ENTREVISTAS
CAVEIRA
Cena Espírita
· 27 Jan 2006 · 08:00 ·
© JP
O rock tem cinquenta anos, está velho. Aquela irreverência urgente inicial transformou-se, ao longo de meio século, numa gorda máquina industrial de fazer dinheiro. Hoje são poucos os que fazem música (rock) com alguma coisa por dizer. O rock está velho, há quem diga mesmo que morreu. E há quem provoque choques eléctricos, fazendo rock-anti-rock, utilizando duas guitarras eléctricas em brasa e uma bateria frenética. CAVEIRA é o grupo de quem se fala. É um trio de free rock que nasceu num quarto de Sacavém, ensaiou no Lótus bar, apresentou-se na Zé dos Bois, assustou o público de Devendra Banhart e conquistou a plateia de Damo Suzuki. Sonny Sharrock, Royal Trux, Keiji Haino e o boogie de Tetuzi Akyiama, tudo condensado com descargas de energia, resulta numa poção irrepreensível para explodir décibeis. Entre o concerto em que partilharam o palco com o ex-vocalista dos Can e a apresentação no festival “Um Dia A Caixa Vem Abaixo”, Pedro Gomes, Rita Vozone e Joaquim Albergaria encontram-se no espaço romântico (e careiro) d’A Brasileira do Chiado para uma conversa com o Bodyspace: relembram o lado negro dos 80s para adoptar hard free como autocolante. E ainda uma revelação exclusiva, o título do novo disco. É da cena.

Antes de mais, como analisam o recente concerto com Damo Suzuki na Zé dos Bois?

Joaquim Albergaria - Foi o melhor concerto de sempre de CAVEIRA.

Pedro Gomes - Sendo que não foi só um concerto de CAVEIRA, foi um concerto com o Damo. E de certeza que também foi atingido por coisas que são normalmente exteriores a nós…

JA - Tal como os outros todos, não é?

PG - Tal como os outros, mas este teve uma parte mais activa. Pessoalmente acho que foi importante porque acho que foi a primeira vez que me apercebi que, não por norma obrigatoriamente, podemos incluir outras pessoas no que fazemos, aqui e ali, de vez em quando.

Estão neste momento a pensar tocar com mais alguém?

PG - Não, não, ainda é muito a quente. E CAVEIRA somos nós os três, se fosse mais uma pessoa era outra coisa, se fosse menos uma pessoa era outra coisa diferente. A questão é: se fizer sentido a alguém tocar connosco, seja em que situação for, pode resultar – e eu acho isso muito bom. Até porque, se um gajo for ver bem, a história da improvisação é feita deste tipo de trocas, de umas pessoas a tocarem com as outras. Especialmente uma banda – e foge dessa escola da improvisação um bocado por aí, não são individualidades, não é Gomes/Albergaria/Vozone, é CAVEIRA – ainda assim fiquei muito contente com isto. E acho que foi bué importante porque ainda não tínhamos tido bem a noção, apesar de algum público ter ido lá pelo Damo, da quantidade de gente que estava interessada no que nós fazíamos realmente e de algum entusiasmo um bocado histérico (óptimo), mas não tínhamos ainda bem noção disso. Foi bué gratificante tocar para tanta gente que estava ali com tanta boa onda. Acho que principalmente foi marcante por isso, foi uma honra do caraças tocar com o gajo, o gajo é incrível, pessoalmente é dos meus improvisadores de voz favoritos de sempre.

Rita Vozone - E ao contrário do que aconteceu no Devendra, onde houve as reacções pela negativa, desta vez foi bom. E foi o segundo concerto que desperta reacções assim intensas, durante a segunda parte ouvíamos os assobios do público enquanto estávamos a tocar…

PG - E estávamos a tocar alto!...

RV - Foi muito bom.

O Pedro falou na possibilidade…

PG - Não, na eventualidade…

…Ok, na eventualidade de tocarem com outras pessoas. Estavam a pensar em colaborar com vocalistas ou outros instrumentistas?

PG - Com quem quer que fosse, se por acaso fizesse sentido. E com isto não estamos a tentar estar aqui a fazer um anúncio de jornal, não é “CAVEIRA procura…”

RV - “CAVEIRA procura amigos”.

PG - Não estamos à procura de palas institucionais ou subsídios ranhosos… Não quero ir ao Chateau-não-sei-da-onde tocar com o não-sei-quantos que toca tuba de pernas para o ar e passar um mês a comer queijo de dezassete contos.

RV - Se bem que gostamos de queijo…

PG - Eu não curto queijo, por acaso.

RV - Mas, como dizia há bocado para o Pedro sobre o Hércules [NR: referência na crítica do jornal Blitz a Joaquim Albergaria], desta vez foi como uma “tarefa”. Dantes era chegar e tocar, mas ali havia uma premissa.

JA - Para todos os efeitos nós fomos tocar para o Damo.

RV - E com o Damo.

PG - Nós ainda tentámos inicialmente modelar um bocado o nosso build físico para aquilo, para tentar aguentar a pedalada dele.

Então ensaiaram bastante…


RV - Ensaiámos horas!...

PG - Até que percebemos que não fazia assim tanto sentido, que foi por isso mesmo que nos tinham convidado, por fazermos aquilo que nós fazemos. Ainda assim, por tabela, permitiu-nos dar uns passos em mais uma direcção. Enquanto estivemos a ensaiar aprendemos a alongar um bocadinho melhor, a manter coisas e a conseguir expressar mais coisas, mais do que estarmos simplesmente a tocar mais tempo. Acho que isso foi bué produtivo. E o Damo também foi completamente engolido, foi bué importante para isto.

Citam frequentemente referências históricas do free jazz, como Frank Lowe ou Sonny Sharrock, mas estas marcas não são muito evidentes na música que fazem. Como explicam isso?

RV - Somos bué free!

JA - Para ser honesto, acho que é um contributo que vem via Pedro Gomes, não mais.

PG - Num pequeno momento de egotrip vou responder a isso. A Rita e o Quim têm o universo de referências deles, mas para mim isso é bué importante. Pode não ser óbvio, na medida em que a maior parte dos nomes citados porque aqui estamos a lidar com o rock e com a expressão não idiomática, mas eu penso que há marcas. Pessoalmente sinto muita empatia por esse tipo de materialização de energia em som – uma coisa sempre lá em cima, sempre a rebentar continuamente. E encaro mais como uma referência anímica e estética do que como uma influência de género e de estilo. É mais por aí, porque respeito muito a intensidade, a entrega e algum do léxico do free jazz.

E não será também porque chama o vosso rock de free? Como auto-classificam o vosso som?

JA - No outro dia descobrimos uma muito boa: hard free!

PG - Hard free é a nossa cena.

JA - A banda acaba quando houver prateleiras na lojas a dizer “hard free”.

Entretanto já gravaram um disco, a editar este ano, não é? O que podemos esperar dessa gravação?

RV - É um disco mais cansado.

PG - Está a começar a ficar unânime, não é?

JA - Completamente!

RV - É um disco cansado, mas não cansativo.

Como assim?

PG - Imagina trabalhares seis horas por dia e às sete teres que gravar até à uma da manhã. Cansado. Imagina que uma coisa arraçada a ferros pudesse ser boa – é tipo isso.

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Uma característica muito vossa é a intensidade “ao vivo”. Conseguem transpor essa intensidade para este disco?

RV - Mais do que no África.

PG - A intensidade está toda lá. Estamos a falar de cansaço completamente presente, como uma coisa basilar. Ou seja, dentro da cena muito intensa é uma cena cansada. Não é propriamente um disco em que estamos ali a arrastar-nos de um lado para o outro, estamos de uma forma explosiva, se quiseres.

RV - É aquela última reserva de energia…

JA - É aquela onda do estares demasiado cansado para dormir e a cabeça está a cem à hora, estás exausto e não consegues dormir e a cabeça está a cem à hora e queres dormir e não consegues dormir a cabeça está a cem à hora.

PG - Ou então é tipo quando tu fumas cigarros a mais de manhã e ficas com a boca muito seca e estás ao sol e ficas com bué sol nos olhos e ficas muito cansado e com a pele toda desidratada, é tipo isso… Só que à noite.

Os títulos das vossas músicas são do melhor que já se viu. Podemos saber quais serão os títulos das novas faixas?

PG - Eh pá, não…

RV - Posso dizer só o nome do disco?

Vá, digam lá.


PG/JA - Ok.

RV - Cena Espírita.

PG - É um novo universo léxico-semântico para o pessoal aí assimilar. Demora a entrar, man, mas quando entra bate forte.

De onde vem o nome CAVEIRA? Tem alguma coisa a ver com “Expressway to Yr. Skull” dos Sonic Youth?

PG - Não, não… Vocês nem curtem muito Sonic Youth, pois não?

RV - Nunca tive a cena Sonic Youth.

JA - Nunca bateu, ya…

RV - Como é que foi?

JA - Numa sala de aulas… bilhetinhos… CAVEIRA.

PG - Lembro-me que o nome lhes dava bué vontade de rir e eu não achava piada nenhuma, eles eram pessoas minimamente felizes e eu era um urbano-depressivo.

Mas convenceram-te…

PG - Ya, man. É como Cena Espírita, demora a entrar. Eles estão bué à frente.

Quem é que lançou a ideia?

JA - A Rita, como sempre, tem as melhores.

Têm recebido bastante atenção mediática, inclusivamente a nível internacional (The Wire). Esta notoriedade vai arrastar CAVEIRA para eventos mainstream, como actuações em festivais de verão, por exemplo?

RV - Eu curtia tocar no Boom, no festival de trance.

PG - Ena, isso era fixe. Com o Manuel Göttsching a seguir.

RV - É o único festival de verão que eu concebo…

PG - Eh pá, tu começas a ver a ressaca dos anos 90 e como essa ressaca se materializa nos hábitos dos ouvintes, da imprensa, nas editoras e distribuidoras, e como tudo se está a alterar. Tu cada vez menos és obrigado a ouvir o disco novo dos Guided By Voices ou aquela ressaca do indie rock dos anos 90 que empolou tanta merda até há pouco tempo e ocupou tanto espaço de antena. Isso ainda é óbvio em Espanha, tu vês um festival em Espanha e 99% são cançõezecas da tanga, já ninguém quer saber dessa porcaria – há pouco mais de meia dúzia de pessoas que fazem canções de jeito, hoje em dia. Cada vez mais tu vês uma aceitação da parte das editoras independentes e princípios de aceitação overground de coisas que são muito menos ortodoxas. Tu vês os Animal Collective ficarem cada vez maiores, vês os Wolf Eyes assinarem pela Sub Pop, vês a Drag City a fazer contratações que até há pouco tempo eram impensáveis, vês a Matador a cair dentro da cabeça das pessoas como uma coisa já não tão interessante, toda a indústria independente está a alterar-se. Ao mesmo tempo, é um bocado abismal que a gente tenha tocado para duzentas e cinquenta pessoas, ou lá o que foi, na sexta-feira. Há dois anos era impossível, há meio ano era impossível. Duzentas e tal pessoas a gramar esta merda? É porque as coisas estão a mudar. E ficas um bocado a pensar que há aqui qualquer coisa… Duvido muito que vamos ter quarenta mil putos a fazer headbanging em Vilar de Mouros.

JA - Mas eu curtia ver miúdos com coletes de ganga com dorsal de CAVEIRA.

RV - E a cena hard free.

PG - Por acaso a cena patches de Maiden está a voltar bué…

JA - Não, Maiden não, só o dorsal.

RV - O único sítio onde se vendem é na loja do metro do Campo Pequeno.

PG - Estás a ver, ela sabe.

JA - É o hard free

PG - Vejo com muita dificuldade tocarmos para muita gente, num futuro próximo. Num futuro médio/longo, se ainda cá estivermos, as coisas podem ser diferentes. Acho minimamente concebível tocar num palco pequeno, tipo “jovens talentos” ou qualquer coisa assim… Fora isso só festivais de música independente lá fora, daqui a uns tempos.

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Num plano de sonho, qual era o festival onde gostavam de tocar?

RV - Isle of Wight, para aí.

JA - Ya, completamente!

PG - Sei que isso é impossível, mas era grande.

RV - E Japão era fixe…

PG - O pessoal não pensa muito nessa, é mais step by step. Vamos fazendo o que vamos fazendo e as coisas progridem como têm de progredir. Obviamente que tentamos que a nossa música chegue ao maior número de pessoas possível e tentamos ver onde possam estar alguns interessados. E agora quando este disco sair vamos tentar com que as pessoas noutros sítios possam ouvir o que estamos a fazer. Mas não há um grande plano de coisa nenhuma, a nível de manipulação de agenda.

Os vossos imensos projectos paralelos (Manta Rota, Vicious 5, Braço, etc.) servem como libertação de outras formas musicais que o formato CAVEIRA não possibilita?

PG - Se fossemos falar dos projectos paralelos passava aqui a noite toda, a falar de partes do corpo todo…

RV - Acho que nada é satélite de nada, pelo menos para mim.

PG - Eu tenho propósitos diferentes para cada coisa que faço.

JA - Mas nenhum deles é definitivo.

PG - Não, mas são coisas completamente diferentes entre si.

JA - Mas não há um determinismo do tipo “em CAVEIRA só se faz isto”, “em Vicious 5 só se faz aquilo”.

PG - Mas tens objectivos diferentes em cada coisa que fazes.

JA - Evidentemente.

PG - Isso é mediado, por exemplo, pelos meios que escolhes para cada projecto.

JA - O que distingue essencialmente todos estes projectos é que não são feitos com as mesmas pessoas com os mesmos intuitos.

RV - Nem produzidas as mesmas coisas.

PG - Por exemplo, o projecto Braço funciona como um projecto de percussão partilhado e começámos a olhar para aquilo como uma espécie de production team. É uma coisa completamente diferente, uma coisa completamente orientada para ritmo e batidas, vem de um fascínio, que para o Afonso é antigo e para mim é mais recente, por música de dança, por cultura de dança, por dub, por música tradicional rastafari, por ritmo. Por isso é completamente diferente, como Manta Rota é completamente diferente. Mas eu penso que o que despoleta iniciaticamente cada um destes projectos será só o desejo de trabalhar com aquele grupo de pessoas. E o que resulta daí é subsequente.

Como prevêem o festival “Um Dia A Caixa Vem Abaixo”?

RV - Não há previsões…

PG - Lembro-me que uma vez no nosso primeiro concerto um de nós perguntou “como começa?” e outro disse “como começar” e desde então nunca mais se fez pergunta nenhuma.

JA - Não penso muito no que vou tocar.

PG - Eu não preparo coisa nenhuma, é chegar lá e… destruição! Não há mais nada. O pessoal curte é chegar e entrar a explodir, mesmo. É ter mil merdas dentro da cabeça e direccionar aquilo da forma mais histérica, grotesca e visceral. Mas conceptualizações é tudo aparte do momento em que nós tocamos, não há qualquer tipo de predefinição. CAVEIRA, se sempre foi alguma coisa, foi só uma boa onda bué gutural.

JA - Nós três somos quem tem menos noção real da música que nós fazemos.

RV - Acontece-nos no fim de todos os concertos perguntar como foi, não sabemos genuinamente.

PG - No final vamos ter com os amigos e perguntamos: “como foi? Não me lembro de nada”.

RV - É um bocado tipo airhead.

PG - É airhead na noção primitiva da coisa, esquecimento. E tu para esqueceres tens de dar uma grande volta.

RV - E é quase zen.

PG - De certa forma é uma espécie de crescendo de intuitivismo, vamos aprendendo a ser cada vez mais intuitivos a tocar uns com os outros.

JA - Para mim, pelo menos, em CAVEIRA o único esforço que tenho feito é um esforço de quase desaprendizagem. Vou tentar que as referências que tenho não me ditem nada, vou tentar só reagir ao que eles fazem. É um esforço, não é fácil, porque das primeiras vezes que a gente tocou o que saía era backbeats de quatro por quatro, mais ou menos complicados ou não, mais ou menos estúpidos ou não. Agora é só tudo estúpido.

PG - Estúpido é fodido.

JA - É estúpido na medida em que não há nada racional nem matemático no que se faz.

PG - Ya.

Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
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