Vocês costumam ter capas com imagens apelativas. Como surgiu a ideia para a capa do Pesadelo de Peluche?
Trabalhando o Ballard, e sendo este contemporâneo da Pop Art, fomos à procura de imagens que permitissem fazer uma espécie de colagem que jogasse com as ideias da Pop Art. De repente, no meu arquivo de fotografias de telemóvel, encontrei esta fotografia duma montra dum grande armazém de Paris, transformada em quadro natalÃcio em movimento como forma de atrair as famÃlias e, sobretudo, as crianças. Aquela foto tinha em si as ideias da Pop Art, as cores, a plasticidade, e jogava com a ideia das pinturas clássicas da Capela Sistina, tal como foram reavivadas na grande recuperação feita pelos americanos nos anos 80, um bocado ao que era o gosto dominante do público na época, com essa grande vivacidade de cores.
Pegando na questão das capas, como encaras o "regresso" do vinil?
Acho importante ele ter ganho o seu estatuto de nicho de mercado, até porque o vinil, reproduzido nas mesmas condições dum cd, tem muito melhor som do que um cd. Em relação às capas, já homenageámos as capas em vinyl quando lançámos a edição especial do "Mutantes S21" com banda-desenhada. A capa do vinyl é (ou pode ser, pelo menos) uma obra de arte pelo tamanho que tem e as possibilidades gráficas que dá. Na caixa dum cd precisamos sempre duma lupa.
Como já referiste, o "Pesadelo de Peluche" teve como fonte de inspiração o Athrocity Exhibition, de J. G. Ballard. Como surgiu isso?
O Ballard já era uma referência; aliás, já o tinha trabalhado nos Mécanosphère. Quando decidimos partir para este novo disco tÃnhamos uns timings muito apertados e precisávamos dum parâmetro onde nos pudéssemos envolver, apesar da nossa separação geográfica. O Ballard surgiu logo como a coisa mais fácil por estar por dentro da escrita dele e ter esse livro – que não está editado em Portugal e consiste em pequenas narrativas, "romances condensados" como ele lhe chama, que giram em torno das alterações psicológicas provocadas pela linguagem de massas e a vivência altamente tecnológica do mundo moderno – como uma grande referência. Ainda por cima, é um livro de meio de carreira que condensa os outros livros do Ballard. As sementes e as ideias estão todas ali.
Os Mão Morta focam muito o tema da força dos meios de comunicação social e da manipulação mediática. Consideras que o quarto poder é mais um poder ao serviço dos poderes ou um contra-poder?
Se fores à História da imprensa tens exemplos de denúncia de situações e casos de concentrações dos media nas mãos de grupos económicos, que fazem reflectir a voz do dono, o que cria uma barreira difÃcil de transpor, apesar da suposta liberdade de imprensa.
Muitas vezes vocês partem de conceitos literários ou filosóficos, o que confere aos álbuns de Mão Morta um carácter de certa forma conceptual…
Isso tem a ver com uma questão prática. Como estamos dispersos geograficamente, trabalharmos uma matéria comum ajuda a anular essa dispersão. Trabalhando cada um no seu canto, haver um livro, ou um autor, ou uma obra que todos conheçam ou percebam ajuda a que não exista essa dispersão e todos trabalhem na mesma sintonia de onda. E é mais fácil trabalhar coisas externas à música, porque assim não se arrisca fazer decalques sobre a matéria-prima ou o modelo.
Vocês recorrem muito à tecnologia para compor, uma vez que estão separados geograficamente?
Sim, actualmente compomos à distância, trocando ficheiros pela net, e quando temos as coisas quase em maquette é que vamos para estúdio. Quando começámos a ensaiar este último disco, já ele estava gravado e editado.
Destacas outros livros do Ballard, além do Athrocity Exhibition?
O "Aparelho Voador a Baixa Altitude", do qual foi feito um filme duma realizadora luso-sueca, Solveig Nordlund; e há coisas mais recentes, a ver com a revolta da classe média em estâncias balneares, ou entre os inquilinos de condomÃnios fechados de Londres, com todos os massacres que se dão. É um novo passo na perspectiva da psicose que o mundo moderno traz a pessoas à partida insuspeitas, neste caso indivÃduos de classe média e alta numa vivência quotidiana de bairro ou de férias.
Podes dar-me alguns exemplos de outros livros ou escritores de eleição?
Se começasse, nunca mais acabava!... (risos). Além dos que já referenciámos em discos ou canções, há um autor egÃpcio, editado em Portugal pela AntÃgona, Albert Cossery, que tem uns livros passados no bas fond egÃpcio, sobretudo do Cairo, que são duma grande riqueza de vida e humor sarcástico e a sangue-frio fabulosos. Quando vejo o que se está a pensar no Egipto, estas manifestações, lembro-me sempre dele. Nos livros dele há pequenos actos de revolta pública que têm um bocado a ver com esta forma como se põe em causa o Mubarak e o poder ditatorial egÃpcio. A relação entre arte e realidade é sempre muito estranha.
Como olhas para o que se está a passar no Egipto?
Eu acho óptimo o que se está a passar no Egipto e no Norte de Ãfrica na generalidade; o que se passou na TunÃsia… Olho para aquilo, e de certa forma faz-me lembrar o nosso 25 de Abril ou a queda do fascismo noutros paÃses. São regimes ditatoriais apoiados pelo Ocidente porque interessa uma estabilidade na religião e, sobretudo, uma espécie de escudo contra o aumento e domÃnio do fundamentalismo islâmico e, portanto, não se importam de apoiar regimes ditatoriais. O Ocidente tem um certo receio de um eventual vazio de poder nesses paÃses. O mesmo medo que se tinha em Portugal quando caiu o fascismo. Como se esses povos brutos e iletrados não soubessem viver em liberdade e precisassem dum ditador. Existe esse risco de se aproveitarem do vazio do poder e surgir uma ditadura islâmica, como acontece no Irão, mas prefiro, ainda assim, que haja esta libertação, este experimentar a liberdade que está acontecer.
Passando do Cairo para Budapeste, que já visitaste várias vezes e foi homenageada num "hino" dos Mão Morta. Que impressões tens desta cidade?
Budapeste é considerada a Paris do Leste. É uma cidade bonita, sobretudo o lado de Peste. Após a queda do Muro de Berlim, que foi a primeira vez em que a visitei, estava ansiosa pelo Ocidente e importou tudo ao mesmo tempo, estilos musicais diversos sem fazer distinções. A noite de Budapeste já funcionava com bares, concertos. Passavam tudo, de todas as épocas, e era muito engraçado. Havia uma grande vontade de fazer coisas como Londres, Nova Iorque, Paris e Berlim. E as coisas muito naif mas muito criativas. Agora Budapeste está muito no espÃrito de Berlim, com bares cheios de criatividade, ocupação de edifÃcios devolutos, velhas fábricas, decoração feita de materiais ad hoc reutilizados com muita imaginação, nos tectos, nas paredes, fora do seu uso habitual. Transformar uma cadeira numa escultura, por exemplo, é quase como transformar um urinol numa escultura. Budapeste tem muito isso, e continua a ter bastante rock, embora agora também tenha música de dança e já se distinga mais quem segue cada um dos diferentes estilos. Em 89/90 era tudo juventude sequiosa de Ocidente e não havia classes nem sectarismos.
Regressando ao Pesadelo de Peluche, o tema "Teoria da Conspiração" contém muito o impulso urgente do punk. Foi quase um regresso aos tempos em que viste os primeiros concertos em Lisboa, na António Arroio e nos Alunos de Apolo?
É mais techno-punk, do inÃcio dos anos 90. A ideia deste disco em termos musicais, como estávamos a tratar o Ballard e ele fala da homogeneização e dos Ãcones mediáticos, dos gostos dominantes, passou por concentrarmo-nos em algumas tipologias tÃpicas do rock, e fomos jogar com esses clichés e tipologias. A "Teoria da Conspiração" é um exemplo, mas quase todas as canções deste álbum são brincadeiras sobre diferentes clichés e tipologias do rock nos últimos 20/30 anos.
Ainda a propósito deste tema, como é que se consegue manter esta voltagem ao fim de tantos anos?
Como nós estamos na música por prazer, e esse prazer é mantido por uma procura e uma descoberta constante, isso reflecte-se na composição da nossa música. Acho que é isso que nos mantém de certa forma relevantes. Não nos repetimos, não fazemos as coisas só por fazer, porque está na altura de fazer um novo disco, porque é preciso mais lenha para alimentar concertos. Fazemos as coisas porque temos necessidade de as fazer, de procurar novas coisas, de encontrar novas formas de trabalhar. Isso reflecte-se na urgência e frescura do que fazemos.
Nesta fase o que te dá mais gozo: o estúdio ou os concertos?
A mim dá-me prazer tudo. A diferença não é bem entre gravações e concertos, tem mais a ver com os momentos. Há dias em que tenho um concerto e estou com outras preocupações, por isso apetecia-me fazer tudo menos um concerto. Acontece. Mas há dias em que um concerto é a melhor coisa que me podia acontecer e vou para o concerto cheio de prazer e vontade, e não havia nada que me apetecesse mais no mundo do que dar um concerto. Em estúdio é a mesma coisa. É um trabalho mais frio, mas dá-me um gozo muito particular. Não propriamente aquelas longas sessões de espera pela nossa vez para pôr a voz ou coisa parecida, mas o lado mais bricolage de estar a construir um tema, a fazer uma letra, ver como aquilo fica a soar. E, se pudesse, também passava a vida nisso. Noutras vezes não me apetece nada ir para o estúdio. Está um dia bonito, não apetece enfiar-me entre quatro paredes escuras e estar lá a ouvir sons. Apetecia-me era estar cá fora, a apanhar Sol ou a beber uma cerveja.
E depois há ainda a parte da composição…
É aquela parte que a gente só faz quando lhe apetece mesmo. Por isso dá sempre gozo. Recebo hoje o ficheiro da base duma música para fazer, por exemplo, uma letra e, se naquele dia não me apetece, não faço. Faço no dia seguinte. Aà sento-me, começo a ouvir e a ter ideias e começo a escrever; e as coisas começam a sair bem ou a sair mal. Mas todo esse lado criativo, de sentir que está ali qualquer coisa a ser formada, é uma coisa que também me dá muito prazer.
A adrenalina dos concertos leva por vezes a situações-limite, quer por parte de quem toca quer do público. Como se reage quando uma fã sobe ao palco e destapa os seios ou nos tenta fazer sexo oral, ou como é que és levado a tomar certas atitudes?
O palco tem uma regra muito simples: não podes deixar nada a meio. Tens que assumir as coisas. E isso tanto é válido para um erro, num solo de guitarra ou numa vocalização, como para qualquer acontecimento exterior. As coisas não podem ficar no ar, sem sequência. A partir do momento em que se cumpre essa regra, nunca se sabe quais são as consequências finais a que isso nos pode levar. Mas ao menos temos a certeza que as coisas ficam intensas. O momento dum concerto é um momento colectivo e essas consequências são sempre colectivas.
Podes partilhar alguns concertos que viste e te tenham marcado especialmente?
Muita coisa, E nem sempre é pela qualidade da música. O concerto de estreia dos Xutos, em 79/80, em Lisboa, foi excepcional, não pela qualidade da música ou encenação, mas pela adrenalina e abismo. Foi daqueles que me ficou para o resto da vinda. Ainda hoje falo nisso. Das bandas estrangeiras, os concertos do John Cale são happenings autênticos, apesar de ele tocar praticamente as mesmas músicas há anos. Ouvi-lo a solo a atingir o orgasmo é qualquer coisa inesquecÃvel. São pessoas que se dão a 100% em cima do palco. Os concertos são muito mais do que mera audição de música. Já vi concertos de músicos que adoro, e chego ao fim e foi muito bem tocado, o som estava óptimo, não houve enganos, mas o concerto deixou-me um certo vazio porque não aconteceu nada. O artista limitou-se a reproduzir fidedignamente e com as melhores condições possÃveis a música que já tinha gravado. Chego ao fim do concerto e quando me perguntam se gostei, digo: «Foi belÃssimo, óptimo, muito bem tocado… mas já me esqueci!».
Quais são as maiores diferenças que encontras entre os concertos em Portugal de há umas décadas atrás e os de agora?
As maiores diferenças são de carácter técnico. Deixaram-se praticamente de fazer concertos em pavilhões, que ofereciam na maior parte condições acústicas terrÃveis, e no equipamento, que agora é muito melhor. Isso permite perceber muito melhor o que se está a cantar e a tocar. Quanto aos concertos em si, a maior diferença é que antigamente havia uma maior virgindade do público português relativamente a concertos, de maneira que havia uma maior euforia. Hoje há uma maior habituação, por isso as pessoas não ficam eufóricas por dá cá aquela palha.
Pegando noutra faixa do último álbum, a letra do "Tiago Capitão" é sobre oportunismo polÃtico?
É um bocado. Os maoÃstas eram mais moda do que trabalho polÃtico estruturado e, com o avançar da história, muitos desses antigos maoÃstas viraram dirigentes de partidos mais da direita ou do centro. Há um percurso tÃpico dum ex-maoÃsta que sublinho nesse inÃcio.
Como te posicionas hoje, politicamente falando?
Posiciono-me à margem! (risos)
Votaste nestas últimas presidenciais?
Não, e pelos visto se quisesse também não conseguia… (risos)
Se calhar, desde a altura do boom inicial da música moderna portuguesa nunca se voltaram a viver tempos tão ricos, em quantidade e qualidade, como agora. Concordas?
Sim, em termos de pop/rock, há muito tempo que não havia. Nos anos 80 houve um grande boom criativo, nos anos 90 esse boom criativo foi-se por água abaixo, mas por outro lado ganhámos uma grande consistência em termos técnicos. E os tempos actuais são um bocado sÃntese disso tudo. Há criatividade e sustentabilidade técnica. Actualmente vivemos numa boa altura.
Existem alguns projectos actuais que te agradem particularmente?
Existem, inclusive cá de Braga, como os peixe : avião. Também muita coisa de Coimbra – os projectos do Paulo Furtado são muito interessantes.
Qual é a tua opinião sobre esta nova vaga de cantautores nacionais, como o B Fachada, o Samuel Úria, o Tiago Guillul?
Passa-me um bocado ao lado. São um fenómeno um bocado lisboeta, empolado pela comunicação social, que está toda em Lisboa. Se fosse em Leiria ou em Setúbal, ninguém iria ouvir falar disso. Tiveram a felicidade de estar em Lisboa, senão não tinham o impacto que têm.
Como é que olhas para programas como o "Ãdolos" e o "Portugal Tem Talento"? Podem ser um ponto de partida para os músicos ou é construir uma casa a partir do telhado?
Aquilo são programas de entretenimento, não são programas de música. Podem criar portas para intérpretes, boas vozes, mas não criam músicos. E nem há muito espaço no panorama musical português para intérpretes. A maior parte dos nossos músicos são compositores e intérpretes.
O que tens ouvido e comprado mais recentemente?
Sobretudo coisas mais antigas, para preencher lacunas e também porque normalmente têm preços mais acessÃveis. Quanto à s coisas actuais, prefiro deixar assentar a poeira para decidir se vale ou não a pena ter. Embora não seja uma descoberta assim tão recente, os Black Angels foram a última grande descoberta do que se vai fazendo actualmente. O último disco deles, embora não seja para mim tão interessante como o anterior, continua a ser um grande disco. Tenho andado a ouvir colectâneas, de novidades para 2011, dos melhores do ano passado e de blues.