ENTREVISTAS
Alceu Valença
"Não sou pelo entretenimento fácil, mas pela arte verdadeira"
· 18 Jan 2017 · 18:10 ·
Do Nordeste dos mitos, do cangaço e do sol que abrasa corpos e almas chega até nós uma verdadeira instituição viva da contracultura brasileira, Alceu Valença. Armado apenas com música ou, como nos explica, de “um rock que não é rock”, este septuagenário de muitas curvas ultrapassadas e muitas outras por ultrapassar, regressa, este mês, a Portugal para concertos em Lisboa (21 no Tivoli) e Porto (24 na Casa da Música).

No palco, lugar onde se fez Homem e Músico, irá apresentar, em formato concerto/livro de memórias, “Vivo! Revivo!”, espectáculo onde o músico que, numa outra vida, já foi advogado e jornalista passa em revista os temas dos primeiros três álbuns da sua carreira, entre os quais o seu emblemático Vivo!. De Passados mitológicos e Presentes feitos de luta e perseverança se constrói a entrevista, espaço onde ainda coube um filme, o de “Alceu realizador”, onde a “luneta” que observa o tempo se detém na Ontologia do “Ser” nordestino. Eis Alceu Valença e o seu combate por uma “arte verdadeira”.
© António Melcop
Quem se deslocar a Lisboa ou ao Porto que Alceu poderão encontrar? O que é, afinal, o espectáculo Vivo! Revivo!?

“Vivo! Revivo!” É a recriação das primeiras canções da minha carreira, na década de 70. O show corresponde ao repertório dos meus três primeiros álbuns (Molhado de Suor, 1974; Vivo, 1976; e Espelho Cristalino, 1970). São músicas que trazem a matriz da canção nordestina, profundamente influenciada pela música ibérica. Com um leve toque oriental, já que a música árabe está na formação da música portuguesa e também da música desenvolvida no sertão do Brasil, na região nordeste do Brasil profundo. Ao mesmo tempo, elas possuem uma timbragem rock, próxima da psicodelia, que vigorava na música pop internacional daquele tempo. E letras metafóricas, contudentes, que combatiam a censura imposta pela ditadura militar de uma maneira alegórica, provocadora e insinuante. Remetem a um determinado contexto histórico mas ao mesmo tempo permanecem atuais, porque na minha cabeça o tempo é tríplice. Vivemos presente, passado e futuro tudo ao mesmo tempo. Como digo nos versos de "Papagaio do Futuro": “estou montado no futuro indicativo / já não corro mais perigo”. Também canto sucessos como “Anunciação”, “Belle de Jour”, “Tropicana”, que não podem faltar em meus shows.

Como é que tem sido recebido este “livro de memórias” formato concerto?

Havia uma demanda muito forte por este show principalmente nas redes sociais. Gravamos o DVD ao vivo, no tradicional Theatro Santa Isabel, em Recife, capital de Pernambuco, e a resposta do público foi uma verdadeira catarse. É possível observar a emoção no rosto das pessoas ao se assistir ao DVD. É este efeito que queremos produzir no palco, porque trata-se de uma arte verdadeira, inovadora, que procura se expressar sem imitar ninguém. Talvez pelo discurso contestador, pela forma rock que as músicas acabam adquirindo, este é um show que permanece novo e atrai um público cada vez mais jovem. É uma multidão de barbudinhos cabeludos, parecidos com o que nós éramos nos anos 70. E eles cantam aquelas letras todas, meio delirantes, completamente metafóricas, a plenos pulmões. É sempre surpreendente para mim.

O que é isso de “rock que não é rock”?

Isso foi a definição de um jornalista do New York Times para a música que faço, depois de assistir a um show meu no Kool Jazz Festival, no Carneggie Hall. Ele falou esta frase e eu a assimilei. Porque pode ter postura rock, timbragem, atitude, essas coisas. Mas ao mesmo tempo é música brasileira, nordestina, e também árabe e portuguesa. Costumo dizer que enquanto houver fronteiras, sou de São Bento do Una, uma pequena cidade no sertão de Pernambuco. Depois sou pernambucano, nordestino, brasileiro. Minha música permanece porque jamais fiz concessões a um comercialismo vazio. Implico com rótulos como “o Mick Jagger brasileiro, a Madonna brasileira...” porque o sujeito já se coloca como um artista de segunda quando assume estes rótulos. No início da minha carreira, conheci o grande músico brasileiro Hermeto Paschoal e perguntei a ele o que costumava escutar. Ele disse: “nada, para não me influenciar”. É por aí. Eu também não escuto quase nada, para não me influenciar. Não escuto rock, mas não deixo de fazer um rock que não é rock.



Podemos afirmar que Vivo! é o seu álbum mais marcante? Em caso afirmativo, porquê?

É o álbum que talvez melhor sintetize esta fase, o registro de um show que se tornou emblemático e que na época já possuía uma mística muito forte. Eu comecei a gravar em 1972, quando lancei um disco em parceria com Geraldo Azevedo, chamado “Quadrafônico”. Éramos dois pernambucanos recém-chegados ao Rio, para onde todos os artistas iniciantes iam em busca de uma chance em gravadoras. Era um disco de canções inspiradas nos géneros da nossa região, a ciranda, o frevo, a toada. No mesmo ano, Geraldo e eu convidamos o grande Jackson do Pandeiro para cantar connosco no Festival Internacional da Canção, que era transmitido para todo o país. Jackson estranhou ver aqueles dois cabeludos diante dele, mas quando mostramos “Papagaio do Futuro”, ele disse que era a embolada do século XXI e aceitou nosso convite. A turma toda fazendo uma música com influência dos Beatles e nós compondo emboladas! A embolada é um gênero popular tradicional, com versos ritmados em decassílabos, que se assemelha ao rap mas surgiu antes dele. Dois anos depois, lancei “Molhado de Suor”, meu primeiro disco solo, que trazia a semente deste diálogo entre música nordestina e psicodelia, em “Mensageira dos Anjos”, “Dia Branco” e “Dente de Ocidente”, que estão no atual “Vivo! Revivo!”. Em 75, participei do Festival Abertura, da TV Globo, cantando “Vou Danado pra Catende”. Convidei artistas da cena musical de Recife, como Zé Ramalho, Lula Cortes e a banda Ave Sangria para participar comigo e o resultado foi um choque. O júri inventou uma categoria na hora porque o impacto que aquela química musical atingiu foi tão intenso que não podiam deixar de nos premiar. Foi aí que surgiu o show “Vou Danado pra Catende”, que acabou por se transformar no LP “Vivo!”. Depois disso lancei o álbum “Espelho Cristalino” (1977), com “Agalopado”, “Anjo de Fogo”, “Veneno” e a música-título. Fui chamado de maldito. Decidi mudar para Paris, onde permaneci por um ano. Voltei de lá com “Coração Bobo”, que foi um grande sucesso nacional. A partir daí minha carreira pipocou de vez. Mas isso é outra história.

Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e Marinês podem ser descritos como os teus padrinhos musicais. Pelo menos no que toca a tua iniciação musical. Sente que, tantos anos depois, respeitou o legado que lhe deixaram? O que é isto de cultura nordestina?

Estes três mestres que você cita deixaram sua marca na música popular brasileira, especialmente na cultura do Nordeste, que engloba os estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia, Ceara, Rio Grande do Norte, Piauí e Maranhão. A música feita no litoral de Pernambuco, por exemplo, é marcada pela forte presença negra numa região dedicada ao cultivo de cana-de-açúcar. Géneros como o Maracatu e os caboclinhos possuem aquela irresistível intensidade rítmica típica dos afrobrasileiros. Já o frevo, desenvolvido em Recife, une a presença negra da capoeira, que inspirou seus passos, à influência da música erudita europeia e da marcha portuguesa. Recentemente gravei em dueto com Carminho o “Frevo N°1 do Recife”, um clássico de Antonio Maria, que evidencia isso. É uma típica marcha portuguesa! Estes géneros são tradicionalmente associados ao carnaval, mas poderiam tocar o ano todo. Já a cultura musical do sertão e do agreste, de onde venho e de onde vêm também Jackson, Gonzaga e Marinês, é um produto típico da civilização do couro. Estão distantes do litoral, seu dia-a-dia é o da vida nas fazendas, nas feiras, a criação do gado, as plantações de algodão. As músicas de Luiz Gonzaga muitas vezes são adaptações de antigas cantigas de adjunto, cantos de trabalho, num paralelo com a formação do blues nos campos de algodão ao longo do Mississipi. E possuem aquela influência arabesca, mourisca, ibérica, que mencionei anteriormente. No meu caso, por ter morado no sertão e no litoral, eu uno as duas vertentes. Sou do frevo, do maracatu e da ciranda, mas também do baião, do forró, do xote, da embolada. Nunca fui um tradicionalista, mas sempre respeitei as tradições. Quando Luiz Gonzaga me viu cantar pela primeira vez, me disse: “seu som é uma banda de pífanos elétrica”. É uma boa definição.

© Yanê Montenegro

No ano passado lançou o filme “A Luneta do Tempo”. Esta criação é um exemplo dessa cultura? Como é que entrou nesta aventura? “Alceu Valença realizador” é uma faceta para continuar a explorar? Toda a Estética Nordestina é cinematográfica? O cangaço e as suas mil histórias, os mitos, etc.

Comecei a escrever o roteiro logo depois da morte de meu pai, em 1999, quando passei uns dias na fazenda em que nasci e fui criado. As referências da minha infância – cordelistas, aboiadores, cegos de feira, cantadores, emboladores – vieram muito fortes à minha mente e eu escrevia obstinadamente o que a princípio era um poema de cordel. Foi o cineasta Walter Carvalho quem me sugeriu que aquele poema poderia virar o roteiro de um filme. Quando percebi, havia tanto material que o roteiro seria inevitavelmente uma espécie de épico, com ações passadas em diferentes gerações. Modifiquei o roteiro várias vezes ao longo dos anos. Há personagens que surgiram e logo depois desapareceram, mas que permanecem em minha mente (risos). Durante a realização do roteiro, havia vezes em que eu acordava no meio da noite com alguma inspiração para este ou aquele personagem. Eu dizia para minha mulher, Yanê: eles estão conversando comigo! Me levantava, pegava o computador e ia retrabalhar o roteiro. Modifiquei algo da estrutura e dos diálogos até mesmo no set. Se eu achasse que determinada passagem ficaria melhor de uma maneira diferente do que estava no roteiro, imediatamente inventava novos diálogos ou até mesmo cenas inteiras. A princípio a equipe de cinema estranhava. Estão acostumados com uma hierarquia rígida, onde o roteiro é uma espécie de livro sagrado. Mas eu modificava quando achava por bem e o pessoal foi entrando na minha. Fiz o filme exatamente do jeito que eu queria. É um filme absolutamente autoral, não se parece com nada que eu conheço. É uma abordagem completamente diferente de todas as que já se fez sobre o cangaço. Vislumbro um Lampião onírico que não conseguiu superar as dores do mundo mesmo depois de morto. Acho que o filme toca sobretudo os amantes da arte. Não sou pelo entretenimento fácil, mas pela arte verdadeira. Sobre um novo projeto cinematográfico, quem sabe?

Como olha para todo este período de turbulência na política e sociedade brasileiras? Julgou ver o Brasil chegar a este ponto depois de uma ditadura difícil de ultrapassar? Vivo! foi, à sua maneira, uma espécie de grito contra essa ditadura. Este Vivo! ainda está vivo?

Vivo! permanece atual porque é um trabalho repleto de conceito, rebeldia, transgressão, mas também de referências alegóricas. Nossa luta era para derrubar a ditadura. Cheguei a ser preso em 1968, quando participava do movimento estudantil na Faculdade de Direito de Recife. Vários amigos meus foram torturados, alguns desaparecidos. Quando a ditadura terminou, em 1985, eu já havia me tornado um artista de grande repercussão nacional. Participei da campanha das Diretas Já, que antecipou a derrubada da ditadura, rodei o Brasil em caravanas que visavam restaurar a democracia. E, afinal, conseguimos. Hoje vivemos um momento turbulento, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Continuo encarando a arte como uma espécie de missão. Como digo em uma das minhas canções, “Tomara, meu Deus, tomara / uma nação solidária”. Tomara, meu Deus!

É formado em Direito e foi jornalista. Depois deste tempo todo, a música valeu a pena?

É claro que valeu. Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, não é mesmo?
Fernando Gonçalves
f.guimaraesgoncalves@gmail.com
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