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Manuel João Vieira
Os Corações de Vieira


Os Corações de Atum apresentaram-se pela primeira vez no Teatro do Bairro (no Bairro Alto, Lisboa) na passada Sexta-Feira, com o duplo Romance / Hardcore na bagagem. Umas horas antes do concerto encontrámo-nos com o mentor deste e doutros projectos musicais, como os Irmãos Catita, Ena Pá 2000 ou os mais recentes Fados do Lello. Manuel João Vieira fez-se acompanhar dos seus irmãos gémeos e do primo que actualmente personifica o Candidato Vieira. A conversa foi à pesca dos Corações de Atum, deixou-se picar pelo insecto do fado, entrou no pântano da política (bem acutilante a visão do Candidato Vieira sobre a conjuntura nacional na semana que precede as legislativas) e ainda se passeou pelas artes plásticas e outras temáticas mais ou menos soltas. Eis Manuel João Vieira, uma das poucas personalidades bigger than life deste Portugal Catita.

Corações de Atum


Romance / Hardcore, o álbum dos Corações de Atum, foi gravado no Maxime. Gravar num sítio onde se toca habitualmente influenciou o processo de gravação?

Não. Em qualquer sítio em que gravemos as condições são sempre diferentes e afectam sempre as gravações duma maneira diferente. Neste caso, a opção que se fez de gravar tudo ao mesmo tempo, incluindo voz, fez com que não se pudessem fazer overdubs, tirando coisas que se pudessem sobrepor, como é o caso dos sopros. É uma coisa que elimina à partida uma data de hipóteses de melhoramento das coisas. O que se gravou foi aquilo que ficou.

Os Corações de Atum surgem um pouco na sequência do disco que gravaste com Shegundo Galarza. Podes contar um pouco sobre esse encontro e como as coisas evoluíram após a gravação desse álbum até chegares a este Romance / Hardcore?

Acabam por ser dois projectos completamente diferentes. Quanto ao primeiro projecto, a certa altura estava com o Edgar Pêra a realizar A Janela, penso, na Cordoaria, e estava lá o Shegundo Galarza a tocar para os casamentos de Santo António, e o Edgar disse: «E se tu gravasses qualquer coisa com o Shegundo Galarza?». E eu, não sei porquê, resolvi fazer isso mesmo. Falei com ele, arranjei uns temas, 90% que eram cantigas de todo o sempre – anos 50, 60 e outras mais antigas – e uns temas originais, que foram o “Corações de Atum”, “O Meu Coração Ainda É Teu” e “O Atendedor”. E aquilo foi feito com os músicos do Shegundo Galarza. Mas não houve uma sequência de concertos nem promoção do disco devido a várias dificuldades; depois o Shegundo adoeceu e acabou por morrer. De maneira que esse projecto ficou por aí. De qualquer maneira, tinha ideia de tocar umas canções desse projecto e arranjei uma banda de jazz, cuja dinâmica nos levou para o universo do jazz. Começámos a fazer uns textos de músicas da Broadway em português e pouco a pouco, com aquela sonoridade, comecei a compor especificamente para aquele grupo de instrumentistas, o que deu, isso sim, origem a este disco.

A opção de fazer um lado mais radio friendly (“Romance”) neste álbum tem dado resultados práticos?

Esta foi uma estratégia do editor, o David Ferreira, que teve ideia de o fazer exactamente por causa do airplay. E conseguiu porque, apesar de tudo, foi a primeira vez que ouvi, sem querer, músicas minhas na rádio. Aquela parte mais inofensiva saiu, o que pode ser positivo ou não. Foi uma maneira de arrumar as coisas, que pudesse dar saída em termos de rádio. Não foi uma má ideia. Foi uma ideia do David, não foi minha.

Estive há momentos a falar um bocado sobre isto com o pianista dos Corações de Atum, o Rui Caetano. Achas que as pessoas têm noção da qualidade musical dos projectos em que estás envolvido ou será que só prestam atenção às letras mais ou menos chocantes?

Acho que sim, que a ideia é que é um gajo que diz basicamente meia dúzia de obscenidades; e se eu não disser meia dúzia de obscenidades, as pessoas ficam assim com a boca aberta a olhar para mim com ar desconfiado. Se eu agora fosse cantar uma música romântica, as pessoas iam ficar muito desconfiadas e, provavelmente, iam-se embora muito devagarinho, com algum medo… um medo estranho. Portanto, eu estou condenado a dizer disparates. Cada um tem a sua sentença.

Neste disco, o tema “Eu gostava de gostar de alguém” é dedicado a todas aquelas que um dia fizeram da tua vida um jardim de flores – dizes que as amas a todas, sinceramente. És romântico ou tens uma costela romântica?

Quem é que não tem?! Todos nós somos influenciados por aquilo que vemos desde putos, e como já tenho uma certa idade já vi muitas coisas. Já vi gajos a dizerem disparates ainda maiores do que esse que eu disse, portanto acho que é natural. Eu sou relativamente maleável e tolerante, e consigo gostar, aceitar e perceber uma data de situações diferentes, musicais, de atitude… da parte do músico que também é actor, que também fala daquela maneira. A sinceridade é uma coisa muito estranha, a sinceridade em si é das coisas mais estranhas que há.

O concerto de hoje é a primeira actuação dos Corações de Atum aqui. No Teatro do Bairro Podes revelar um poço sobre o concerto?

Cada concerto é um concerto. Os concertos são moldados pelas circunstâncias, que vão desde a acústica ao número de copos de whiskey que se consome. Portanto, nunca são iguais por existirem todas estas variantes. Vai ser um concerto dos Corações de Atum como outro qualquer, sem seguir um alinhamento fixo.

Após o encerramento do Maxime, o Teatro do Bairro pode ser uma nova casa para os teus projectos?

Eu nunca me preocupei assim muito com os sítios. A maior marca que existe em termos de sítios foi quando estivemos quase dez anos no Cine Arte com os Irmãos Catita. E foram muitas horas porque os espectáculos iam muitas vezes desde a meia-noite até ao Sol aparecer, e era às Sextas e Sábados. Isso era mesmo uma casa. O Maxime também, de certa maneira, embora nunca tenha tido essa frequência. No Maxime tocava só uma ou duas vezes por mês. Também toquei bastante no Ritz Clube. Tudo o resto não tem nada a ver com isso. Aqui, no Teatro do Bairro, vai ser a segunda vez que vou tocar, por isso não sei responder a essa pergunta.


Fados do Lello


Já tinhas o “Fado do Barnabé”, nos Irmãos Catita. Agora cantas originais, fados humorísticos… podes falar um pouco deste projecto?

Para já, gostaria de deixar aqui uma mensagem de condolências à família do João Chitas, que faleceu há pouco mais de uma semana. Tivemos uma homenagem no Antiquário de Campo de Ourique, ali na Rua do Sol ao Rato, no último Domingo. Ultimamente era o guitarrista que estava a tocar comigo e com o Vital Assunção. Era muito bom guitarrista e era um tipo que entrava no espírito, que se divertia. Não sei como é que morreu assim de repente. Apesar disso, não vamos parar com este projecto. É verdade que já tinha apontado ao fado em algumas coisas dos Irmãos Catita, mas a certa altura descobri um determinado tipo de fado fadio numa caverna que se chamava “O Truque”, na Calçada do Marquês de Abrantes. Era um sítio onde se cantava fado e nos intervalos havia strip-tease. Foi aí que conheci o Vital Assunção. Comecei lá a tocar umas coisas e gostei. Portanto, a partir daí o insecto do fado ficou para sempre dentro de mim, como se costuma dizer. Ou a lagarta…

Já se sabe onde vai ser o concerto anunciado para dia 1 de Junho?

Neste momento, devido à morte do João Chitas, não sei se isso não vai se alterado.


Candidato Vieira


Não tens sentido vontade de, enquanto Candidato Vieira, fazer um comunicado ao país antes das eleições?

O Candidato Vieira era um primo meu. Ele morreu duma overdose de cocaína na Bolívia. Tinha lá ido ter com o Collor de Melo, que também é meu primo; e agora é um dos meus irmãos que se está a fazer passar por ele. Quanto ao comunicado ao país, eu já faço isso através da televisão. Mas, de qualquer maneira, a única coisa que tenho a dizer em relação a estas eleições é que estou muito tentado a não votar porque a ideia era só haver eleições de quatro em quatro anos, e nós já tínhamos votado neste Governo há pouco tempo. Acho que estão a tentar obrigar as pessoas a votar mais do que elas deviam votar, e eu não tenho pachorra. Se os gajos não se entenderam, depois de receberem um claro mandato do povo português para se entenderem, porque não tinham maioria absoluta, acho que deviam ser todos presos por estarem a brincar com os portugueses. Nenhum daqueles deputados que estão neste momento na Assembleia da República devia voltar ao Parlamento. Deviam ser impedidos e porem lá novos. Porque estes não foram capazes de cumprir o mandato do povo português. Neste momento considero que os deputados são criminosos e que transgrediram a Lei.

Quais seriam as medidas do Candidato Vieira para tirar Portugal da crise?

Conquistar Espanha, já! É o mais perto. Roubar o dinheiro todo aos espanhóis… a alguns bancos espanhóis. E há outros sítios. Por exemplo, conquistar uma ilha qualquer no Mediterrâneo. Desde que não estejam à espera, a gente consegue. Podia ser umas ilhas gregas, que não têm muitos soldados. Como os gregos estão cheios de massa, como toda a gente sabe, ficávamos ricos. Este é o plano do Candidato Vieira.

No mail de promoção do concerto “Desenrasca e Enfrasca”, que se realizou em Abril na Comuna, perguntava-se «Homens da Luta? Deolinda?», afirmando-se que os verdadeiros sustentáculos de várias gerações à rasca são os Irmãos Catita. Qual é a tua opinião sobre os Homens da Luta? E o que pensas da manifestação que se realizou no dia 12 de Março em Portugal?

Acho que os Homens da Luta são profissionais do entertainment e conseguiram fazer uma coisa que eu não consegui fazer com o Candidato Vieira, que foi levar aquilo a uma instância qualquer da realidade, como seja o Festival da Canção. Eu tentei levar o Candidato Vieira a uma instância da realidade, que seriam as eleições, e não consegui porque nunca consegui montar uma estrutura para tratar da papelada, o que também é um pouco complicado. Nunca consegui arranjar as 7500 assinaturas. Eles conseguiram, devido ao profissionalismo e trabalho em termos de media. Isso é bom e profissional. Em relação à manifestação, acho bem porque é um sintoma de que as pessoas não estão completamente entorpecidas ou adormecidas, em estado narcoléptico. Agora, como aproveitar aquilo para interferir na realidade, para mudar qualquer coisa? Isso não sei, não sei qual é o caminho, além dos caminhos que são tentar arranjar um partido e um gajo meter-se dentro da lógica desta realidade. Há outra maneira, claro, que é o movimento ser tão grande que arrastasse toda a gente, militares e tudo, e fazer uma revolução. Nesse caso, acho que mudaria alguma coisa. Caso contrário, faz parte das manifestações anti-sistema que o próprio sistema tolera e que acabam por perpetuar o próprio sistema. Fazem parte daquele escape que existe nas panelas de pressão. São um apito desse género.

Disseste numa entrevista que «esta civilização vive o crepúsculo de uma ilusão». Enquanto artista trabalhas esta decadência como matéria-prima?

Trabalho esse material como palhaço. Como pintor, não faço a menor ideia do que é que faço porque estou submetido a uma segunda ordem de lógica, que é a lógica do inconsciente, que me ultrapassa. Na sua manifestação mais formal, mais estética, consigo ter algum juízo consciente. Mas em relação ao material em si – ao que hoje as pessoas chamam “conteúdos”, o que é uma coisa muito estúpida – não tenho qualquer tipo de juízo.



Homem do Renascimento


Quantos corações cabem numa pessoa com um leque tão variado de projectos?

Acontece que eu gosto de tocar vários tipos de música. E às vezes os músicos com que toco estão mais direccionados para uma coisa específica, pelo que preciso de arranjar outros músicos para tocar outros tipos de música. É só isso. De resto, na verdade, neste momento sou eu que estou aqui, mas eu tenho mais cinco irmãos gémeos.

Como é que te organizas em termos de agenda?

Não me organizo, é impossível, não há qualquer possibilidade de organização. É o caos absoluto.

Nestas várias facetas vais assumindo nomes diferentes. Sentes necessidade de arrumar em diferentes arquivos as tuas diversas dimensões artísticas ou são apenas nomes que vão surgindo e ficando?

É mesmo um problema grave de organização que não sei resolver. De maneira que acabo por produzir variadas coisas e depois não sei onde é que as hei-de arrumar. E arrasto-as atrás de mim. Depois há uma arrecadação, e cada vez que se abre a porta cai uma data de coisas. E, sem sentido metafórico, é isso que se passa. Mas em sentido factual também se passa isso.

Li que gostavas de voltar a fazer banda desenhada. Tens algum projecto neste campo?

Eu gostava de fazer body painting na Rainha de Inglaterra, mas a minha agente não está a achar boa ideia. Qualquer dia tenho que ser eu a telefonar pessoalmente para a Rainha de Inglaterra. Fiz banda desenhada durante uns 15 anos, e acho que aquilo que via na banda desenhada na altura é mais ou menos o que vejo agora em relação à pintura. Agora estou a fazer um programa de televisão (no Canal Q) que tem qualquer coisa de banda desenhada, creio.

Todas estas facetas fazem de ti uma espécie de Homem do Renascimento. Existe alguma época histórica em que gostavas de ter vivido?

Gostava de ter vivido em montes de épocas. Isso é completamente impossível, claro, a não ser que houvesse aquelas máquinas do tempo atrasadas mentais dos filmes dos anos 80; mas, sim, gostava de ter vivido em vários outros tempos, tanto no futuro como no passado. Sobretudo, gostava de saber mesmo o que é que se passou… sei lá, por exemplo, no tempo do Viriato, o que é que realmente se passou, como é que foi a ocupação Romana da Península Ibérica. Devia ser giro um gajo ver de fora. Há coisas assim… não fazemos a menor ideia… que língua é que se falava aqui antes do Latim. Curiosidades históricas, Dr. Hermano Saraiva.


Soltas


Como foi representares-te a ti mesmo no Mundo Catita?

Foi fácil, embora não tenha sido bem a mim mesmo, foi mais representar aquele personagem que é suposto ser eu próprio.

Convidaram-te para o “Último a Sair”?

Não, mas convidaram-me para entrar naquela merda dos Perdidos na Tribo. Acho que me davam cinco mil euros, e eu comecei a pensar «Foda-se, uma série de dias a dormir mal… Naahhh…». Para o Último a Sair, se me pagassem bem, e tendo em conta que um gajo não tem que dormir lá e que é tudo treta, tinha aceite.

O que achas do conceito deste falso reality show?

Às vezes tem partes com piada. As partes com piada são as partes que são iguaizinhas a um programas desses, tipo A Casa (dos Segredos). As partes em que eles abusam um bocado e aquilo não está bem dentro do registo desses programas são mais fracas.

O Russ Meyer ocupa algum espaço no teu imaginário?

Há um italiano chamado Dino Brochenzi… ou Dino Brocchia… não me lembro bem… que eu prefiro. O Meyer copiou tudo desse gajo! Mas, sim, eu acho que o imaginário do Russ Meyer tem o seu valor dentro da cultura Pop, com certeza.

Qual é a relação que manténs com Campo de Ourique, que já homenageaste numa música dos Irmãos Catita?

Para mim, Campo de Ourique é assim como se fosse o sítio onde eu vivo. É um bocado como se fosse a minha aldeia. O que acontece quando passas muito tempo num lugar é que acabas por confundir a atmosfera da realidade do lugar com a atmosfera do sonho, com o imaginário. Qualquer sítio tem um imaginário associado e tem uma realidade. A realidade não existe porque são os imaginários que constróis a partir do contacto com a realidade. O Hitler tem uma drogaria em Campo de Ourique, chama-se “Drogaria Aushwitz”, vende garrafas de gás e não sei quê…


Hugo Rocha Pereira
hrochapereira@bodyspace.net
30/05/2011