ENTREVISTAS
Mafalda Arnauth
Fado Camaleão
· 14 Fev 2006 · 08:00 ·
Mafalda Arnauth é sem sombra de dúvidas uma das maiores vozes do novo fado, e 2005 viu nascer o seu quarto disco de originais. Diário (o quinto elemento da sua discografia - que viu já ser editado um Best Of, Talvez Se Chame Saudade – O Melhor de Mafalda Arnauth), gravado nos estúdios d'O Circo a Vapor, é um disco assumidamente confessional, um disco de audácia assumida, por ser o reflexo da vida e das raízes da fadista. Mas Diário é também um disco onde Mafalda Arnauth resolve finalmente cantar Amália Rodrigues (em "Foi Deus"). Mas não é só Amália Rodrigues revisitada em Diário; também Charles Aznavour (em "La Bohème") e "O que tinha de ser" de António Carlos Jobim e Vinicius de Moraes (canção popularizada por Maria Bethânia) surgem neste novo disco. Diário levou já Mafalda Arnauth a, depois de uma digressão nacional, rumar à Bélgica, Holanda e Luxemburgo para promover a edição no mercado europeu. E foi precisamente na Holanda que Mafalda Arnauth respondeu às perguntas do Bodyspace, com a sinceridade e o tom confessional que o fado pede.

Porquê Diário? Este novo disco é extra-confessional em relação aos discos anteriores?

Diário, porque quando me dei conta da recolha de temas que tinha feito até dado momento, estes não eram mais do que retratos de vários momentos da minha vida, exemplos das influências que fui sofrendo desde sempre, quer musicais, quer pessoais. Daí este disco ser realmente um pouco mais confessional ou íntimo do que os outros, porque é, acima de tudo, mais real, nasce de experiências pessoais concretas, vividas em momentos diversos e que tiveram um papel preponderante na minha evolução, a todos os níveis.

Quais foram então os riscos que correu com este Diário?

Foram “pequenos”, comparados com o resultado… Mas partir para uma viagem destas sem uma editora é definitivamente um risco gigante. Assumir a produção sozinha é outro risco enorme, porque em certos momentos torna-se importante ter uma referência isenta que ajude a aclarar as situações e a ajudar a dar o nosso melhor. A escolha do repertório é definitivamente, para mim, o maior risco de todos, pela variedade de referências, de sons, de idiomas e pelo carácter tão pessoal de cada um, podendo nem sempre ser fácil haver uma empatia imediata por parte do público.

Como foram os dias de concepção e gravação deste novo disco? Sentiu-o de forma especialmente diferente?


Foram mágicos! Desde o dia em que decidi fazer este disco, todos os passos foram especiais: desde a escolha das pessoas que comigo nele participaram até descobrir meios para efectivamente o fazer; uma vez que neste álbum, além da minha produção musical, assumi também todos os encargos inerentes na elaboração de um disco, o que o torna derradeiramente marcante. Houve uma atmosfera geral de entusiasmo, de dedicação, de descoberta, que só temas desta carga emocional e pessoal podem despertar. Levou-me a um crescimento e descoberta pessoal muito profundos e criou laços de um valor inestimável, de tão ricos.

Como foi voltar a escrever canções depois do lançamento de Talvez Se Chame Saudade – O Melhor de Mafalda Arnauth, o Best Of lançado recentemente? Que efeito teve em si o lançamento deste Best Of? Permitiu-lhe ter uma outra perspectiva da sua carreira? Foi como um ciclo que se fechou?


Permitiu naturalmente virar uma página no meu percurso, particularmente da minha ligação com a EMI; saborear todo o percurso até esse momento e revisitar as músicas que fui fazendo ao longo dos anos - e toda a história a elas ligada. Sinto que o Diário nasceu desse arrumar de casa, de forma limpa e espontaneamente novo, com nova musicalidade, escolhas bem diferentes e muita inspiração, nova, refrescada e fluida.

Neste novo disco as canções originais convivem com algumas versões. Uma delas é “Foi Deus”, da Amália. Como surgiu a decisão de cantar Amália neste disco? Qual é o peso de cantar Amália para si?

Finalmente, senti ter descoberto a “casa” que este “Foi Deus” merecia e o lugar ideal para fazer a homenagem, que sempre senti faltar da minha parte, à importância que Amália Rodrigues teve no meu percurso. Depois de revelar a minha “personalidade” com tantos originais e versões distantes dela, ao revelar o meu Diário, este tema era incontornável. “Foi Deus” é seguramente a razão de eu ser fadista. Despertou a atenção de quem me ouvia e inspirou-me de uma forma incontornável.

Nos agradecimentos do disco diz ainda que Fernando Magalhães foi um dos grandes responsáveis pelo registo do “Foi Deus”. O que nos pode contar acerca disso?

O Fernando Magalhães perguntava-me insistentemente porque não gravava “Foi Deus”! Era das tais pessoas que simplesmente adorava ouvir-me cantá-lo. Foi o primeiro a fazer uma crítica sobre a minha estreia no Teatro S. Luiz, em 1995, e a forma como descreveu essa noite ainda hoje me comove. Foi com uma secreta satisfação que decidi gravá-lo e dediquei-lho porque, lamentavelmente, não fui a tempo de lho mostrar…

Em relação às outras versões do disco, o que nos pode contar acerca delas? Deixou algumas ideias de versões fora deste disco?

Ficam sempre ideias de fora porque, felizmente, é um lado meu muito fértil! Fiquei particularmente feliz com a versão do Tom Jobim e Vinicius de “O que tinha de ser”, que desde sempre ouvi e que atravessou, comigo, toda a minha adolescência - e ainda hoje é dos temas mais importantes da minha vida.

Neste novo disco canta em francês e em espanhol. Como se sente o fado numa língua que não a sua?

Pela alma universal que atravessa certas músicas que parecem ter uma emoção comum, traduzir sentimentos que acorrem a todas as pessoas em qualquer lugar do mundo. “La Bohème” e a “Milonga do Chiado” são temas recheados de vida, de histórias de amor, de descrições com muitas semelhanças com tantos fados. “La Bohème”, em particular, influenciou derradeiramente a minha vida, como se houvesse um reconhecimento, da minha parte, em tudo o que se descreve no tema. A "Milonga" torna-se parte do Diário quando me é apresentada pelo Ramon Maschio, um músico Argentino que trabalha comigo, e que além da sua música, trouxe a sua vida também, que de muitas formas tem ajudado a encher páginas de todos nós de amizade e cumplicidade.

Mudando um pouco o assunto, que mudanças práticas trouxe a mudança de editora para este novo disco?

Descobri uma comunicação muito mais clara do que em outras experiências: ao apresentar todo o disco já elaborado, tornou-se muito mais fácil dar-me a conhecer e apresentar na prática as minhas ideias, os meus gostos e - no fundo - as minhas potencialidades. Senti uma mudança clara no reconhecimento da maturidade que precisei de alcançar para realizar este disco e isso tem sido vital para que todos os passos seguintes sejam mais ágeis, mais eficazes, mais objectivos, porque sobretudo a nossa comunicação se baseia mais em confiança e abertura.

Como sente os concertos ao vivo? Quanto de si deixa todos os dias no palco?

Os concertos ao vivo são talvez uma das formas mais avassaladoras de viver a música. Todos os sentimentos se cruzam, de medo, euforia, adrenalina, gratidão, plenitude, e gerir o equilíbrio entre eles é fascinante. O retorno do público e reacção das pessoas aos sentimentos que nos atravessam também são uma experiência única, pois exigem uma responsabilidade enorme da nossa parte, ao percebermos de que forma podemos tocar ou influenciar alguém. É muito o que eu deixo em palco, de cada vez que tenho um concerto. A cada dia pode ser diferente, mas a entrega é sempre enorme. Nunca me esqueço que aquele momento é especial e não posso dizer que faça uns concertos mais ligeiros que outros. De alguma forma, a intensidade das coisas que canto imprime uma carga emocional tão grande que se torna impossível não dar tudo o que puder a quem me ouve.

Gravar e editar um disco ao vivo, à semelhança daquilo que a Cristina Branco, por exemplo, já fez, é um projecto para um futuro próximo?

Confesso que ainda não é uma prioridade, apesar de adorar guardar registos dos concertos que vou fazendo e achar que pode realmente ser motivo de interesse para o público. No entanto, não significa que, quando menos se esperar, tal não possa acontecer. Vai depender principalmente de eu sentir que o equilíbrio entre a emoção (a realidade de um concerto ao vivo, com todas as suas fragilidades) e a qualidade mínima que acho que um disco destes deve ter, foi alcançado.

Parece ser uma fadista que não tem receio de por o fado de braço dado com a sensualidade. Como se gere essa relação?

Como toda a natureza fadista e musical que descubro em mim: se é a minha forma de ser e a minha vida que eu canto, nas minhas letras e musicas, não pode ficar nenhuma nuance de fora, senão, algo estaria incompleto. Se, no fundo, existe em mim a alegria, a nostalgia, o medo, a coragem e também a sensualidade (como parece referir!), tem de haver um lugar para todos estes sentimentos nos meus fados. Acho mesmo que cada fado vai revelando de mim própria coisas que eu própria desconhecia, o que me deixa muito feliz com o que possivelmente ainda tenho por descobrir…

Que balanço faz dos últimos anos daquilo que já apelidaram de alternative fado? Acredita existirem condições para um futuro risonho do fado?


Um balanço positivo! Surgiram novas formas de expressão, diversificaram-se os caminhos possíveis para o fado, levou-se o público a descobrir e a ter curiosidade com a expressão do seu país. E mais importante, para mim, conseguiu-se que por entre tantas coisas se procurasse fazer mais e melhor; e que houvesse pelo menos um esforço de mais qualidade que vai desde a sonoridade dos discos, à riqueza dos originais e à expressão e identidade de cada artista. O futuro será sempre de expectativa, de trabalho árduo e obriga, na minha opinião, a que cada fadista tenha em definitivo uma identidade própria, capaz de evoluir, capaz de se renovar e fazer face ao desgaste inerente a uma saturação mais rápida do público, nos dias que correm… acredito que existe definitivamente futuro no fado que hoje vivemos. Com uns dias mais risonhos que outros…

Como vê as cantoras de fado da sua geração? Costuma ouvir os discos delas?

Vejo bastante menos do que gostaria, o que por um lado também é sinónimo, felizmente, das agendas preenchidas que temos. Não só costumo ouvir os discos como gosto particularmente de assistir a concertos e de ver a expressão da nossa multiplicidade que em tanto enriquece o panorama musical. Parece-me que finalmente superamos sombras do passado e conseguimos definir um universo novo, de talento e muita qualidade.

Acredita que o estrangeiro está sensibilizado para esta nova vaga de fadistas portugueses? Sente isso quando canta noutros países?


O mais possível, sendo disso exemplo a tour que faço neste momento, na Holanda, de dezassete concertos, a par com outros artistas que também aqui se encontram com agendas preenchidas. Felizmente, o público estrangeiro é muito e se nalgum momento esta vaga de ouro abrandar de alguma forma, acredito que ainda assim temos muito público para conhecer e que insiste em querer descobrir a música que fazemos.

Tal como a Cristina Branco, admite que aquilo que está a fazer é fado-não-fado. Passará então precisamente por um certo escapar ao fado este novo fado a que se assiste?

É definitivamente o meu fado, ou seja, a forma como integrei o fado tradicional, clássico (que me foi transmitido das mais diversas formas), na minha maneira de ser, de estar, nas musicalidades que desde sempre ouvi e que sempre foram diversas. Gosto de descobrir as nuances do meu percurso na minha forma de me expressar; e gosto ainda mais de sentir que a raiz fadista que reconheço ter insiste em sobrepor-se às “aventuras” ou viagens que gosto de fazer. Nada é mais emocionante que cantar um tradicional, que tem vida própria, que se impõe acima das experiências que se fazem e que nos faz saber exactamente de onde vem tudo. É a alma que é fadista, muito mais do que a expressão que escolhemos em dado momento - e é dessa que é quase impossível fugir.

Como lida com o legado deixado por fadistas de outros tempos? Quanto é em si tradição?

Com um respeito e admiração profundos. Porque o legado musical é tão forte quanto o das histórias das pessoas que o cantaram e viveram - e é essa comunhão entre o Fado Música e o Fado Vida que traz a carga e a força que a tantos cativa. Eu sou, apesar das minhas escolhas, apaixonada pela tradição (e principalmente pela forma como certas pessoas de quem gosto e que muito aprecio a vivem). Ver a Argentina Santos pegar e colocar o seu xaile quase como um ritual é profundamente comovente; apreciar um músico a recordar alguma malha antiga com um respeito cerimonial imprime uma solenidade que não pode ignorar-se. E é essa tradição que me é passada em pequenos gestos que eu aprendi a respeitar, sem no entanto deixar de descobrir os meus rituais ou simplesmente de que forma é que me consigo exprimir melhor.

Em que sinais confia para saber um dia que fado é afinal o seu? O que acha que mudará no dia em que souber?

Confio definitivamente no instinto do momento, que felizmente me acompanha, pelo menos enquanto eu sentir vontade de cantar aquela música ou de fazer um programa para um concerto de determinada forma. Sou daquelas pessoas que por entre dúvidas ou incertezas, no momento de cantar, só consigo fazê-lo se for com a verdade que me inunda naquele momento. Assim, mais do que saber que fado é o meu, eu quero é conseguir sempre sentir-me fado… com toda a mudança e evolução que eu tiver de viver.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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