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Elvis Perkins
O Universo é um Amigo


É deste norte-americano discreto e vagamente místico um dos mais belos e surpreendentes discos do ano, Elvis Perkins In Dearland. Se a estreia, há dois anos, com o álbum Ash Wednesday, oferecia canções detalhadas e letras cativantes (ouvir While You Were Sleeping ou All The Night Without Love), o novo Elvis Perkins In Dearland mostra-o no centro de uma banda-fanfarra, inspiradíssimo nas melodias e novamente nas palavras. A sua dose de tragédia pessoal – a mãe seguia num dos aviões que embateram contra as Torres Gémeas no 11 de Setembro; o pai, o actor Anthony Perkins, morreu de SIDA – permeia músicas como «Doomsday», mas ao invés da lamúria Elvis Perkins prefere a fuga para a frente, numa euforia cheia de bravura que é quase comovente. Ao telefone de Nova Iorque, Elvis Perkins divide o mérito com o Universo: parece que um e outro se dão bem.
O novo álbum, Elvis Perkins In Dearland, foi tão fácil e natural de fazer como é de ouvir?

[risos] Acho que nunca é. Talvez às vezes seja. Penso que, neste momento, pões o CD a tocar e as músicas sucedem-se umas às outras com facilidade, mas para chegar a este ponto houve muito que pensar, muito que trabalhar, muito que fazer e refazer, mexer nas músicas, misturar… Tudo para que o CD agora possa deslizar com facilidade pelos ouvidos do ouvinte. Quanto oiço o disco, o que oiço é todo um historial de tentativas e erros que levaram ao produto final, historial esse que imagino que o ouvinte não tenha de conhecer (risos). Às vezes gostava de poder ouvi-lo sem pensar nisso tudo, e às vezes até consigo, mas muitas das vezes estou a ouvi-lo e estou a «ver» a sala onde o gravei ou onde o misturei. Preferia ter uma visão menos holística do disco.

Mas quando toca as músicas ao vivo, por exemplo, não consegue distanciar-se dessas memórias?

Às vezes, sim. A mente é um sítio labiríntico e complicado e, por vezes, quando estou a tocar as músicas ao vivo, ainda me lembro da sala onde as gravei, e dou por mim a pensar que aquela versão ao vivo é, afinal, uma recriação estranha e desonesta da própria gravação. A mente tem muitos recantos obscuros e estar a cantar a minha música para as pessoas, num concerto, pode ter o seu quê de existencial.

A minha canção favorita do disco é "I Heard Your Voice In Dresden". De onde veio a inspiração para essa música?

De muitos sítios. Foi uma canção que tive de acabar com rapidez; ela estava há muito tempo a fermentar na minha cabeça, mas quando fomos para o estúdio, ainda não existia numa forma que desse sequer para ser cantada. Na minha cabeça, tinha uma vaga concepção do que a canção seria, mas a ideia era um pouco caótica, mais do que é habitual no meu processo de fazer as coisas. No primeiro disco, por exemplo, as canções estiveram algum tempo a repousar, até ganharem confiança e assim chegarem ao disco. Esta canção ["I Heard Your Voice In Dresden"] ainda hoje me parece estranha e misteriosa, como se não fosse minha, como se não tivesse tido tempo para perceber o que ela é. Ainda hoje, quando a canto, parece que ela sai da minha boca e não sei bem do que se trata. Mas também gosto dela e acaba por ser uma experiência interessante, cantar uma canção que supostamente fui eu a escrever mas que me soa estranha, como uma língua estrangeira. Quanto à inspiração, acho que não consigo especificar; é uma canção que se espraia e que existe na minha mente em espaços e em tempos diferentes. Ao mesmo tempo, a letra leva-me para diferentes dimensões, recantos do tempo e do espaço, histórias e História, fantasia e da realidade. É um bocado complicado (risos), mas posso dizer que é uma canção que se espraia e que deu nisto: "I heard your voice in Dresden now it follows me everywhere".

Dresden é a cidade, certo? Porque a certa altura canta «in the Dresden», como se Dresden fosse um substantivo…

Sim… É a cidade, na qual eu nunca pus um pé, pelo menos neste corpo físico ou neste tempo presente. Também há pessoas que julgam que é o nome de um hotel, mas se existe um hotel com esse nome, eu nunca lá estive. É uma série de coisas diferentes ao mesmo tempo.

Há quem elogie a sua música pela sua coragem e sinceridade. Considera-se um músico corajoso e sincero?

Uau [risos]. Se fosse assim tão corajoso e sincero gostaria muito de ser meu amigo [risos]. Eu não passo muito tempo a pensar nisso, ou a aplaudir-me por ser corajoso e sincero. Mas às vezes acho difícil pensar em mim como sendo sincero, porque sinto que tenho uma concepção muito vaga daquilo que sou. Aquilo que somos é composto de tantas facetas, de tantas atitudes, de tantas impressões, que às vezes não sei o que é a sinceridade, de onde vem ou o que é que implica. Há espaços dentro de mim que não sei se acredito neles, ou se já os conheci. Parece que estão sempre a mudar, como um peixe… quer dizer, um peixe é sempre sincero [risos]. Talvez seja verdade [que sou corajoso e sincero], mas não consigo pensar em mim nesses termos, ou em quaisquer outros termos. Um conceito desses é tão estanque e o ser é tão líquido... Mas parecem-me boas qualidades e gostaria de personificá-las. Sinto-me grato por haver pessoas que, a terem de escolher palavras para me descrever, escolham essas duas, tão simpáticas.

Este disco tem um som muito maior e mais cheio que o primeiro. A banda tem um papel muito mais importante. Foi uma decisão pensada desde o início?

Bem, chega uma altura em que [faz sentido] ficares com a banda com que já trabalhas há tanto tempo. Pela força das circunstâncias e também por uma questão de escolha, trabalhava com eles há muitos anos e não faria sentido [fazer tábua rasa disso] e ir para estúdio gravar um disco muito esparso e com arranjos levezinhos. O que tu ouves ali é um contributo de toda a banda, das ideias e das escolhas de toda a gente, e o resultado, também, de todos os instrumentos que temos à nossa disposição e que queríamos ouvir nas canções. Acrescentámos muita coisa às canções que, mais tarde, até viríamos a subtrair – não usámos tudo ao mesmo tempo – mas é certamente uma palete de sons maior e mais concentrada do que acontecia no primeiro álbum.

O disco tem sido comparado a Bob Dylan, às "marching bands" americanas, à música de Nova Orleães. São influências importantes para si?

Nem por isso. Acho que são indicações úteis para o ouvinte. Enquanto seres humanos, estamos sempre a tentar conferir um sentido à informação que nos chega, o que é importante sobretudo nos dias que correm, em que o fluxo de informação é tão avassalador. É um reflexo natural ouvir um disco e pensar: ah, ouço aqui isto e aquilo. Caso contrário deixavas-te arrebatar só pelas sensações, o que se calhar seria uma existência mais bela e sublime. Mas claro que essas coisas que referiste não me são estranhas, e se as pessoas as ouvem na minha música, é porque estão lá. É verdade que temos as «marching drums», que são um dos elementos da banda e não correspondem a uma escolha muito pensada de fazer música de «marching band». E temos muitos sopros à nossa disposição, mas não é por querermos dar a impressão que estamos a emanar esta música de Nova Orleães. Há muita coisa para ouvir no disco e esses elementos não estão longe da verdade. Mas ao mesmo tempo, acho que a verdade, neste disco – ou em qualquer outro disco, ou qualquer outra coisa – é uma ilusão.

Parece muito atento aos processos internos da mente. O subconsciente influencia muito a sua música?

Sim, acho que a mente analítica, matemática e racional tem sido muito sobrevalorizada na nossa sociedade, de tal forma que estamos a transformar-nos em máquinas, ou a criar máquinas para desempenharem as nossas funções. Ao fazermos isso, negligenciamos o sonho ou o significado profundo do desconhecido. Julgo que há um caudal sem fim, muito profundo, de coisas na vida real que não conhecemos, ou que nunca poderemos conhecer. Coisas que não apanhamos e algo me diz que é aí que reside aquilo que a mente racional não consegue penetrar ou classificar numa forma facilmente reconhecível. É uma postura fácil de adoptar, num mundo tão obcecado com o conhecimento, mas estou certo que não sei grande coisa sobre coisa nenhuma. Se calhar há momentos em que, lá está, sinto-me corajoso e sincero, e é então que me sinto mais próximo de alguma coisa – mais próximo da verdade, da realidade –do que quando estou a tentar organizar tudo, convencido de que sou capaz de o fazer.

Tocou seis vezes em Espanha recentemente. Não há maneira de atravessar a fronteira?

Quem me dera [risos]. Adorava ir a Portugal, onde nunca estive; adorava ver Lisboa. Comecei recentemente a interessar-me pelo trabalho da Joana Vasconcelos e ando a ter um mini caso amoroso interno com Lisboa. Mas acho que é já tarde para mudar os planos da digressão. Temos de trabalhar de forma muito eficiente e, infelizmente, não temos a liberdade económica para mudar tudo.


Lia Pereira
12/10/2009