conquistados anteriormente. A proposta inicial era aumentar a licença maternidade em casos de bebês prematuros, mas houve uma articulação sorrateira que modificou o texto. E foram 18 homens que votaram a favor, a respeito de um assunto que cabe à mulher decidir, já que estamos falando do corpo feminino , em primeiro lugar. Acho revoltante e hipócrita a imposição de certas crenças e valores de forma constitucional, em um país tão plural como o Brasil, inclusive espiritualmente falando. Nossa espiritualidade é extremamente diversificada e ampla, mas existe uma mentalidade moralista que quer impor uma visão única.

“Cat Power psicadélica”, “bruxa sabia”, entre outras coisas. O que é que ainda ninguém disse sobre ti que gostavas de ouvir um dia?

Acho os títulos curiosos, porque falam de impressões, mas eu realmente não sei te responder isso. Acho que acima de tudo quero ter meu trabalho reconhecido e valorizado. E quero ser uma bruxa sábia quando tiver meus 70, 80 anos. Por enquanto me sinto aprendiz de feiticeira. [risos]

O disco, com princípio, meio e fim, está para breve?

Está em desenvolvimento, programei para esse ano, mas como os shows me mantiveram muito ocupada, decidi esperar para lançar em 2018.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
11/11/2017