ENTREVISTAS
Luiz Gabriel Lopes
Coração utópico
· 21 Set 2017 · 15:13 ·
O brasileiro Luiz Gabriel Lopes é um dos membros dos Graveola (que, aparentemente, terão perdido o Lixo Polifônico) mas a sua carreira a solo tem vindo a ganhar um espaço muito próprio. MANA, o seu terceiro rebento solitário, é uma prova da sua capacidade na hora de escrever canções com "c" grande e uma dose acertada de fantasia e esperança.

Em entrevista ao Bodyspace, o brasileiro falou do seu novo disco, MANA, de reggae, de Minas Gerais, do estaço da nação (a dele), das músicas do Brasil e de Portugal e de projectos futuros para os seus Graveola. E mostrou ter - e ser - um verdadeiro coração utópico.
© Chico do Céu
Fala-me do MANA. De como foi chegar a este disco, da mensagem…

Estive reunindo canções nos últimos anos e felizmente não posso dizer que me faltou repertório: a verdade é que o meu maior esforço era entender uma costura possível entre as músicas, a potência dos diálogos e ressonâncias que se revelavam nesse material. Mais que um álbum conceitual, entendo o MANA como um campo vibracional, construído por sobre matizes de um universo energético comum. Não há um tema central que atravesse o disco, mas uma espécie de tônica afetiva, um modus operandi do olhar: é um trabalho assumidamente otimista, de coração utópico. Perceber as relações humanas e seu entorno na dimensão sagrada e mística que as constitui em essência, esse foi o desafio a que me lancei nessa empreitada.

Este é um disco assumidamente de banda. Porquê essa opção neste momento?

Tinha vontade de fazer um álbum mais enxuto, com uma linguagem musical mais clara e direta, em contraposição ao álbum anterior, “O Fazedor de Rios”. Sinto que para este repertório, seria interessante abrir espaço, cavar uma clareira em meio aos arranjos para dar destaque às letras, às melodias, simplificar mesmo. Daí a proposta de buscar uma estrutura sonora mais estável, que não variasse tanto, para vestir as canções. O que fez com que a pesquisa acontecesse mais no âmbito dos detalhes, permitindo que cada canção apresentasse seu próprio universo singular de sons possíveis, a partir dessa mesma paleta.

Como vais traduzir isso nos concertos?

A banda que me acompanha ao vivo é a mesma que gravou o disco: somos 4 elementos, como terra, fogo, água e ar. A rítmica, precisa e sólida, fica a cargo de Mateus Bahiense, que foi quem principalmente me mostrou os ganhos estéticos de uma estrutura de levadas mais simples e contínuas, menos baseadas na quebra. O groove está presente, e nesse mesmo encalço, o baixo de Téo Nicácio, cuja elegância minimalista me agrada imenso. É o elemento que dá o balanço malabarístico dos caminhos harmônicos. Téo também faz vocais e é meu parceiro em algumas importantes canções do disco. Por fim, Daniel Pantoja é o pássaro melódico que flana por sobre as músicas, com sua flauta mágica. Dele vem grande parte da energia onírica e psicadélica dessa sonoridade, sinto.

© Chico do Céu

Li que algumas destas canções já andam contigo nos concertos há muito tempo. Como é é transportando assim canções no regaço, mudando-as, vendo-as crescer e de repente chegar a estúdio e ter de as registar no tempo?

De facto algumas canções vêm de alguns anos, e já estavam no youtube, daí eram conhecidas de parte do público dos concertos, que sempre as pediam. Mas faltava-lhes uma versão definitiva em estúdio, e foi o que fiz. “Apologia”, por exemplo, que é um dos temas favoritos de muitos, tem um vídeo em versão voz e violão, gravado no meio do mato, num recanto de Minas Gerais chamado Milho Verde. Mas no disco ganhou outros ares, desenvolveu corpo e groove, inclusive com a especialíssima participação do Maurício Pereira.

O Lenis Rino foi o produtor deste disco. Como foi trabalhar com ele?

O Lenis é um cara que eu conhecia de Belo Horizonte, tínhamos algumas conexões em comum no meio musical. Daí, conhecendo alguns trampos dele como produtor, deu-me vontade de convidá-lo para fazer comigo o disco. Gravamos as bases ao vivo, em três dias, em São Paulo, depois fomos trabalhando em sessões mais espaçadas: escolhendo os takes, fazendo alguns poucos overdubs, gravando as vozes, etc. No estúdio, ele é um artesão de finas habilidades com a plasticidade do som, manja tudo de delays e reverbs e tem com essas coisas um bom gosto incrível. Além disso, menção seja dada, teve também uma paciência de Jó, comprou todas as minhas loucuras, rsrsrsr... é também sem dúvida graças à generosidade dele que conseguimos fazer um belo trabalho.

Há algo que é impossível não ouvir neste MANA, que é o som do reggae. É uma música importante no teu crescimento musical ou apenas algo que achas que terias de explorar aqui?

Devo confessar que não fui um grande ouvinte de reggae na vida. Tardiamente, estou agora descobrindo a riqueza da obra de Bob Marley, e não avancei muito além daí, até porque sinto que é algo tão imenso que exige atenção de escuta. Em relação ao disco, é verdade que o reggae foi uma atitude musical explorada em alguns momentos, e chegamos a ela de maneira orgânica, sem pensar muito. O reggae é muito próximo do xote, que é um ritmo típico do nordeste brasileiro, e conversa igualmente com o ska, que também passeia pelo álbum. Ou seja, é a boa e velha mistureba brasileira que nos guia, parece que está incrustado em nossos genes essa inclinação ao que é híbrido.

Achas que há muito de Minas Gerais neste disco no som?

Sim, mas nem tanto: talvez sinta que é mais o olhar de alguém que ali cresceu, mas já a partir de um outro lugar, buscando uma decantação e uma outra clareza. Essa vontade de simplificação, por exemplo, de certa forma vai de encontro ao que é comum ser entendido como característica da música mineira: um certo rebuscamento, de harmonias e arranjos intrincados. Busquei limpar o campo de visão e construir o quadro de cada uma das canções de forma mais arejada, preservando espaços e respirações. Além disso, há uma equação sutil que subjaz à sonoridade enquanto material plástico, que é essa soma de opostos, a floresta e a cidade, o onírico e o concreto, o elétrico e o acústico. Talvez seja justamente o conflito entre essa imagem de um lugar natal, que seria Minas, e a janela aberta do mundo no horizonte.

© Chico do Céu

O que é tem de tão especial afinal o som de Minas na tua opinião?

Pra além dos tantos clássicos com raízes em Minas, o incontornável Clube da Esquina e suas muitas adjacências, gosto muito do cenário atual de compositores. Há uma larga produção em muitas vertentes, gerações que se entrecruzam, coletivos se organizando, uma cena rica e pulsante. Existe também um movimento muito forte de articulação entre as mulheres artistas: recentemente nasceu em BH o SONORA, um festival organizado por mulheres para privilegiar a produção feminina no campo da canção, e coisas muito interessantes se revelam a partir daí. O cenário do rap em BH também anda hoje pela crista da onda, e tem me interessado bastante. A velocidade com que absorve os traços do mundo e os transforma em imagens de uma força poética imensa, é algo muito instigante.

Entusiasma-te a música brasileira neste momento? Existe alguma realidade musical que se seja especialmente próxima, com a qual sintas especial afinidade?

Sou um ávido ouvinte da música que se faz hoje no Brasil. Entre as várias gerações de meus contemporâneos, de norte a sul do país há cenários interessantíssimos, muito distintos entre si. Vou esquecer muita gente, mas aí vai: em João Pessoa há o pessoal dos Limeira: Chico Limeira, Regina Limeira, Guga Limeira, há também o Arthur Vieira, o Seu Pereira e o Milton Dornellas. Em Brasília, há o Alberto Salgado. Em Porto Alegre, o pessoal dos Ramil: Thiago Ramil, Ian Ramil, Vitor Ramil. De Belém do Pará, Felipe Cordeiro, Arthur Nogueira, Aíla, Nilson Chaves. De Macapá, Patrícia Bastos. Em Salvador há o Tiganá Santana, o Ian Lasserre. Em São Paulo, gente de toda parte se encontra: Tim Bernardes, Lucas Santanna, Romulo Froes, Cesar Lacerda, Juliana Perdigão, Ava Rocha, Tulipa Ruiz, Luiza Brina, Negro Leo, Luiza Lian, Iara Rennó, Helio Flanders, Zé Manoel, Flavio Tris. No Rio, Mãeana, Letícia Novaes, Domenico Lancelloti, Thiago Amud, Pedro Carneiro. Em Belo Horizonte, Laura Catarina, Marcelo Veronez, Matéria Prima, Sara Não Tem Nome, Leopoldina, Déa Trancoso, Gustavito, Irene Bertachini e vários outros nomes que vocês já conhecem. São muitos Brasis!

Imagina que estás a falar para alguém que não sabe muito bem o que se está a passar no Brasil neste momento em termos politicos e sociais. Como é que resumirias o Estado da Nação?

Uma imensa treta, um teatro de vampiros, da qual parece que apenas uma invasão alienígena poderá nos salvar.

Portugal tratou-te sempre bem? Sentes que a mensagem da tua música tem sido bem recebida em Portugal?

Portugal é um lugar fundamental para minha formação artística. Desde a primeira vez que pisei em terras lusas, algum magnetismo me abriu as portas de uma sensibilidade ancestral das mais intensas que já experienciei, e é justamente de 2010 o meu primeiro lançamento a solo, o álbum “Passando Portas”, pelo qual tenho grande carinho. Tinha resolvido ficar a viver em Lisboa por mais uns meses, após o fim de uma turnê do Graveola, e num fluxo de intensidades e encontros de grande força, escrevi e gravei as canções que formaram o disco no turbilhão daquele verão. A literatura portuguesa também é um lugar pelo qual tenho especial admiração, e daí as interlocuções no campo da palavra sempre me foram muito nutritivas e formadoras. Fui, e ainda sou, um interessado leitor de Herberto Helder, Maria Gabriela Llansol, José Saramago, Al Berto e tantos outros... De maneira que sim, sinto que minha música é recebida de um jeito muito especial em terras portuguesas, talvez pela presença que Portugal exerce silenciosamente em tudo o que faço. Isso é algo que me enche de orgulho e alegria. Ainda ontem recebi uma mensagem de alguns amigos de Lisboa a dizer que o tema “1986” estava a tocar na Antena3, fiquei muito feliz.

Que artistas portugueses admiras particularmente?

JP Simões, B Fachada e Antonio Zambujo são pra mim uma espécie de trinca sagrada da contemporaneidade tuga no campo da canção popular. Tão distintos quanto complementares entre si, representam um mosaico de sentimentos e visões de mundo tão tipicamente portugueses que me fazem acessar lugares muito especiais da minha memória afetiva, recordando os muitos momentos vividos com a família que nos acolhe deste lado do oceano. Além disso, Lisboa é um portal por onde pude conhecer também toda uma constelação de artistas do mundo lusófono, pelos quais também nutro grande admiração. Pra dizer de só dos atuais, há Aline Frazão, Dino D’Santiago, Sara Tavares, Mayra Andrade... há muitos nomes. Os Terrakota também são uma bandassa, gosto muito do que fazem, ao vivo são brutais. A malta dos Criatura e seus incríveis sons, a Susana Travassos que agora vem com um novo disco lindo... É assunto longo, este daqui, pois...

Aproveitando a boleia, quais são os próximos passos dos Graveola?

Seguimos divulgando o “Camaleão Borboleta” e fazendo concertos pelo Brasil. E estamos cheios de vontade de voltar logo a Portugal, quem sabe pra uma temporada mais longa, a qualquer hora.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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