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Duda Brack
Agredir o agradar, agradar o agredir


Duda Brack tem pouco mais de vinte anos mas já parece ser bem senhora do seu nariz. No seu disco de estreia, É, a brasileira mostrou um conjunto de canções com uma qualidade e densidade interpretativa merecedoras de muita atenção. Para se mostrar ao mundo, decidiu dar voz a oito canções inéditas de compositores contemporâneos, como Dani Black, Carlos Posada, César Lacerda ou Caio Prado. E ousou dar-lhes o seu ADN, assinando um disco que muitos apelidaram de suicídio comercial.

Aqui não há medo, nem cheiro dele. Duda Brack faz o que lhe apetece e com todo o orgulho. "Se todo artista for puta de esquina /  Se meu cachê for dez real / A casa não caiu", diz em "A casa não cairá". Porque isto tem tudo a ver com liberdade, não tem? Em entrevista com Duda Brack, tiramos o retrato da artista enquanto jovem, procurando conhecer um pouco melhor as suas ambições, o seu objectivo enquanto criadora. Se ainda não tiveram a sorte de a conhecer não percam mais tempo: as suas palavras são como um espelho.
Sei que estudaste na faculdade de música da UNIRIO. Olhando para trás, quão importante foi essa formação na música que fazes hoje. Tiveste de deixar alguma coisa para trás?

Na verdade eu cursei apenas quatro semestres. Tranquei a matrícula em 2013, para poder viajar e cantar por festivais pelo interior do Brasil e ano passo tornei a trancar, desde que lancei o disco, pois não consegui conciliar as duas coisas. E, na verdade, achei que a faculdade nesse momento só me tomaria tempo. Minha relação com a música é muito intuitiva, e muitas vezes se dá à partir de aspectos que não musicais. A faculdade aqui tem uma visão muito burocrática e teórica sobre a música. Ou seja: cursar licenciatura em música na Unirio não me ensinou nada a respeito do exercício do meu ofício enquanto cantora e tampouco influenciou no meu processo de criação. Acho que o que eu busco na música se difere do que a universidade se propõe à entregar - pelo menos no curso de licenciatura.

Entre esse momento e o lançamento do teu disco de estreia muita coisa aconteceu. Estou certo? Faz-nos um resumo.

Tudo aconteceu meio junto, na verdade. Participar de um circuito de festivais entre 2012/2013, mais cursar música entre 2012/2014 mais formar uma banda, produzir e gravar um disco entre 2013/2014 mais lançar o álbum e desdobrar este trabalho em outros movimentos 2015/2016. Foram processos que se "inter-cruzaram". Alguns cessaram, outros estagnaram, outros permanecem.



O teu disco de estreia chama-se É e foi lançado em 2015. Como foi o processo? Sei que nele recompões oito canções inéditas de compositores contemporâneos. Porquê?


Acho que a escolha por este conceito (de só gravar canções inéditas de compositores contemporâneos a mim) vem de um desejo de construir algo autêntico e autoral, em que o público pudesse associar a minha personalidade artística. Algo onde eu tivesse a liberdade de impor a minha visão de mundo. E nada mais orgânico e natural do que gravar as pessoas que estavam ao meu redor, com quem eu já dialogava, com quem já havia estabelecido uma troca. Todos os compositores que gravei são amigos, e eu tive a oportunidade de ir "pinçando" dentro da obra deles, canções que eu me identificasse.A "chegança" dessas canções, foi o que deu o "start inicial" ao que viria a ser o disco. Durante esse processo, ocorreu também um processo meu (voz e violão), de compreender o que cada canção representava pra mim. Isso possibilitou imprimir minha assinatura em cada canção, distanciando do olhar original de cada compositor. Foi depois desse primeiro processo de "recomposição" que formei a banda, e apresentei cada canção desta forma (eu, cantando, voz e violão) prós músicos. Sobre o meu "ajuntamento" com os meninos (Yuri Pimentel no baixo, Gabriel Ventura na guitarra e Gabriel Barbosa na bateria): tudo começou com um pedido de show que, depois, se dissolveu, mas a gente gostou tanto de tocar junto que seguimos desenvolvendo uma pesquisa de criação em cima desse repertório. Passamos uns oito meses ensaiando na sala da casa do baixista, e quando achamos que já estávamos com algo sólido e coeso em mãos, chamei Bruno Giorgi pra produzir. Gravamos as bases ao vivo, em quatro tardes, num estúdio aqui no Rio chamado Tenda da Raposa. Depois gravamos o violão da faixa 01, alguns completementos e as vozes - muita coisa em casa, e algumas no estúdio O Quarto. Depois, Bruno mixou e masterizou também n'O Quarto.

Torna-se mais difícil “apropriar-se” da alma e domar uma canção assim?

Pra mim, torna-se mais difícil e desinteressante se não é feito dessa forma. Não sei trabalhar de outro jeito.

Este disco tem uma intensidade de cortar à faca. É um disco com um som cru, visceral, que não esconde nada. Era tua intenção que soasse assim?

Desde o princípio. Desde antes de eu formar a banda, ou começar a trabalhar no disco, eu já sabia que queria provocar algo que agredisse no agradar e agradasse no agredir.



O que queres que a tua música seja?

O que ela é. [risos]

Leio no press release que este disco se apresenta como um suicídio mainstream. Por que motivo o pensaste assim?

Esta frase quem disse não fui eu, e sim o Mauro Ferreira, que é um respeitado e renomado crítico de música aqui no Brasil. Acho que ele quis dizer isso porque o disco não "se dobra" às convenções do POP-mainstream. Acho que este disco soa bastante ousado, inquieto e subversivo. Eu mesma não pensei muito nisso. Pensei em deixar um registo fiel e legitimo de quem eu era, naquele momento. Só prezei pelo que eu acreditava artística e esteticamente (sem pesar aspectos comercias e de mercado, ou de média).

Como é ser uma mulher jovem, sem medo da sua sexualidade e livre na indústria musical brasileira em 2016?

"Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é", né? Eu escolhi esse caminho todo, assim, dessa forma, porque não saberia ser de outro jeito. A música é onde eu existo, e o que me permite romper com todas às amarras que a sociedade tenta me impor. A música, a arte, me fazem livre, e me fazem conectar com o mais profundo e sincero da minha essência. A música me devolve o meu eu, e me "empodera" como dona do meu universo. A grande dificuldade da vida é que, pra se relacionar, é preciso conquistar um equilíbrio, um diálogo, uma coexistência, entre dois (ou mais) universos. E o outro segue sendo um mistério. E muitas vezes tanta plenitude pessoal não significa plenitude e congruência dentro do todo. As vezes, estar "à margem" acarreta uma série de dificuldades e muita solidão. As vezes eu sou absolutamente inadequada e incompreendida também.

© Daryan Dornelles

Como acabou por ser a reacção do público e da imprensa no Brasil?

Muito melhor do que a minha expectativa! Fiquei contente com a receptividade das pessoas.

Interessa-te mostrar este disco em Portugal?

Muuuuuiiiiiiitooooo! com direito a vinho do Porto e pastel de Belém. [risos]

Duas perguntas “anexas” ainda sobre o teu disco: o que significa o seu título e o que queres que se entenda com a sua belíssima capa?

Sobre o título: tem a ver com estar sendo, no presente momento. Tem a ver com só ser, sem querer ou pretender ser, apenas estar sendo. Tem a ver com estar me sendo. Verbo intransitivo. E, também tem a ver com reverenciar uma subjectividade - que é uma das propriedades que mais me seduz na arte: a possibilidade de que cada pessoa sinta e interprete "É" de maneira pessoal e intransferível. Sabe? Sugerir sentidos, em vez de apontar significados determinantemente fechados em si. Sobre a capa: é um auto-retrato de uma artista húngara chamada Flora Borsi, que eu descobri na internet enquanto pesquisava referências para a capa do disco. Achei a possibilidade da capa ser um processo de apropriação semelhante ao que acontece com as canções que gravei muito coerente com o conceito todo do disco, e com a essência do meu ofício de interprete. Então, enviei um what's app pra ela com um link secreto do meu disco e solicitei a imagem para usar na capa. De cara, a imagem me absorveu, e eu não entendi bem por que. Eu consegui "diagramar" elementos que me interessavam, e que eu achava que estavam presentes no álbum - o surrealismo, a nudez, a feminilidade, a subversão, a esquizofrenia, a densidade, a sombriedade, o movimento, o enigma, a contemporaneidade, a visceralidade. Mas tinha algo a mais que me emocionava e que se conectava profundamente com a minha alma que eu não conseguia compreender direito o que, nem de que natureza era. Foi quando fiz os primeiros shows de lançamento do disco que compreendi: esta imagem representa o que eu faço no palco, o modo como eu me locomovo dentro deste trabalho, o modo como eu me relaciono com a música: uma constante dinâmica entre se esconder e se revelar.

Quem é que admiras realmente na música brasileira dos dias de hoje? Com quem é que gostavas de partilhar uma canção?

Tem muitos artistas e bandas contemporâneos me atravessando: Posada, RUA, Ventre, Caio Prado, O Terno, Otto, Ian Ramil, Karina Buhr, Ana Cañas, Paulo Monarco, Metá metá, LIRA, Iara Rennó, Tulipa Ruiz, Cícero, Diego Moraes, Daniel Chaudon, Johnny Hoocker, Chico Chico, Julia Vargas, Lucas Vasconcellos, Dani Black, Céu, entre outros. Tenho a sorte de já poder partilhar canções com quase todos esses nomes que citei.



O que te apetece dizer sobre o estado político brasileiro actual? O que se passou ontem, o impeachment, como te parece tudo isto?

Acredito que a raiz do problema na política brasileira é muito mais profundo do que o impeachment ou não da presidente Dilma. Precisamos aprender a exercer melhor a nossa democracia, e isso é uma responsabilidade nossa, assim como é um direito (que muita das vezes nos é negado). Precisamos ter mais voz activa em decidir quem nos representa em todas as estâncias. Eu acho que nós precisamos é de uma reforma política e constitucional urgentemente. Precisamos rever a função de tantos cargos políticos (como deputados, senadores e ministros) e a verba que é direccionada aos salários destes. Precisamos de reformas na educação, na cultura, na saúde, na economia, na agricultura. Precisamos reinventar o Brasil, porque até aqui deu errado, e a tendência é só piorar. Entender o impeachment como solução me soa tão raso... É necessário que a gente pense em uma reforma geral, do micro pro macro.

O futuro parece negro neste momento?

Isso vai depender da disponibilidade do povo em fazer de toda essa circunstância algo positivo, ou negativo. Isto é: vai depender do real interesse do povo em buscar esclarecimento e se engajar pelas lutas que são colectivas e substanciais.

Já paira sobre a tua cabeça um segundo disco? Queres que seja radicalmente diferente deste?

Já penso sobre, já tenho ideias e canções... O que me falta compreender é se quero dar um passo para frente ou para o lado. [risos] Com certeza será diferente, eu não gosto de me repetir. Mas ainda não sei se será radicalmente divergente ou se será uma linha de continuidade do que já venho propondo.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
19/04/2016