Carlos Bica, o contrabaixista e compositor português que trabalha com alguns dos melhores músicos do mundo, acaba de editar um novo disco. Desta vez não se trata de um novo álbum do magnÃfico trio Azul, onde se junta a Jim Black e Frank Möbus, mas sim do seu primeiro disco de contrabaixo solo –
Single. A editora Bor Land, propulsora maior dos
indies nacionais, alarga horizontes estéticos e recebe o músico para esta aventura. A capa do disco é apropriadamente branca, provavelmente para podermos rabiscar as imagens que a música nos sugere - e são muitas porque as melodias, essas marotas, não se cansam de se insinuar. Numa agradável conversa de fim de tarde, entre goles de cerveja, Bica fala de
Single, conta o seu percurso e revela planos futuros.
Porquê
editar neste momento um álbum a solo?
As coisas até agora têm acontecido comigo um bocado naturalmente. Não há nada
muito previsto, as coisas acontecem naturalmente e foi o caso deste álbum
a solo. Eu vivo com um pé em Berlim (e o outro em Lisboa) e tive uns convites
para tocar lá a solo e senti que me apetecia, que era a altura certa. Pouco
tempo depois tive também um convite para gravar nos estúdios da rádio de Berlim
(RBB), de maneira que foi estar a viver o futuro no presente. E um álbum de
contrabaixo a solo, com a crise na indústria discográfica, é uma daquelas
coisas que não há muitas oportunidades para gravar. Foi no momento exacto.
O que o levou a editar pela Bor Land, editora conotada
com o rock independente?
Era difÃcil encontrar uma editora neste momento interessada em gravar um disco
de contrabaixo solo. Foi através do Jorge Coelho [guitarrista, Zen, Mesa,
Tenaz] que me disse: “
eh pá, de certeza que arranjo uma editora independente
que trabalhe para ti†e apresentou-me ao Rodrigo [Cardoso] da Bor Land.
E eu gostei… gostei da onda, gostei da dinâmica… Ele disse-me que o interesse
deles não era necessariamente estarem limitados a uma área. E eu acho óptimo
não ficarem limitados a um rótulo de certo tipo de música.
Esta união é para continuar, o trio Azul vai editar
o próximo trabalho pela Bor Land?
Ainda não sei. O único senão da Bor Land é a distribuição. Os discos do Azul
foram editados pela Enja, que é uma editora alemã com distribuição mundial,
e é claro que o interesse de qualquer músico é que os discos cheguem ao maior
número de paÃses. E isso é uma coisa que eles [Bor Land] ainda não têm capacidade
neste momento. Mas há outros projectos que quero gravar e eles vão ser daqueles
com quem eu vou falar, porque até agora a nossa relação de trabalho tem sido
óptima. Eu prefiro inclusivamente estar a trabalhar com uma editora independente,
com poucos meios, mas onde exista um trabalho de equipa entre músicos e editora,
do que estar numa
major que, apesar do nome, seja Sony, Universal,
etc., logo
a priori não me interessa porque sei que eles não têm
nenhum interesse pela música, o único objectivo é só mesmo facturar.
Single afasta-se
dos trabalhos anteriores e dos padrões jazz mais comuns; arrisca
aproximações à pop, à música clássica, à música antiga, à música contemporânea.
Como é possÃvel conciliar tudo isto?
Eu acho que isto já é um bocado a minha caracterÃstica: abordar vários tipos
de música e tentar que tenha a minha assinatura, que a minha personalidade
esteja presente, independentemente de ser uma composição minha ou um tema
popular ou uma canção medieval - são coisas que me tocam e que não estão ligadas
ao compositor, à época ou ao estilo. No
jazz não é propriamente o facto
de ser
jazz que me agrada em especial, normalmente aquilo de que gosto no
jazz é o músico – gosto deste músico que tem um rótulo de
jazz, mas gosto
de músicos e compositores de áreas completamente diferentes. Eu tenho uma
expressão para definir isso que é: “deixar a porta abertaâ€. E quando as coisas
me tocam, passam de certa maneira a ser minhas; assimilo estas coisas que
me tocam. E depois trata-se de dar um formato a essas canções/composições
de maneira a não se sentir que de faixa para faixa se está a mudar de estilo
– é a função do músico conseguir uniformizar os vários universos. Por outro
lado tenho formação de música clássica,
pop e
rock foi com
o que cresci, o
jazz e a improvisação conheci mais tarde e eu vejo-me
num universo onde todas estas linguagens coexistem.
O booklet do CD é embelezado com um conjunto
de fotografias e, tal como acontece com o último trabalho de Bernardo Sassetti
(Ascent), há uma forte ligação da música com a imagem. A sua música
pressupõe a existência de um complemento visual?
Eu acho que as minhas músicas têm um bocadinho de cinema…neste caso eu dei
mão aberta ao Pedro Cláudio, um fotógrafo reconhecido pelo seu trabalho, que
é um grande amante da música e é daqueles amigos com quem eu me entendo especialmente
bem. Quando o convidei para fazer a capa ele perguntou-me como se chamava
o álbum, disse-lhe
Single e ele respondeu: isso tem mesmo que ver,
que eu estou
single neste momento! [Risos.] Quando se separou da companheira
fez uma viagem ao Brasil de maneira que é um bocado o filme dele…mas com
ele estou à vontade, porque sei que tem especialmente bom gosto e entendemo-nos
às mil maravilhas. Por outro lado é óptimo hoje em dia que os CDs, que são
copiados, tenham uma mais valia, que é uma maneira de se conseguir que as
pessoas optem pelo objecto original. Para além disso, como um disco a solo
não é uma coisa que se faça todos os dias, queria que fosse uma joiazinha,
uma coisa especial – e fico contente isto por ter acontecido.
A música de Single sugere inúmeras imagens
- alguns amigos já me falaram em coisas como “bailarinas imaginárias em
trajes rosa púrpura†e “frangos ululantes à beira-rioâ€. Estas imagens
vão de encontro àquilo que idealizou?
[Risos.] Qualquer imagem é óptima! Até uma sujeita a fazer
strip-tease…eu próprio não faço uma associação da música a imagens concretas. Eu tento
mais focar estados de espÃrito, sentimentos. Se conseguir documentar esse
sentimento através da música depois esse sentimento no ouvinte irá despertar
imagens, que poderão variar de pessoa para pessoa ou conforme os estados de
espÃrito.
Fez uma versão de “Paris, Texasâ€, para uma compilação
lançada no Dia Mundial da Música. Porque é que a interpretação de música de
outros autores é uma experiência rara para si?
Já tem acontecido… No último disco do Azul o tÃtulo, “Look What They've Done
To My Songâ€, é uma canção da Melanie, uma cantora do tempo do Woodstock. Não
ando à procura de canções para interpretar, mas às vezes acontece, como foi
o caso desta canção. Estava a brincar ao piano e de repente vi que me lembrava
da minha infância, fiquei com ela na cabeça e resolvi fazer a minha própria
versão. O primeiro álbum do Azul tem a “Canção de Embalar†do José Afonso,
outra música de que gostei imenso da melodia e também fiz a minha versão.
Mas as coisas vêm ao encontro, não vou à procura. No caso concreto do “Paris,
Texas†o convite foi feito uns dias antes da gravação. Já tinha visto o filme,
há muito tempo, mas só depois de voltar ouvir a versão original é que pensei:
“
é fácilâ€. Mas depois optei por fazer vários
overdubs (vários
contrabaixos, com
pizzicato, com arco) e depois aquilo tomou um outro
carácter, acho que ficou um bocadinho “Paris, Xangaiâ€.
Poderemos dizer que Portugal é um paÃs de contrabaixistas,
já que os expoentes do jazz nacional se dedicam a este instrumento?
De facto é curioso, mas o motivo não sei exactamente… Houve bons professores
de contrabaixo, o que naturalmente ajuda ao músico ter uma boa formação.
Quais são os planos para o futuro do projecto Contra3aixos
[n.r.: composto por Carlos Bica, Carlos Barretto e Zé Eduardo]?
Vamos gravar um álbum em Fevereiro e vamos ter vários concertos. Vai ser
mais um desafio, porque nós somos os três completamente diferentes – tanto
na maneira de abordar o instrumento, como nos gostos musicais. Penso que o
desafio vai ser pôr os três, com as personalidades diferentes, lado a lado
- não podemos pensar como uma orquestra, onde há três instrumentos iguais,
cada um a tocar uma melodia, a personalidade de cada um tem de estar presente.
Mas ainda eu estou para saber como vai funcionar. Já tivemos um concerto e
foi interessante de maneira que penso que a questão se há-de resolver.
Qual será o futuro do trio Azul, com Frank Möbus
e Jim Black? Haverá novo disco?
Já está gravado. Aquele que será o quarto álbum foi gravado depois da nossa
tournée em Maio, está agora em fase de mistura. Conta com a presença
de um DJ, o DJ Ill Vibe, que é filho de um dos pais do
free jazz europeu,
Alexander Von Schlippenbach. A princÃpio estava um pouco de pé atrás, para
evitar comentários do género “
ah, agora é moda e talâ€, mas depois
de ver um concerto com pai [n.r.: Von Schlippenbach] e filho [n.r.: Ill Vibe],
músicos de gerações e linguagens diferentes, a comunicar com tanta fluidez,
fiquei completamente convencido.
Porque é que voltou a promover o projecto Diz, com
a cantora Ana Brandão, cinco anos depois do lançamento do disco?
Nós temos tocado, todos os anos temos uma
tournée lá fora, só em
Portugal é que é raro tocar. O Diz é um projecto completamente diferente.
É uma formação que permite uma certa música de câmara mas também pode haver
improviso total, pode haver um lado popular, e tem a componente de teatro
pelo facto de a Ana Brandão ser actriz - e isto é algo que nos últimos tempos
tem sido mais explorado. Só que é daqueles projectos que, por ser difÃcil
de rotular, sobretudo em Portugal, não teve aceitação fácil.
Porque é que, entre tantos instrumentos, escolheu o contrabaixo e enveredou
pelo jazz? E qual o papel da formação clássica?
Eu comecei pela formação clássica mas já consciente que não queria ser músico
de orquestra. A ligação ao
jazz começou quando estive pela primeira
vez no Festival de Jazz de Cascais, estava perto do palco, senti a vibração
dos músicos, foi isso que me despertou para o
jazz. E comecei a aprender
contrabaixo por mero acaso – tive um baixo eléctrico nas mãos uma semana antes.
Tinha uma banda de garagem e tocava um bocadinho de guitarra, mas como já
havia um guitarrista que tocava melhor do que eu (que era o José Peixoto)
passei para o baixo eléctrico - mas não achei piada nenhuma àquilo. Pouco
tempo depois, quando fiz 18 anos e entrei para a universidade, ia inscrever-me
num instrumento mas ainda não sabia qual. Fui espreitar o contrabaixo e quando
ouvi no auditório o professor [n.r.: Fernando] Flores a praticar, fiquei fascinado
– ele por sua vez tinha estudado com o melhor contrabaixista que na altura
existia, em Viena de Ãustria: Ludwig Streicher, que era um solista impressionante.
De maneira que ter chegado ao contrabaixo foi um feliz acaso.
Quais são as suas referências no contrabaixo jazz?
Em primeiro lugar foi Charlie Haden. Depois Mirouslav Vitous, com quem também
tive umas aulas. E outro de quem também gosto muito é Marc Johnson. Estes
serão os três contrabaixistas de eleição. Por acaso são todos brancos (não
procuro ser racista, como é evidente), penso que será sobretudo pela aproximação
ao instrumento pelo lado melódico. Não escolhi o contrabaixo por fazer parte
da secção rÃtmica, escolhi o contrabaixo para tocar melodias. É claro que
cedo descobri que a sua função no grupo é de suporte harmónico e rÃtmico,
mas nunca foi isso o que me deu especialmente gozo. Daà ter escolhido três
músicos que são muito melódicos.
Apesar de residir na Alemanha, deve ter uma opinião
sobre o jazz nacional. Como vê o actual panorama e o choque entre o
circuito do jazz clássico (com base no Hot Clube) e o movimento cada
vez mais visÃvel da música improvisada (centrado no Bairro Alto)?
Agora há muitos mais músicos que antigamente e é bom que haja músicos diferentes,
correntes diferentes, acho isso muito saudável. Eu gosto do Hot Clube, gosto
de tocar lá e não o vejo necessariamente como conservador. Acho que as correntes
devem coexistir e, pessoalmente, estou sempre curioso por ouvir música diferente.
Gosto de ser surpreendido, de maneira que é óptimo que existam pessoas a tocar
músicas diferentes.