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Dealema
Império dos Sentidos


O título desta entrevista é Império dos Sentidos, mas até poderia ser Império dos que se sentem (porque, lá diz o ditado, quem não o faz não é filho de boa gente), ou até Império dos Não-Sentados. Tudo porque o novo disco dos Dealema, o seguidor da bomba homónima, se chama V Império. Naturalmente a tendência primeira seria explicar o título pelo número de elementos, mas Maze e Fuse, os entrevistados, têm explicação superior; para esta e para outras questões. Tanto tempo depois do disco de estreia, os Dealema regressam activamente ao mundo do hip hop português para quem quiser receber a mensagem.
Cinco anos após o disco de estreia, o que é que os Dealema guardaram este tempo todo que tinha de ser dito agora?

Maze: Durante estes cinco anos acumulamos vivências, experiências pessoais que fizeram parte do nosso crescimento enquanto seres humanos e músicos, e uma quantidade de sentimentos diversos que nos impeliram a criar este V Império. O nosso processo criativo passa muito por esse acumular até chegar ao ponto em que transformamos toda essa matéria dentro do nosso metabolismo e vomitamos criatividade.

O que é, como é, o que representa o V Império?

Maze: O nosso V Império é o renascer espiritual que estava por vir, é um incentivo à criatividade, o aumentar da auto estima colectiva, é a nossa independência em relação à indústria, não é um Império físico mas uma energia invisível que cresce, é uma metáfora do pentágono que visa provocar a revolução interior em cada um de nós.

Como descreveriam o processo de escrita e gravação deste disco? Foi um parto mais custoso ou mais fácil do que o primeiro?

Fuse: Todo o processo que criação neste disco foi mais cuidadoso, nesse aspecto sentimos que amadurecemos musicalmente, tornamo-nos mais exigentes. A química na escrita continua com a mesma força, quando nos juntamos o universo conspira a nosso favor e tudo se desencadeia de forma tão natural como respirar.

Em termos puramente estéticos este disco é bastante diferente do primeiro a meu ver. Concordam? Se sim, estava nos vossos planos esta renovação ou foi algo instintivo?

Maze: Sim, podemos dizer que este disco é esteticamente diferente do primeiro álbum. Essa renovação pode ser chamada de evolução e amadurecimento, e foi completamente instintiva e fruto da nosso crescimento como músicos e indivíduos. Este disco conta também com mais produtores, o que traz um novo lote de ambientes e a mistura esteve a cargo do ex-peão, julgo que também foram factores importantes para essa nossa nova sonoridade que quanto a mim é Dealema com a mesma força de sempre mas com a actualização aos novos tempos.

Este disco volta a ter a participação da Marta Ren. E dos Mind da Gap. Muitos escolhem convidados diferentes para diferentes discos, vocês voltam a optar nas mesmas vozes e noutra voz do país vizinho. Foram escolhas naturais, estas?

Maze: Foram completamente naturais estas escolhas, nós gostamos de trabalhar com os nossos amigos e parceiros criativos de longa data. Apesar de neste álbum existirem novas parcerias como a Wöyza, o Simonal ou a Ana, com os quais também temos uma relação de amizade e proximidade.

Este trabalho marca de certa forma a autonomia dos Dealema em relação á indústria discográfica, ao apostarem numa edição conjunta com a Banzé. Esta opção foi um statement ou uma causa natural do estado das coisas em Portugal?

Fuse: Foi tão natural como o primeiro raio de sol que desperta no fim da tempestade. Se não estivéssemos tão determinados em romper a cerca que nos atrasa neste país, provavelmente já teríamos deixado de fazer música há muito tempo (como muitos que entretanto já desistiram). Esta autonomia é um despertar para a nossa produtividade, agora é que tudo vai começar...

Que tipo de influência retiram de cidades como Gaia e o Porto? Que retrato fazem das ruas do Porto, das realidades que não passam sempre para o público?

Maze: É indissociável da nossa criatividade o ambiente que nos rodeia, Porto e Gaia são inspirações constantes na nossa música. Estas cidades fazem parte de nós, cruzamos as suas ruas todos os dias. Porto e Gaia são cinzentos como o granito e são cidades muito bonitas, acho que Portugal em geral tem uma ideia errada do Norte e da sua gente, devido aos clichés televisivos. As pessoas são simpáticas, inteligentes, e trabalham bastante apesar de geralmente sentirem bem mais dificuldades para serem bem sucedidas em qualquer área profissional comparativamente a Lisboa onde estão todos os focos apontados. O Porto tem muito carisma, talvez por não ser uma cidade tão cosmopolita, ganha um certo encanto, é realmente uma cidade apaixonante.

Se pudessem resumir este disco, quais acham ser os temas ou as questões que abordam mais directamente?

Fuse: A liberdade, a vida, o sonho, a política, a fast food da industria discográfica...

Qual é o papel do José Sócrates e do António Guterres neste disco? Estas participações significam para vocês que a esquerda em Portugal anda torta?

Fuse: Participantes importantes neste Portugal surreal em que habitamos. Estas participações servem apenas para ilustrar aquilo que está à vista de qualquer um...mas que nem todos dão a devida importância. Portugal é mal governado.

Imagino que as camadas jovens sejam um público fiel dos Dealema. Numa altura em que se fala tanto do caso da aluna da escola Carolina Michaelis e de outros, como sentem a juventude dos dias de hoje?

Maze: A Juventude de hoje é obviamente diferente da nossa geração e também será da próxima, cada tempo traz consigo diferentes estímulos, e o desta juventude é principalmente a Internet, a televisão, e toda a tecnologia disponível actualmente, que são tão boas ferramentas de informação como de manipulação. A maioria vive na alienação e ignorância, mas existe uma boa percentagem de jovens com os olhos abertos, nós acreditamos que existe valor, talento e uma energia incrível, é por eles e para eles este V Império.

"Sala 101", o primeiro single extraído do álbum tem como vídeo uma curta-metragem inspirada no romance "1984" de George Orwell. O que há nesta obra que inspira tanto os Dealema?

Maze: A inspiração no romance “1984” para o videoclip de Sala 101 partiu do Miguel Januário (Uptown Films), que realizou o vídeo e desenhou toda a parte gráfica do álbum, a equipa conseguiu interpretar e traduzir visualmente a nossa música da melhor forma. O vídeo é uma metáfora ao nosso estilo, sentimo-nos mesmo identificados com ele e também com todo o design do álbum. A vigilância e o controle de massas estão presentes constantemente no quotidiano, essa vigilância é uma forma de violência, que nos alimenta com muitas outras formas através dos media, Internet, e outros veículos, e as transporta para as nossas vidas sem darmos sequer conta que estamos manipulados ao nível dos sentimentos e acções.

Com o disco de estreia cimentaram a vossa posição como um nome incontornável do hip hop português. Que resultados práticos pretendem atingir com este novo disco?

Fuse: Queremos chegar a mais ouvidos, bater em mais corações, inspirar novas gerações. Cada atenção captada é um triunfo.

Agora seguem-se os concertos. Muitos, imagino. Esta é a melhor parte do processo para vocês? Pegar num disco e transpô-lo para os concertos?

Maze: Nós esperamos bem que sim! O processo criativo, e o período de gravação e mistura são partes estimulantes, mas bem mais desgastantes do que os concertos. Nós somos um colectivo que vive da estrada, cada espectáculo é único e a fusão das nossas energias em palco é algo que nos dá muito prazer. Somos animais de palco por excelência, é a nossa segunda casa.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
19/05/2008