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Large Number
Quando o electroclash já era antes de o ser
Ainda não sabemos se há vida em Marte, mas uma coisa podemos assegurar: há vida depois dos Add N to (X). Ann Shenton, um terço da pujança criativa destes, regressa com um novo nome colado na testa. Os Large Number vêm estancar a estafada passagem de electroniquices baratas pelos ouvidos do mundo nos últimos tempos, com o electroclash à cabeça a tentar levar a electrónica ao povo.
Shenton não se preocupa em deixar (ou não) crescer os pêlos na cara ou nas virilhas, como Peaches ou as Chicks on Speed. Spray on Sound está aà com ou sem cosméticos e vegetais metidos ao barulho, e foi a desculpa para um encontro no Chiado, em Lisboa. Os oradores são Marc Hunter, da editora White Label Music, e, claro, Ann Shenton.
Os
Add N to (X) formaram-se depois de tu e o Barry se terem conhecido em 1993.
Como é que os Large Number apareceram e porquê?
Quando os Add N to (X) se separaram, eu já não queria
voltar a fazer música. Estava cansada disso. Os Large Number formaram-se a
partir das cinzas dos Add N to (X). Consegui recuperar alguns teclados, não
todos mas os meus preferidos, MS-20, Moog e theramin, e muitas outras coisas.
Decidi seguir em frente e fazer música que não fosse puramente electrónica.
E é isso que temos vindo a fazer, aquilo a que eu chamo “progtrónicaâ€. Como
em rock progressivo, mas neste caso, é electrónica progressiva. “Progtrónicaâ€
é a minha nova palavra.
A inspiração para Large Number veio do nome
de uma canção do álbum Loud Like Nature , dos Add N to (X)?
Sim, do tÃtulo desse tema. Quando eu falei em “Large
Numberâ€, todos os meus amigos me disseram que era um óptimo nome para uma
banda, e disseram que iam usá-lo. Mas eu respondi “vocês não o vão usar, quem
o vai usar sou eu.†O meu amigo Jason que agora trabalha com o Jarvis Cocker
disse-me que ia usá-lo, e eu retorqui “não, não o vais usar. O nome é meu.â€
Por isso, tive que gravar o disco depressa, de modo a poder usá-lo.
É verdade que gravaram Spray on Sound numa quinta, nas imediações de um complexo militar desactivado?
Sim. Nós não querÃamos voltar a um ambiente de estúdio.
Estar num estúdio é quase como estar numa fábrica. Nós gostamos de chegar
a um local, sem sabermos com o que vamos poder contar, sem sabermos se é adequado
para tocar. Neste local, tÃnhamos de colocar dinheiro para termos electricidade,
como nos serviços de estacionamento. O Mark estava preocupado com os computadores
e com a eventualidade de perdermos tudo o que Ãamos gravando se a luz fosse
abaixo. Por isso, ia colocando o dinheiro, e chegou às 200 libras. Quando
nos estávamos a tentar estabelecer, transportando todo o nosso material, o
dono da quinta exclamou “Vocês têm muito equipamento!â€. As pessoas não sabiam
que Ãamos lá para tocar música. Tivemos que fingir que éramos “birdwatchersâ€,
que Ãamos da parte da BBC estudar os pássaros da região. E quando nos perguntaram
que tipo de aves querÃamos observar, pensámos “merdaâ€! Uma mentira leva a
outra. É o efeito bola de neve. [risos] Gostamos de chegar a um local com
toda a equipa no meio de nenhures, para impedir que regressem a casa no final
do dia. Como se fossem reféns, o que não acontece num estúdio convencional.
Ali, era tudo diferente, tÃnhamos cocaÃna, boa comida, bom vinho, bom queijo
e vacas no exterior. Na verdade, querÃamos fugir do ambiente de estúdio.
Têm mesmo um tocador de banjo cego na formação?
Bom, ele não é mesmo cego. É um grande amigo nosso.
Nós só dizemos isso para o chatear. Porque as namoradas dele não são muito
bonitas, portanto costumamos dizer que ele é cego, embora seja um bocado perverso
da nossa parte. [risos]
Que tipo de software utilizaram na gravação
de Spray on Sound ?
Utilizámos um “melatromeâ€, que é um grande teclado
com uma cassete dentro. O “melatrone†é um instrumento com direito a um clube
de membros mundial. Nós tÃnhamos um mas tivemos que vendê-lo. O nosso produtor
queria usar um programa de software associado ao “melatromeâ€, mas eu disse
que não, que queria que soássemos verdadeiros, com instrumentos de música
reais e quase sem programas.
O que significa o tÃtulo do disco?
Não sei bem. Acho que dentro de 50 anos as pessoas
vão sentir a música de outra forma. Por exemplo, o vinyl deixa de estar na
moda e passa a estar na moda. Mas penso que a música será algo que tu absorves.
Talvez passes a desejar misturar os teus sons favoritos e passes a colocá-los
de manhã como um perfume que usas o dia todo. Esse é um dos conceitos possÃveis.
Mas refere-se também a quando vais ao supermercado e encontras comida para
gatos, champôs e CDs. A música está a tornar-se tão comum como…
Marc – É um produto como qualquer outro.
Sim, é como um produto doméstico. A música não devia
estar tão próxima dos champôs. Eu gosto de ir a locais especiais onde só se
vende discos.
O Stephen disse uma vez que os Add N to (X)
eram o oposto das bandas que usam excessivamente laptops e o Pro Tools. Ainda
te revês nesta afirmação?
Ainda que o meu produtor use o Pro Tools, eu não quero
saber disso. É como um arquitecto, que faz um plano para um edifÃcio; ele
não mistura o cimento nem coloca os tijolos, isso arruinaria o processo de
trabalho. Eu não quero saber disso, vejo-o como um instrumento musical, uma
cassete de gravação.
Ainda é importante o paradigma homem-máquina
na vossa música?
Não acho que continue a ser importante. Nós abordámo-lo
em “Metal Fingers in My Body†e coisas do género, mas os Large Number são
de longe mais orgânicos. E penso que é isto que está a acontecer com a tecnologia:
está a tornar-se mais orgânica. Algo que se pode comer, em que se podem incrustar
partÃculas de som. Já não é tanto a preto e branco, não achas? [dirigindo-se
a Marc]
Marc – Sim. Penso que a relação entre o homem e a máquina
mudou. As pessoas estão fartas de tecnologia, interessam-se mais por um som
orgânico.
Já consideraram gravar a totalidade de um disco
sem partes electrónicas, com a voz limpa e despida?
Gosto da ideia de ter ambas, da parte electrónica e
da orgânica. Acho que é disso que trata a “progtrónicaâ€, de que falava há
pouco. Qualquer coisa como uma orquestra vegetal. Adoro a ideia de fazer sopa
a partir dos instrumentos, de soprar uma cenoura. Imagina a saliva! [risos]
Mas eu nunca experimentei fazer sopa a partir da theramin. Não penso que seja
possÃvel. Só se eu tivesse carne, uma theramin feita de carne… [solta uma
gargalhada que se ouviu na Rua do Carmo.]
A pornografia e o conteúdo explÃcito são factores
relevantes na vossa música e no artwork ?
Não penso que sejam. Estás a referir-te ao vÃdeo de
“Plug Me Inâ€, não é?
Sim.
Pois. Penso que esse é um vÃdeo de merda. Foi feito
para os homens verem. Eu estava fora, em Idaho nos Estados Unidos, e quando
regressei o Barry e o Stephen tinham feito esse vÃdeo. Eu disse logo que eles
podiam ser promovidos a produtores porno da semana. Estava uma merda. Eu gosto
do elemento cómico da sexualidade e aquilo não tinha comédia nem amor nem
inteligência. Tinha duas miúdas a brincar com aparelhos de plástico. Acho
que a Peaches e todo o electroclash, que misturam a estética punk com a electrónica…
estão a confundir o punk com sexo. O punk não teve nada a ver com sexo, foi
sobre liberdade, libertação, “fuck the system!â€.
Então, o que achas da Peaches e do electroclash,
em geral?
Acho que é um movimento passageiro, penso até que já
está um pouco acabado. Algumas pessoas perguntam-me sobre o electroclash.
Para mim, os Add N to (X) faziam electroclash antes de haver uma palavra para
isso. Agora, é tempo de seguir em frente, não estou envolvida nesse movimento
nem na “glamtrónicaâ€. O sexo que o electroclash e a “glamtrónica†apresentam
é aborrecido. As coisas podem ser bastante sexuais sem necessitarem de ser
explÃcitas. A música é sexual.
Marc – Penso que a Peaches é mais marketing…
Sim. A música já é sexual. Não interessa o que dizes, a música afecta-te fisicamente.
As linhas do baixo afectam-te aqui. [leva as mãos ao ventre] Um violino afecta-te
na cabeça. Para se tocar as pessoas com a música, não é preciso mostrar as
mamas nem aparecer com miúdas na piscina. Por mim, tudo bem mas não é música
inteligente. Para entrares em Spray on Sound tens de mastigar um pouco,
não é como um hambúrguer, não é música de hambúrguer. Não é como o McDonald’s.
É mais como um bife apreciado lentamente… mas com muita mostarda, porque por
vezes é difÃcil. Mas vale a pena, acho.
Achas que o som dos Large Number é, de alguma
forma, fÃlmico?
Mais ou menos. [hesita um pouco] Um pedaço de música
deve ser capaz de existir em si mesmo. É uma pena que as pessoas pensem “esta
música devia vir com um filmeâ€. Uma música não tem de ter necessariamente
um vÃdeo. Com a MTV qualquer música tem de vir acompanhada de um vÃdeo, é
uma exigência de marketing. Mas acho fantástico que um pedaço de música possa
existir sem um vÃdeo. Apesar de irmos fazer um vÃdeo quando regressarmos…
[risos]
E como será o vÃdeo?
Marc – Ainda não sabemos. Estamos ainda a pensar no
que vamos fazer. Mas será um interessante pedaço de arte.
No website dos Large Number há uma referência
a “sound picturesâ€. O que são e como as criam?
Quando ouves uma música, por vezes pensas “isso não
foi muito longo, deve ter aà uns dois minutos†e depois olhas para a parte
de trás do disco e percebes que tem seis minutos e 15 segundos. Gosto da ideia
de que com o som, tal como com o cinema, podemos brincar com o tempo, esticá-lo
e encolhê-lo.
Ainda notas alguma herança dos Add N to (X)
nos Large Number?
Do ponto de vista visual, sim, investi muito no artwork dos Add N to (X). Penso que alguns aspectos vão parecer-se aos Add N to (X),
outros vão soar como eles. Mas a filosofia por detrás do processo de criação
mudou completamente. Já não tenho um manifesto, do tipo de só usar material
analógico, porque acho que isso nos limita um bocado. Temos agora abordagens
diferentes, como com este disco que gravámos em três semanas e esse foi o
limite. Para o próximo disco estou a pensar num outro número com que tocar,
talvez um número mais largo (“a larger numberâ€). O Marc quer que o gravemos
em três horas, não sei se isso é possÃvel. [risos] [dirigindo-se a Marc] Marc,
podes ir buscar-me outra cerveja? [agora ao entrevistador] Desculpa, é que
eu preciso. Para a minha garganta…
A propósito de Add N to (X), o nome vem de
uma fórmula matemática, não é?
Sim. É adicionar uma quantidade desconhecida a outra
quantidade desconhecida, sem nunca se saber qual será o resultado. E era um
pouco essa a nossa missão, não querÃamos nem tÃnhamos a ambição de acabar
em espectáculos de música ou na forma habitual de fazer música. Não sentÃamos
interesse em ter quilos de cocaÃna nem muito sexo. Não vÃamos a música como
uma carreira, antes como um interesse comum. Não sabÃamos qual seria o resultado,
tratava-se e trata-se de abraçar o inesperado, o desconhecido. Evita as receitas,
as técnicas, não te permitas colocar-te numa posição segura. Evita pessoas
previsÃveis, evita coisas e lugares previsÃveis. [O manifesto continua. Disse
“manifesto� Pois.] … e instrumentos, e eu posso dizer que os meus instrumentos
são mesmo imprevisÃveis. Estão sempre a partir. Por exemplo, com a theramin
foi o que aconteceu. Estávamos a actuar nos Estados Unidos quando alguém se
entusiasmou e acabou por parti-la. Agora temos de tocar do avesso, é um instrumento
retardado. [risos]
O Andy Ramsay dos Stereolab costumava tocar
bateria para os Add N to (X) nas actuações ao vivo. Achas que eles vão conseguir
aguentar-se por muito mais tempo depois da morte de Mary Hansen?
Uma das coisas que mais admiro neles é o facto de terem
conseguido manter-se por muito, muito tempo. Têm tido uma grande longevidade,
uma carreira muito interessante, marcada por decisões muito próprias. São
muito fortes juntos, funcionam muito bem. Acho que eles vão continuar por
mais uns 10 anos, acho mesmo. Deve ser difÃcil agora que a Laetitia [Sadier
e, já agora, a Mary Hansen] já não está [estão] com eles. Mas penso que eles
são mesmo bons músicos e que não fazem música para se tornarem um Ãcone ou
uma celebridade. Houve recentemente uma consulta de opinião na Inglaterra
sobre o que queriam ser as crianças quando crescessem. E elas responderam
que queriam ser jogadores de futebol, guitarristas, que queriam se famosas.
Parece que toda a gente quer ser famosa, eu não quero ser famosa. Tenho de
fazer música ou enlouqueço. Por isso, sim, penso que os Stereolab vão manter-se
por muito tempo.
Vês a música como uma forma de escapismo?
Não, não a vejo como escapismo. Penso nela mais como
uma resposta para os problemas, algo que te ajuda a perceber o mundo em que
estás. Se fosses um arqueólogo musical, ias estudar e compreender as diferentes
motivações das pessoas para fazer música: há quem a faça pela fama, pela celebridade,
e há quem persiga uma utopia. Eu acredito em utopias. Podes dedicar-te a desenhar
mesas, eu procuro a utopia pelo desenho sonoro.
No site dos Large Number, há uma entrada com
bandeiras de muitos paÃses numa espécie de boas vindas internacionais…
Sim, eu penso que é importante. Especialmente porque
não vejo os Large Number como pertencendo a Londres, à Inglaterra. E depois,
não sabemos onde vamos gravar o nosso próximo disco, se vamos para o Egipto
ou se o gravamos em Portugal e fazemos… como se diz?
Fado.
Pois, “fádôâ€. É disso que trata a “progtrónicaâ€, de
cruzar diversos estilos e instrumentos. Gostamos de levar a nossa música a
todo o lado porque podemos fazê-lo. Large Number é um animal, não conseguimos
domá-lo. Não sabemos o que vai acontecer a seguir.
[Para facilitar o encontro no Largo do Camões, o entrevistador enviou um SMS
para o tipo da editora que acompanhava Ann Shenton, descrevendo uma peça de
roupa que trazia e o que se encontrava a fazer. Mais tarde, num registo de
puro humor britânico, Marc viria a confessar que, como ainda tinha algumas
dificuldades em lidar com o telemóvel, havia lido ao contrário. O interlocutor
deveria, portanto, estar a ler calças castanhas e a trajar um jornal.
Para além de bem-humorado, Marc revelou-se um exÃmio conhecedor da cultura
portuguesa. Num tom descontraÃdo mas atento, afirmou saber que Portugal era
uma jovem democracia, depois de anos de ditadura. Falou do Europeu, pedindo
desculpas pelo futebol inglês e que era bom quando os hooligans saÃam
do paÃs. Mas nem um nem outro atinavam com o nome da banda com que tinham
estado na véspera. Diziam uma e outra vez “The Definitive Architects†e outras
variantes. O entrevistador corrigia, eram os The Ultimate Architects.]
Hélder Gomes hefgomes@gmail.com
17/05/2004