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Panda Bear
Para sempre um alienígena


A esta altura do campeonato já toda a gente ouviu e amou Panda Bear Meets the Grim Reaper, indubitavelmente um dos maiores (e melhores) lançamentos do início de 2015, mas na fria manhã de Dezembro em que encontrámos Noah Lennox o lançamento ainda era uma data semi-distante e tinham sido poucos os ouvidos agraciados pelo toque do quinto disco do norte-americano. O Bodyspace foi saber mais sobre este encontro de Panda Bear com a Morte, numa conversa centrada em métodos de trabalho, inspirações, Lisboa e frango assado. Sim, leram bem: frango assado.
O Panda Bear conheceu a “Morte”. Como é que ela é?

Brutal, pelo menos ao primeiro contacto, mas, no final de contas, prestável. Eu diria que conhecê-la foi uma experiência agradável, mas, nos primeiros momentos, algo complicada.

Certamente terá sido agradável, e isso é algo que se sente em termos sonoros, pois apesar do título sombrio, eu diria que este é um álbum bastante mais “festivo” e físico que Tomboy, por exemplo.

Sim, e o título supostamente reflecte essa relação, apresentando uma coisa que, de alguma forma, é negra e intensa, mas num disfarce despreocupado e quase cómico. Eu diria que é quase uma maneira de enganar uma pessoa e levá-la a lidar com algo que, de outra forma, talvez tivesse dificuldades em enfrentar, tal como quando queremos dar um medicamento que sabe muito mal a uma criança, e acrescentamos açúcar para ser mais fácil para ela.

Ainda sobre o título, se o compararmos ao do mais recente disco de Avey Tare, Enter the Slasher House, vemos que ambos partilham esta atmosfera meio sombria. Isto foi algo combinado?

Não, mas é engraçado, porque parece que nós [artistas] andamos todos sintonizados no mesmo comprimento de onda; o álbum do Flying Lotus (You’re Dead) talvez seja o exemplo mais óbvio disso. Mas é estranho porque tanto eu como o Dave (David Portner, Avey Tare) fizemos uma canção que intitulámos de “Cosplay”, uma coincidência que me parece algo de loucos. Mas não sei, talvez seja algo tem andado pelo ar ultimamente, que faz com que as pessoas pensem em coisas mais “pesadas”. Tenho a sensação de que, nos últimos tempos, têm acontecido mais desastres, e a ameaça do Armagedom anda a entrar na cabeça das pessoas, e suponho que essas coisas têm influenciado a malta mais criativa. Mas não sei exactamente o porquê de termos ido todos por esse caminho… Mas quanto ao Dave, ele adora filmes de terror e a abordagem dele é um sincero abraçar das coisas mais negras e deformadas, enquanto eu não consigo lidar mesmo com isso, pelo que fico algo a meio caminho, mas estamos sem dúvida no mesmo “barco”.

E olhando para os títulos das canções, em particular para “Mr Noah”, podemos dizer que este é um álbum mais pessoal, em que o vemos um Panda Bear a olhar para si próprio e para a imagem que tem si mesmo?

Sim, se bem que essa canção em específico acaba por não ser o melhor exemplo, porque na verdade eu fi-la como uma espécie de versão caricatural, cartoon-esca de mim próprio, mas no geral eu diria que o álbum acaba por ser o contrário. Antes, o meu “modus operandi” passava por usar a introspecção como uma ferramenta para escrever canções que eu esperava que fossem úteis para alguém que as ouvisse, mas eram sempre um processo em que só olhava para “dentro”. Mas agora ponho-me a pensar que talvez a paternidade tenha sido o ímpeto para esta minha mudança de perspectiva, que me fez ver que, apesar de a introspecção ser boa, após um certo limite essa mesma introspecção acaba por ser puro narcisismo. E por isso, foi um desafio muito importante para mim pegar em cada uma destas canções (que, apesar de tudo, nasceram todas de um lugar muito pessoal e introspectivo) e partir dessas perspectivas pessoais e partir para temas mais universais e globais, coisas maiores que eu.

Neste álbum encontramos “Príncipe Real”, canção cujo título alude à tua “relação” com Lisboa, cidade onde já vives há 10 anos. Tendo em conta que este é a segunda canção centrada em algo tão especificamente lisboeta (a primeira tendo sido “Benfica”), achas que a cidade se está a “entranhar” na tua música?

Tenho quase a certeza que sim, mas é difícil para mim “traçar a linha”, não há uma ligação literal que eu possa especificar. Acredito piamente que, quando és uma pessoa criativa, és quase que um filtro de todas as coisas que experiencias no teu ambiente e das coisas em que pensas, que obviamente são “ditadas” pelo que acontece à tua volta, por isso tenho a certeza que Lisboa arranjou maneira de entrar na minha música de algum modo que eu não consigo bem discernir. Para ser mais específico, não há nada em “Príncipe Real” que fale do bairro em si, mas apanho-me muitas vezes a querer usar como títulos para canções os nomes de sítios ou coisas locais da minha vida, e recentemente, visto que vivo em Lisboa, tenho tido o impulso de pegar em coisas daqui e usá-las como “pistas” para a minha existência. Curiosamente, nunca tive o impulso de fazer referência a alguma coisa de Nova Iorque, mas também faço muitas referências a Baltimore, onde nasci, e é daí que vêm títulos como “Loch Raven” [de Feels, álbum de 2005 dos Animal Collective] ou “Boys Latin”, que é o nome duma escola preparatória da cidade. E não é algo que eu planeie antecipadamente, mas acho que o faço para dar mais alguma informação àquelas pessoas que, quando se apaixonam pelas canções, vão um pouco mais fundo e procuram um pouco mais sobre elas; é uma forma de lhes dar mais algumas pistas sobre o significado das canções e sobre a minha própria vida.



E ao olhar para os títulos das canções, podemos ver algumas referências à cultura pop. Por exemplo, “Davy Jones Locker”, dos Piratas das Caraíbas, ou “Shadow of the Colossus”, título de um famoso videojogo.

Quanto ao “Shadow of the Colossus”, mesmo para aqueles que não conhecem o jogo, o título consegue passar a ideia do rasto de qualquer coisa gigantesca. Mas quem escavar um pouco mais fundo descobre o jogo, e toda a sua imagética, e consegue assim descobrir um pouco mais sobre mim. Eu gosto de criar camadas com vários significados, e tento sempre arranjar títulos com três ou quatro avenidas de interpretação que, espero eu, levem sempre as pessoas a compreender melhor a canção.

Mas ainda sobre a “Shadow of the Colossus”, o título é obviamente uma referência muito directa ao jogo, que nos traz um herói numa missão que não compreendemos bem e que, no fundo, trata de conseguir ultrapassar obstáculos gigantescos que, à partida, são bastante perigosos e ameaçadores; quando crias novos álbuns, também sentes que estás numa “missão” assim?

Neste, sim. Muitas das canções falam sobre esta luta com a própria identidade, e o videojogo pareceu-me uma boa representação desse lado mais negro da nossa personalidade e do nosso potencial que acho que todos temos de fazer coisas não muito nobres, em particular os aspectos mais sombrios da sexualidade e o mal que está à espreita dentro de todos nós. E fazer essa referência à personagem do Shadow of the Colossus, que ao longo do jogo vai lutando contra estes monstros gigantescos, pareceu-me uma boa forma de disfarçar essa ideia. Provavelmente ninguém vai perceber isto, mas é sobre isso que fala a canção e o título (risos).

Voltando a Lisboa, achas que, ao fim destes 10 anos, já te sentes um lisboeta?

Sim e não. Por exemplo, quando chego aqui de avião sinto aquela sensação de segurança e conforto que vem com esse “regresso a casa”, mas, ao mesmo tempo, nunca tive, ao andar na rua, aquela impressão de que sou um nativo. Tenho sempre essa consciência de que tenho um aspecto diferente do dos outros e que o português que eu falo soa muito cru e me faz parecer um idiota. Sinto que faço parte deste pequeno mundo, mas também me sinto sempre um alienígena.

Voltaste a colaborar com o Sonic Boom (nom de guerre de Peter Kember, ex-Spacemen 3) para a produção deste disco. Qual é que foi o impacto dos contributos dele para o resultado final?

Eu sinto que as nossas capacidades são muito diferentes e complementam-se muito bem: ele é muito bom a fazer coisas em que eu não me saio tão bem, e vice-versa. Para além disso, ambos gostamos muitos de despir as coisas até ficarmos apenas com os elementos verdadeiramente essenciais, e por isso, apesar de trazermos coisas muito diferentes para o estúdio, o objectivo é sempre muito semelhante, pelo que trabalhar com ele é, nesse aspecto, bastante fácil. Em termos mais específicos, ele é muito bom a encontrar o ponto exacto onde os sons interagem entre si e se juntam na mistura, criando ligações entre as coisas duma forma que eu não sei fazer; ele consegue encontrar um monte de pequenos “sítios mágicos” entre os conjuntos de frequências, e a forma dele de ouvir a música é muito clínica e centrada nesse objectivo de ouvir os equilíbrios sónicos e assim, ao contrário de mim, que oiço as coisas de uma forma mais “superficial” e só procuro que a música me faça sentir bem. Posso dizer que tenho aprendido muito a trabalhar com ele e que tem sido uma boa experiência.

Então e podemos esperar que voltem a trabalhar juntos no futuro?

Penso que sim, se bem que o meu medo de me repetir e de estar sempre a fazer a mesma coisa uma e outra vez faz com que eu esteja sempre a mudar a minha forma de trabalhar. Estou sempre a trabalhar com equipamento novo e a escrever canções com instrumentos diferentes (por exemplo: às vezes estou a trabalhar com um piano e mudo para uma guitarra, coisas simples como essa), e essas pequenas mudanças de perspectiva são muito importantes para mim. Por isso, ficaria nervoso por voltar a trabalhar com ele na produção, mas nunca se sabe.

Disseste que o teu modus operandi consistia em despir as canções até aos seus elementos mais básicos e depois partir daí. Este Panda Bear Meets the Grim Reaper é uma obra muito rica, com várias “camadas sónicas”. Isto foi algo que foi planeado desde início, ou esta “extravagância” sonora foi algo que foi surgindo à medida que as canções se foram desenvolvendo?

Suponho que o tenha planeado desde o início, mas acho que é um pouco de ambas as hipóteses. Eu sempre quis que este disco fosse muito detalhado e rico, mas também quis que houvesse um foco nas vozes e nos ritmos; se o tocares com o volume muito em baixo, essas duas coisas são basicamente tudo o que ouves, e isso foi algo intencional. O conceito que nos guiou foi reflectir o que se passa na música popular, a maioria das coisas que passa na rádio, e que segue mais ou menos o mesmo "esquema". Quando entrámos no estúdio, as canções eram muito mais simples, e durante os primeiros seis meses de trabalho era tudo muito mais simples e agressivo, e fomos juntando imensa percussão, várias camadas de vozes: basicamente, enfiámos tudo aquilo de que nos lembrámos para as faixas. E depois a mistura, e provavelmente foi por isso que o processo foi tão árduo, consistiu em despir as canções ou em harmonizar toda aquela “tralha” sem tirar o foco das percussões e das vozes, e isso foi, em algumas canções mais que outras, um truque difícil de conseguir.



Foi essa dificuldade do processo que atrasou o lançamento do disco para Janeiro de 2015? Tendo em conta que algumas canções começaram a aparecer ao vivo em 2013 e a data original estava planeada para 2014…

Sim, e parte desse atraso deve-se à minha mania de exagerar e de ser estupidamente ambicioso em relação aos meus prazos. Mas o que aconteceu foi que, antes das gravações, dei talvez uns seis concertos em 2013 onde toquei seis, sete canções que via como as “melhores” e que eram as mais trabalhadas e desenvolvidas dum grupo de 40 ou 50 “princípios” de canções que tinha em mente. E quando entrámos para estúdio, levei essas seis, sete, talvez oito canções e pensei “são estas as faixas que vamos gravar, vamos demorar duas semanas a gravá-las e depois misturamo-las e num mês estará tudo pronto”. Foi o Pete, na verdade, que foi sugerindo que continuássemos a adicionar canções a esse grupo de “eleitas”; ele ia dizendo coisas como “aquela outra peça que me mostraste, porque é que não ficas algumas horas a arranjar algumas vozes e letras para ela e trabalhamos nisso hoje?” ou “aquela outra coisa que tinhas aí, vamos tratar dela hoje”, pelo que, no final de tudo, em vez de termos seis ou sete canções, acabámos por gravar 19, e tentar levar cada uma delas até à “linha da meta” levou imenso tempo. Isso e, como já disse, tentar harmonizar tudo o que tínhamos atirado para dentro das peças e tentar descobrir o que é que era mesmo vital nas misturas.

Então e podemos esperar que surja mais algum lançamento com esse material de sobra, à semelhança do que vimos com o EP que incluía “Mr Noah” e mais três peças que ficaram de fora do álbum?

Sim, temos mais quatro ou cinco de sobra. O que eu gostava de fazer, para satisfazer a minha obsessão com a simetria, era lançar um EP semelhante da outra “ponta” do disco, provavelmente também com um single retirado do álbum, tal como fizemos com a “Mr Noah”. Pelo menos esse é o plano, mas veremos como é que correm as coisas, porque temos de acabar essas quatro ou cinco faixas primeiro.

Voltando ao que “passa na rádio” que referiste há pouco, e falando um pouco do que “anda por aí”, o que andas a ouvir ultimamente e quais foram os teus discos favoritos de 2014?

Gostei muito do disco do Ariel Pink. O disco do Andy Stott, o Faith in Strangers, de que também gostei bastante… Esses foram, para mim, os grandes lançamentos do ano. Tenho a certeza de que me estou a esquecer de muita coisa, e ainda não fiz o meu top 10, mas esses dois são os que se destacaram na minha cabeça.

E visto que vives em Lisboa, ouves alguma música portuguesa? Faço-te esta pergunta porque em 2010 um dos grandes artistas da cena independente nacional, o B Fachada, lançou uma canção intitulada “Memórias de Paco Forcado, Vol. 1”, que tem um verso com uma referência bem directa à tua pessoa, dizendo que “vai ser o Panda Bear”, e eu queria saber se tinhas noção disto.

Eu estive com ele numa ocasião, porque o meu amigo Nelson [Gomes, da Filho Único] é manager dele, se não estou em erro, e estava a falar com ele e eu, por algum motivo, precisava de falar com o Nelson e lembro-me de o conhecer aí. O Nelson falou-me sobre ele e mostrou-me algumas coisas dele que eram fixes, mas foi um encontro muito breve. Acho que o Nelson disse-me alguma coisa sobre essa canção e dessa referência, mas não sabia dos pormenores até agora (risos).

Então e para quando podemos esperar alguma actividade dos Animal Collective? Haverá alguma coisa em breve?

Sim, sim… Eu ainda estou na “fase de transição” duma coisa para a outra, porque não gosto de fazer o material da banda e o material a solo ao mesmo tempo e então faço uma distinção muito clara e rígida, mas já entrei no “modo mental Animal Collective”. Ainda não temos nenhuma data escrita na pedra, mas já começámos todos a falar do que queremos faz ou daquilo em que estivemos a pensar para o próximo disco, e tenho a certeza que teremos algumas demos muito em breve. Não temos tempo de estúdio planeado nem nada que se pareça, mas o comboio já saiu da estação.

Para acabar, um amigo pediu-me que te perguntasse se o frango frito do Pão de Açúcar das Amoreiras era bom, porque viu-te uma vez a comprar frango lá e ficou curioso.

(Risos) Não me lembro… Vocês aqui fazem muito frango assado, mas frango frito é algo raro por estas bandas. Há um par de sítios em Nova Iorque que têm um frango frito de comer e chorar por mais, e tenho saudades de ir lá, mas… Juro que não me lembro de comprar frango no Pão-de-Açúcar das Amoreiras, mas é definitivamente possível, porque isso é algo que eu tenho tendência para fazer (risos).


João Morais
joao.mvds.morais@outlook.com
05/03/2015