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Landfill
Apenas (mais) um dia normal


Mais um nome lançado pela netlabel portuguesa Test Tube, Landfill é o alter ego de Daniel Catarino, um músico com residência no Alentejo. Panorama de uma vida normal, um disco onde o pós-rock e o space-rock (e até o formato canção) convivem no mesmo espaço, é o lançamento que marca a estreia de um projecto em que tudo pode acontecer - Daniel Catarino não se quer limitar esteticamente e aproveita a boleia das netlabels para concretizar esse desejo. Há uma abertura saudável na forma como encara esta aventura, e o próximo passo podem ser mesmo as canções. "Mais Um Dia Igual", o último tema do disco, a apontar e a cair mais para o lado do formato canção, recebeu já atenção por parte de Henrique Amaro, no programa Portugália, da Antena 3. Em entrevista, Daniel Catarino clarifica alguns pontos da sua relação com a música que estavam, até agora, encobertos.
Antes de mais começava por te perguntar qual é a tua experiência musical pré-Panorama de uma vida normal... o que é que nos podes contar acerca disso?

Bem, comecei por tocar em bandas de covers de hard-rock foleiro para ganhar dinheiro para instrumentos.

Algo comum, portanto...

Pois, parece-me que sim. [risos] Dos 14 aos 20 anos foi mais ou menos isso, e em 1999 comecei a gravar então algumas coisas originais num 4-pistas emprestado. A partir daí, e após tentar formar umas 10 bandas para tocar alguns originais meus, comecei a ver que até dava para fazer coisas interessantes em casa. fiz umas quantas demos com samples e colagem de sons, mas acabei por descobrir que preferia quando era eu mesmo a tocar todos os instrumentos

Por aquilo que se pode ouvir no disco a escolha de instrumentos é variada... De que é que te rodeaste para este disco, em termos de instrumentos e outros elementos?

A minha ideia era construir uma espécie de banda sonora para um filme mudo, em que as personagens e os acontecimentos tinham como singularidade o facto de serem totalmente vulgares. Normalmente o conceito por detrás do cinema é sempre as características especiais deste ou daquele elemento. O que eu queria era construir algo em que não houvesse algo que nos cativasse por aí além - ou seja, a vida normal na sua perspectiva crua e dura, desinteressante e monótona

E é daí que surge o nome do disco, então, Panorama de uma vida normal…

Exacto. a minha ideia era essa mesmo, e daí as faixas serem bastante extensas - seria essa a extensão do filme. Neste caso, a personagem principal seria a música e não a imagem. E para a música, pretendia algo complexo, fragmentado, non-sense por vezes. O som irritante dos aspiradores por cima de uma bela melodia minimalista de teclados, a percussão feita por agrafadores e sussurros que não se compreendem eram tudo formas de tentar mostrar quanto somos vulgares em tanta coisa, por mais especiais que nos tentemos fazer sentir durante a vida.

Por falar em temas longos, o primeiro, "banda sonora para um dia normal" faz lembrar Pink Floyd na sua complexidade, nas vozes, nos teclados... É uma influência assumida? Assim de repente lembro-me de Atom Heart Mother…

A nível estético acho que se pode definir os Pink Floyd como uma influência directa, até pelo facto de ser um álbum conceptual. Em relação aos temas explorados, penso que está bastante distanciado, uma vez que Landfill trata das coisas que são comuns a muita gente, das coisas vulgares. As histórias dos Pink Floyd eram, normalmente, assentes em determinadas especificidades de uma ou outra personagem.

Falava mais em termos de construção dos temas, da tal complexidade de que falavas mais acima, e da utilização de alguns elementos. Obviamente em termos estéticos tudo é bastante diferente…

Falava de estética musical, da tal construção de temas que falas. aí penso que sim, facilmente se encontrarão semelhanças na forma de criação musical, no pegar de uma melodia e levá-la até onde ela se deixar levar. Também na fragmentação dos temas, possivelmente.

E como é que o disco chegou às mãos e ás páginas da test tube?

Depois de finalizada a gravação, a minha primeira observação foi "isto até está bom. o que vou fazer disto agora?" entretanto descobri que as netlabels estavam a começar a tornar-se interessantes. Não que não o fossem anteriormente, mas estavam a receber agora maior atenção. Sugeriram-me então a test tube, e depois de ouvir parte do seu catálogo mais recente, pareceu-me uma boa opção. Enviei a gravação, e recebi logo a resposta de que estavam interessados em lançar este disco.

Como vês neste momento todo este fenómeno das netlabels? Por exemplo em oposição ao lançamento em CD-R. Encontras mais vantagens nas netlabels por ser mais fácil espalhar a mensagem?

Obviamente que, tendo à disposição o download ao lado de uma crítica a um álbum, se torna muito mais acessível a divulgação. Não tens de te fiar na opinião de alguém que gostou ou não - podes ouvir por ti próprio. Quanto ao CD-R, a divulgação é muito mais difícil e demorada, e envolve algum investimento inicial. o principal problema das netlabels está, como quase tudo na vida, ligado ao dinheiro. Ninguém ganha um tusto pelo trabalho que desenvolveu, é como uma amostra grátis de um produto, e como qualquer produto, o seu objectivo será depois chegar a um qualquer tipo de mercado. Aí tudo depende das intenções dos autores.

Voltando ainda à estética do disco parece-me haver alguma apetência pelo pós-rock ou pelo rock ambiental. São áreas do teu interesse?

Cada vez mais, todas as áreas da música são do meu interesse. Aos poucos vou descobrindo que, em todo o tipo de música consigo encontrar elementos que me atraem - uns mais que outros. O pós-rock foi uma das descobertas que mais me marcou nos últimos anos, mas parece-me que desenvolveu pouco desde o seu início (falando em termos gerais, claro). Quanto ao elemento ambiental, penso que maioria das faixas longas editadas, seja em que estilo de música for, têm um forte ambientalismo. Ou seja, tanto uns Spiritualized, como uns Tool ou um Miles Davis têm toda uma envolvência que nos levam a sentirmo-nos "ambientados" à experiência que vamos viver ao ouvirmos a sua música. Acho que é essa ambiência que separa o seu som do formato canção.

O último tema surge algo surpreendentemente no desenvolvimento do disco. É mais canção que os outros temas…

Sim, porque eu sempre escrevi canções desde que comecei a aprender a tocar instrumentos. Sempre foi a minha intenção, só que, com o passar do tempo, comecei a interessar-me noutro tipo de experiências sonoras - mas sempre sem deixar a "canção" de lado. Normalmente até escrevo em inglês, mas não tenho quaisquer regras de como fazer nada musicalmente. É um processo completamente anárquico, e ainda bem, não quero ter de me limitar a nada - e aí as netlabels são muito importantes, porque editam coisas que pouca gente arriscaria editar.

A tua voz já suscitou algumas comparações ao Manuel cruz dos ornatos violeta… Concordas com essa visão?

Não me parece muito, embora o considere um elogio. Penso que está muito relacionado com o facto de ser cantado em português, como qualquer gajo que apareça a cantar letras à Bob Dylan em português é comparado ao Jorge Palma. Penso que é mais um desses casos. No entanto, encontro semelhanças na forma de como a melodia de voz progride ao longo da música.

Mudando de novo de assunto, tanto quanto eu sei resides no Alentejo. Que implicações tem esse facto na tua música, na tua relação com a música. Elas existem?

Muitas. Muitas mesmo.

Esta pergunta é algo estranha, confesso…

Pois, mas eu percebo o que queres dizer. O Alentejo é um poço de inspiração para qualquer pessoa, porque é um lugar de enormes contrastes. É como um deserto com oásis de 50 em 50km. As pessoas ou são muito pobres ou muito ricas, já quase não existe classe média. As pessoas têm uma forte tendência para se tornarem depressivas em muitos momentos, e extremamente alegres noutros. Chegou-se a um ponto em que as pessoas se aperceberam que trabalharam toda a vida e pouco lhes resta senão sentar-se nos bancos do centro da aldeia a falar do que fizeram há vinte anos atrás - isto porque 70% da população tem mais de 60 anos. Tudo isto me levou ao conceito por detrás da "vida normal" que fala o álbum.

Vejo nas tuas palavras uma certa paixão pelo Alentejo…

Paixão e desalento - como em todas as paixões, possivelmente. Gosto do espírito de aldeia, em que todos se falam, em que um é médico, o outro cava batatas, o outro é músico, o outro é primeiro-ministro, mas isso pouco interessa no que diz respeito às relações interpessoais. Por outro lado, desprezo o conformismo que se abateu sobre esta gente. As pessoas são pobres e mentalizaram-se que não vão deixar de o ser, por muito que venham a trabalhar. Quanto à cultura, não ligam, porque isso não lhes trás a comida à mesa. Queixam-se de que nunca se passa nada no Alentejo, mas quando acontece algo, não está lá ninguém para ver. Enfim...

Imagino que seja impossível tocar ao vivo aí perto, a não ser, talvez, na SHE em Évora...

Sim, que é um sítio que frequento bastante. Até existem bastantes condições para tocar ao vivo - nos últimos anos, a quantidade de reconstruções de locais de índole cultural no Alentejo foi enorme. Não há é uma aposta no diferente do habitual - lá está o tal conformismo de que falava - e então fica tudo resumido a bailes e Café-concertos com mais uma das 829 bandas de standard jazz que por aí há.

Já agora, pensas apresentar este projecto ao vivo? Há já alguma coisa marcada nesse sentido?

Não vejo como, perante a complexidade sonora. O que poderia fazer seriam concertos do género cantautor, algo que até nem está presente neste disco. Mas como possivelmente o meu próximo trabalho até irá ser composto de canções, talvez aposte mais a sério no formato ao vivo.

Já estás a trabalhar nesse sentido, num próximo trabalho? Existe já alguma coisa preparada?

Já tenho cerca de 10 canções, todas elas em português, que penso começar a gravar entretanto. Será tudo gravado em casa, e num formato minimalista, em principio - um pouco para contrastar com esta obra que agora lancei.

Perspectivas de edição...?

Por enquanto nenhumas. Só depois de gravar e constatar o resultado final é que pensarei melhor nisso. Nada me diz que entretanto não me lembre de fazer uma coisa totalmente diferente, e que não volte a pegar nessas canções durante algum tempo.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
29/11/2006