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Gaiteiros de Lisboa
Sopros de Vida


Ao longo de uma carreira que se aproxima a passos largos dos 20 anos de existência, o colectivo conhecido por Gaiteiros de Lisboa tem realizado belíssimas construções baseadas nas diversas tradições musicais que animam Portugal - e não só - há séculos. Apesar de não terem uma obra vasta - 5 discos de originais mais um ao vivo - a chegada de cada novo disco é motivo de atentas e deliciadas escutas. Desde o impacto frontal dos sopros, a polifonia das vozes dos seus elementos, à dança das originais percussões e ao ritmo marcial dos bombos, escutar um disco dos Gaiteiros é deixarmo-nos submeter a um transe que deixa locais, épocas e géneros musicais para trás, num tufão multidireccional. Avis Rara é a nova, e magnífica, obra, deste grupo que já merece o epíteto "Histórico". O Bodyspace falou com Carlos Guerreiro sobre cruzamento musicais, queixumes populares, e bandas pop portuguesas dos 80s. Apresentam-se ao vivo no dia 10 de Outubro na Casa da Música, Porto, e no dia 15 de Outubro na Culturgest, em Lisboa.
Pegando na célebre frase "Não perguntes o que blá blá blá pode fazer por ti...", o que pensam ter feito pela música nestes 20 anos, e o que pensam ter ela feito por vocês?

Não acho que possa existir esse sentimento. À sua passagem pelo panorama musical, seja a nível nacional ou internacional, cada grupo ou artista, se tiver tido a devida divulgação, deixa uma pegada indelével dentro da história musical do seu país, ou até do mundo. Essa pegada não é mais do que o elo de uma cadeia iniciada muito atrás, por outros, e que irá ligar outros que vêm a seguir. Cada artista, cada criador, faz do seu acto de criar, uma espécie de missão, primeiro que tudo, perante si próprio. Nos Gaiteiros nunca houve qualquer preocupação de fazer fosse o que fosse pela música portuguesa, pelo contrario, temo-nos aproveitado dela, e não é pouco, e temos vindo a colher uma a uma as músicas que depois fazem parte do nosso repertório, como quem colhe uma flor no campo. Acho que o que fica do nosso trabalho fica a fazer parte de um património que será, ou não, fonte onde outros virão beber, assim como nós também bebemos de outras nascentes. Esse sentimento de militância, divulgação e preservação estóica do património musical tradicional português, já alguns elementos deste grupo tiveram, mas no seu devido tempo, no auge da juventude, no meio de muito romantismo e desconhecimento das dinâmicas antropo culturais, mas que eventualmente terá dado os seus frutos. Aí sim, tínhamos a perfeita convicção de que estávamos a fazer algo pela música do nosso país. Agora os tempos são outros, e o que fazemos é puro entretenimento.

O humor nunca esteve longe das vossas interpretações, quer em termos instrumentais, quer nas letras que seleccionam. Consideram importante não serem vistos como demasiado "sérios"?

O humor e boa disposição é algo que sempre fez parte da nossa altitude performativa. Quando estreamos um alinhamento nunca imaginamos qual vai ser a dinâmica do espectáculo, e é em cima do palco, concerto após concerto, que nos vamos apercebendo dos momentos mais ou menos densos, mais ou menos humorados, e que de uma forma muito natural vamos explorando. Gostamos, sobretudo de brincar com os dogmas culturais de que nós próprios fomos defensores há tempos atrás.

Apesar da diversidade cada vez maior de projectos que pegam nas raízes tradicionais portuguesas e lhes dão um cunho pessoal, os Gaiteiros continuam a ser inconfundíveis. O que, na vossa opinião, vos dá uma - usando um termo economês - "Vantagem competitiva"?

Nunca vi a coisa sob esse prisma, no entanto acho que um grupo com as características do nosso só pode existir com pessoas que tenham tido percursos musicais semelhantes aos nossos. Dentro do Grupo cruzam-se experiências corais, jazisticas, clássicas, da música antiga, da música tradicional, do rock, da música de rua, etc, que geram uma mescla de abordagens muito diversificada, com a vantagem acrescida de haver dentro do grupo quem construa instrumentos com características particulares que acabam por condicionar o nosso som de forma determinante.

Existiu algum prurido em relação a colaborar com artistas de sucesso mais massificado, como foram os casos da Ana Bacalhau e do Sérgio Godinho? Ou foi tão natural como tocar com o Zeca Medeiros e os Adiafa?

Nós não escolhemos os nossos convidados pela sua dimensão. Pode dizer-se que com cada um deles temos uma relação particular e única, já com parcerias anteriores, que não passa pela sua fama no momento. São acima de tudo amigos de quem gostamos muito e que convidamos para partilhar o nosso trabalho de uma forma tão natural como quem convida alguém para ir jantar lá a casa.

Não é a primeira vez que vejo os Gaiteiros interpretarem letras e poemas que falam de amores não correspondidos, e relações entre os sexos. Pensam que existe um lado erótico pouco comentado na vossa obra?

Achamos importante cantar o amor, mas também gostamos de procurar poemas que abordam o amor de forma menos convencional. Por outro lado, não é qualquer poema de amor que encaixa bem no nosso tipo de música. Não creio que haja um lado erótico não reconhecido. Se algo na nossa obra inspira sentimentos eróticos, isso só depende do imaginário de cada destinatário que nos ouve.

Segundo sei, Avis Rara esteve algum tempo até encontrar uma editora disposta a lançá-lo. Veem-se a permanecer na Orfeu por mais discos, ou pensam repetir o processo de procura? Existirá futuro num Kickstarter à portuguesa, onde os artistas pedem aos fãs os fundos para gravar um disco novo?

Em boa hora tivemos a ideia de desafiar a D’Orfeu para esta aventura. Não faço ideia se virá a ser um projecto rentável, mas de qualquer forma parece-me que não vai haver prejuízo, o que já não será mau. Não somos o tipo de grupo que possa ganhar muito dinheiro com a venda de discos. Os discos são importantes porque dão origem a um movimento de promoção do grupo, com entrevistas e reportagens nos meios de comunicação, que podem dar origem a pedidos de concertos. Ora tudo isto é mais fácil de suportar quando a editora não é uma “major”apenas à cata do lucro. Acho que é um exemplo que deveria ser seguido por outros grupos. Só quero realçar que tudo isto teria sido muito diferente, não fora o competentíssimo trabalho da Sara Vidal em tudo o que disse respeito a contactos com a comunicação Social.

"Avejão" é descaradamente intervencionista/situacionista. O que recomendariam que a "passarada oprimida" fizesse para combater as aves de rapina?

A passarada oprimida vai fazendo o que pode, no entanto, como dizia um velho amigo meu chamado Zeca Afonso, “cada povo tem os governantes que merece”. Não me admiraria nada se se viesse a apurar que 2/3 das pessoas que estiveram nas manifestações de Sábado passado em todo o país contra o governo, tivessem votado PSD nas últimas eleições, portanto eu também acho que se calhar somos mesmo um povo de queixinhas a navegar num mar de merda que nós próprios produzimos. Se os sucessivos governos de corruptos têm o poder de nos fazer mal, fomos nós que lho demos.

Lembro-me da história do "Conde Ninho" da escola. Sabendo o que acontece a seguir, a sua condenação à morte e execução, não pude deixar de considerar a parte instrumental após os versos como altamente dramática, como prenúncio do que aí vem. Passou-vos pela cabeça o mesmo?

Não fui eu quem trabalhou este tema e o propôs ao grupo. Foi o Zé David, só ele poderá responder a essa pergunta, mas não me parece que ele tenha ido por aí.

Na Festa do Avante tiveram em palco os convidados de Avis Rara. Planeiam fazer o mesmo na Culturgest, agora que terão um público mais "vosso"? Que tipo de alinhamento podemos esperar?

Gostaríamos muito de incluir os mesmos convidados nos concertos de Lisboa e Porto, mas isso só foi possível no Avante porque a organização da festa suportou todas as despesas referentes aos convidados, que ainda foram consideráveis. Ora os concertos da Culturgest e Casa da Música têm um orçamento muito curto, pelo que eu creio que não seja possível, no entanto ainda não discutimos esta questão no ceio do grupo.

Se fossem estrelas pop, qual seria a vossa exigência mais excêntrica para terem no camarim?

GAJAS!

Se pudessem fazer com que uma qualquer banda do passado - com membros vivos ou não - reencarnasse e fizesse a vossa primeira parte, quem escolheriam?

Só posso falar a nível pessoal, mas não me importaria nada de lá ter os Gentle Giant ou os Jafumega.

Pergunta hipotética: Supondo que não eram portugueses, e que gostariam à mesma de tocar/reinventar a música do vosso país de origem. Que país gostavam que fosse esse?

Uma vez mais vou responder a nível pessoal, mas não me importaria se fosse um qualquer país algures por África.


Nuno Proença
nunoproenca@gmail.com
24/09/2012