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Laetitia Sadier
Silêncio para mudar o mundo


Habituámo-nos a vê-la e ouvi-la em conjunto com os Stereolab, mas há um mundo em Laetitia Sadier. Mais do que a voz de uma banda que hoje apenas lembramos com carinho, Laetitia é uma cantora delicodoce com consciência. Olha para a música tal como nós fomos ensinados a olhar no nosso burgo: como uma arma certeira. Chegámos-lhe à fala com intenções de saber mais sobre o novo disco, Silencio, mas acabámos embrulhados na sua vontade de mudar o mundo. Laetitia Sadier quer cantar”algo maior que nós” e ajudar a mudar o mundo com isso.
O teu ultimo disco chama-se Silencio. O que te atrai no silêncio?

No disco, eu conto uma história muito detalhada do que aconteceu numa igreja em Zamora. A última faixa é uma recriação desse momento onde, pela primeira vez na minha vida, experenciei um momento de silêncio puro e absoluto. Foi aí que se senti uma ressonância interior, que me fez perceber que o passado, o presente, o futuro e todos os seres vivos estão ligados numa enorme cadeia de DNA. Isto fez-me ver que devemos conhecer-nos e confiar em nós mesmos para avançar em direcção à luz que traz consciência e afastarmo-nos da escuridão do medo – que já não nos traz nada. Acho que se pode dizer que foi esse momento que ditou o nome do que viria a ser o meu novo disco, Silencio.

O título do teu disco é espanhol, mas cantas em inglês e francês. A língua em que cantas influencia de alguma forma a música?

Não, pelo menos não de uma forma específica. Distanciei-me um bocado da minha língua e acabei por decider que, no futuro, vou passer a escrever mais em francês.

Para este disco voltaste a tocar com os mesmos músicos que haviam gravado The Trip?

Algumas partes sim, foram registadas com pessoas que já tinham entrado no The Trip, neste caso a minha equipa francesa da Aquaserge. Mas nos Estados Unidos trabalhei com uma equipa diferente, é verdade: o The Trip tinha sido gravado com o Richard Swift, o Silencio contou com a ajuda do James Elkington.



Posso arriscar dizer que és uma fã das ideias do John Cage em relação ao silêncio?

Concordo totalmente com as visões do John Cage, principalmente com a ideia de que se deve abolir a fronteira entre arte e vida - o que faz de nós artistas por criarmos a nossa própria vida. A própria ideia de que a música é um meio para nos tornar conscientes da nossa existência, é um milagre e devíamos estar a celebrá-lo! O silêncio é um parceiro indissociável do som e as peças silenciosas [de Cage] mostram o quão rico e profundo o som consegue ser.

Ao mesmo tempo, a ideia de silêncio remete-nos para um campo muito espiritual, que me parece estar presente no disco...

Sim, tens razão ao apontar esse lado espiritual no disco. É algo que eu atingir: dar espaço e honra à nossa dimensão interior, ouvir e escutar o que quer que se passe dentro de nós. Seja o que for, diz sempre algo de interessante e verdadeiro sobre nós mesmos e se há algum sentido na vida, deve ser a forma como olhamos para nós mesmos e como nos compreendemos – o acesso ao auto-conhecimento.
É este caminho espiritual que falta no nosso sistema económico e foi por isso que achei que havia uma dimensão política no silêncio: uma forma gentil, mas poderosa de resistir à miserável ideologia que impera no sistema monetário. Eu não apoio qualquer forma de religião e, embora ache que algumas filosofias sejam merecedoras de atenção, sempre achei que as religiões organizadas são uma forma muito infeliz de controlar as pessoas a um nível bastante íntimo. Ao mesmo tempo, conseguem fazê-lo a nível social e talvez tenha sido isso que permitiu ao capitalismo impôr-se à humanidade há demasiado tempo…

Então este disco acaba por ter uma visão política?

O meu objectivo era fazer um álbum com consciência política, com a ideia de ligação ao “eu interior” muito presente, sendo que este “eu interior” é reflexo de algo maior, de um Todo, da totalidade do universo. Ao mesmo tempo, queria mostrar quão grande é a responsabilidade de nos dominarmos a nós mesmos, às nossas vidas e aos valores em que a sociedade assenta, [já que] acabam por se reflectir nas relações que temos com os outros.

Dadas as tuas convicções, suponho que estejas envolvida com algum partido político.

Não, não estou ligada a nenhum partido! Mas recentemente vi [a série de filmes] Zeitgeist - recomendo vivamente! –, que estão ligados a um movimento chamado The Venus Project que achei muito interessante e com o qual partilho várias ideias. Estou à espera que aconteça uma mudança na consciência global, acho que a qualquer altura vai emergir um forte movimento popular. Estou mais que pronta para um novo sistema que entre em vigor, um sistema que acabe com o dinheiro, com um sistema de educação tão rígido e com trabalhos chatos que pagam mal… Todas estas coisas estão ultrapassadas, já não precisamos de recorrer a métodos tão arcaicos.



Mesmo com todo o clima de crise e contestação, achas que a dimensão do protesto na música é reduzida?

Um bocado, sim. As pessoas deviam sair para a rua - todas, não é só artistas e músicos – a gritar “Basta! Basta deste sistema de merda que está a impedir o nosso bem estar e desenvolvimento!”.

Depois de tantos anos na estrada és capaz notar diferenças, tanto sociais como económicas, nos sítios por onde foste passando?

Há poucas diferenças entre os sítios onde toco hoje em dia. A maior parte parecem ter sido resolvidas e toda a gente parece estar a passar pela mesma morte económica, social, ética e moral. Mas isto é mais no mundo ocidental, onde costumo tocar mais. Na América do Sul as diferenças são mais notórias. No Brasil, o fosso entre ricos e pobres é muito grande e na Colômbia é ainda maior e mais visível. São países com um solo muito rico, que não deviam ter que enfrentar estes níveis de pobreza... Estamos todos no mesmo barco, mas apesar de tudo continuamos a ser privilegiados em comparação com estes países. Mas uma coisa é certa: vamos todos ser sugados para uma pobreza ainda maior.

Mas achas que ainda há esperanças para nós?

Claro, ainda há muita esperança! Mas temos que perceber que somos mal governados, que não podemos confiar nos nossos governos. Temos que os despejar, porque não estão a trabalhar para nós; continuam a apoiar o roubo continuado que é a transferência da riqueza do povo para as elites que já são extremamente ricas. Temos que ser capazes de exigir, de forma severa e persuasiva, que essa riqueza seja devolvida a quem a criou e dividida de igual forma entre todos. O sistema deve servir as pessoas e não o contrário! Estamos a viver uma espécie de escravatura moderna, que é destrutiva para nós e para o planeta. Já chega! Dito isto, sou uma grande apoiante da ideia europeísta. Sinto-me muito mais europeia que simplesmente francesa. Sinto que é preciso transcender as barreiras de uma nacionalidade e acho que o ideal europeu é bastante avançada por isso mesmo, porque vai para lá do nacionalismo.

Se a Laetitia Sadier pudesse mandar na Europa por uma semana, qual seria a primeira medida a tomar?

Ia deixar de ajudar os bancos a fugir à sua dívida. Todo o sistema económico é baseado numa falácia que só é capaz de aumentar a escassez e a miséria que lhe são inerentes. Esta seria a mudança prioritária. Nós, trabalhadores e criadores de riqueza real, estamos a ser roubados pelo sistema financeiro. A nossa riqueza está a ser apropriada por elites, bem debaixo dos nossos narizes, e não vejo qualquer tipo de movimentação popular… Há grupos pequenos que têm coragem de mostrar o seu descontentamento, mas acabam por ser neutralizados e atacados pela polícia. Neste momento devíamos tomar conta das ruas e exigir que os milhões que nos foram roubados, sejam devolvidos à esfera pública.

Por último, queres deixar alguma mensagem aos que te vão ver em Portugal?

Todos os que amam a paz, organizem-se tão bem como os que amam a guerra. Vamos organizar-nos!


António M. Silva
ant.matos.silva@gmail.com
01/10/2013