ENTREVISTAS
Névoa
O rosto da nova música extrema em Portugal
· 08 Set 2016 · 00:11 ·
João Freire e Nuno Craveiro formaram Névoa há menos de dois anos. Desde então, lançaram dois discos, o mais recente dos quais - “Re Un” - um dos melhores registos dentro da música extrema nacional em tempos recentes. A diferença para o álbum de estreia é notória (e as influências também) e leva a pensar no que pode ainda estar pela frente para a dupla portuense. Com 21 e 22 anos, conheceram-se enquanto alunos do curso de Produção e Tecnologias da Música da Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo (ESMAE) do Porto, apesar de terem vivido na mesma rua durante anos. 
 
Os dois falaram ao Bodyspace dias após terem estreado em palco o novo álbum, no âmbito do Amplifest, e antes de se saber que vão marcar presença no Reverence Valada no próximo fim de semana. Asseguram não conseguir parar de compor e garantem já ter material a postos para um novo álbum que apontam para o próximo ano. 
Como foi apresentar o novo disco pela primeira vez, no Amplifest?
 
Nuno Craveiro: Por acaso desta vez foi bom porque quando o André [Mendes, da Amplificasom] falou connosco ficámos com dois meses para ensaiar. Ficámos logo contentes por aí, porque no outro disco, quando tivemos concertos, foi um bocado em cima, tivemos três ensaios. Desta vez tivemos muito tempo para ensaiar e acho que isso se viu. O concerto correu-nos mesmo bem.
 
João Freire: Tivemos um tempo de preparação, como ele disse, muito fixe e pelo próprio disco em si esse tempo deu-nos margem para moldar o disco conforme o que a gente queria fazer ao vivo e não ser uma coisa de chegar lá e tocar as músicas como elas são no disco. Estendiamos certas partes, outras mais pequenas.
 
Nuno Craveiro: O outro disco era mais rigído. Este era para ser um bocado mais solto, mesmo pelas influências.
 
João Freire: Mesmo na própria gravação, tínhamos essa liberdade.
 
Nuno Craveiro: E foi essencial que tivéssemos muitos ensaios para dar essa liberdade ao Miguel [Béco] e ao Ivo [Madeira], para estarmos todos a tocar em sintonia e ser uma coisa mais livre. Correu mesmo bem.
 
Para quem vos ouve, o “The Absence of Void” é muito diferente do “Re Un” que lançaram agora. Como é que isso foi alcançado?
 
João Freire: Podemos voltar um bocado atrás e pegando no primeiro disco de que falaste, se calhar este disco como foi gravado mais no imediato, aqui no Sá da Bandeira...
 
O outro tinha sido onde?
 
João Freire: O outro foi no Dani, no Caos Armado, em Santa Maria da Feira. Foi basicamente quase todo gravado por nós e depois foi mais misturado por ele. A bateria foi lá também. O processo de fazer o primeiro disco foi um processo mais longo e distribuído ao longo do tempo.
 
Nuno Craveiro: Foi o triplo do tempo.
 
João Freire: No início de 2014 já estávamos a começar a gravar coisas e a pensar em coisas para o disco. Este foi um bocado do género: um dia lembrámo-nos e dissemos vamos gravar um disco novo porque estamos numa altura em que estamos com inspiraçao e queremos fazer uma cena nova, diferente, até porque as coisas que andávamos a ouvir já eram um bocado diferentes. E foi uma coisa do género ligar para o estúdio e eles dizerem “ok, daqui a x meses...”.
 
Nuno Craveiro: Ligámos em novembro e marcámos para abril.
 
João Freire: Sim, quatro, cinco meses de diferença. “...tem que estar tudo pronto e é 'live-take', ou seja, chegam aqui, têm um dia para gravar tudo, todos juntos ao mesmo tempo e tem que ficar perfeito”. Essas coisas puxam por uma pessoa, exigem muito treino, mas ao mesmo tempo o resultado acaba por ser bem mais interessante do que no primeiro, em que foi espaçado e um bocado puzzle. No digital, hoje em dia, literalmente colas 'riff A' e 'riff B', uma cena a seguir à outra. Este processo para nós é muito mais interessante. Do ponto de vista de produção é muito mais interessante.
 
Nuno Craveiro: Este aqui ainda ouvi o meu próprio disco umas semanas depois, porque era uma coisa nova para mim. Num momento não tínhamos um disco e noutro já tínhamos.
 
João Freire: Como o primeiro demorou muito mais tempo, as influências foram bastante prévias à data em que ele saiu. Na altura em que saiu o primeiro já estávamos a ouvir coisas um bocado diferentes do que aquelas que originalmente nos influenciaram. Neste foi mais imediato.
 
Nuno Craveiro: Queríamos assumir logo isso. Já não nos identificávamos tanto com o disco anterior e então queríamos lançar o mais depressa alguma coisa que mostrasse o que nós andávamos a pensar de novo e, aliás, o disco era para ser um EP e acabámos por investir e decidir fazer um álbum. Foi mais a necessidade de pôr a coisa cá fora.
 
Que influências eram essas? Quer para o primeiro quer para o novo.
 
João Freire: No primeiro eram mais óbvias. A cena do black metal tanto mais antigo como mais americano, aquela onda atmosférica, bonita, se quiseres chamar assim, de Wolves In The Throne Room, etc. Neste é um bocado mais subjetivo, porque fomos buscar influências a todo o lado, também por causa do curso que fizemos. Acabámos por, no espaço de três anos, receber informação de todo o lado, de todos os géneros e isso acaba por mudar a forma de pensar de uma pessoa.
 
Nuno Craveiro: Isso foi o início do pensamento para o disco. Wardruna é uma banda de que eu gosto imenso, um projeto a que dou mesmo muito valor. Queria ouvir algo - e não conhecia nada que fizesse isso – que juntasse de uma forma bem feita música tradicional e black metal, porque normalmente o que ouvia, e procurei mesmo muito, era uma parte desse género e depois entrava a parte pesada e não tinha relação com o que vinha antes. Nada juntava as duas. A ideia de base foi conseguir fazer isso, daí a mistura dos instrumentos tradicionais, não são muitos, mas são alguns. Tentar dar essa estética ao disco. E acho que foi por aí que conseguimos passar mais essa ideia, no Amplifest, porque até aí as pessoas diziam “ok, isto parece Neurosis, isto parece isto, isto parece isto” e não estavam a ver que aquilo é suposto ser uma música inteira quase do início ao fim. Acho que no Amplifest conseguimos passar isso. Mas queres saber influências de agora?
 
Sim, já agora.
 
Nuno Freire: Já dissemos isto, demorámos imenso tempo a encontrar a identidade do disco. Quando isso aconteceu tinhamos dois meses para compor o resto. Demorámos foi imenso a chegar ao que queríamos. Nesse momento em que conseguimos chegar lá os Oranssi [Pazuzu] lançaram uma música do álbum novo que era exatamente o que estávamos a tentar fazer [risos].
 
Nota-se muito Oranssi.
 
Nuno Craveiro: Não tenho problema nenhum. Já gostava, mas depois do Roadburn andei três semanas a ouvir as bandas finlandesas e não ouvia outra coisa. Mas, sim, são uma grande influência. Wardruna, Swans, Aluk [Todolo] também nos comparam [a eles], percebo porquê, mas não é uma influência direta. Amenra também um bocado, mas foi uma coisa que pela ideia que tínhamos e pela cena de tornar a música mais lenta, algumas partes acabaram por soar a Amenra, mas não foi essa a ideia.
 
Como é que foi a ligação à editora Avantgarde?
 
João Freire: Estávamos na Altare, com o primeiro disco. Foi bastante importante para nós, uma editora nacional, damo-nos bem com o dono, foi fixe para nós porque foi uma rampa de lançamento. Tivemos uma boa promoção, isso ajudou-nos muito no início. De repente, apercebíamo-nos de que éramos uma banda que estava a começar do zero e que estavam a aparecer críticas em vários sitios importantes e isso foi muito bom para nós. A passagem para esta foi muito natural. Já o primeiro disco, se fores ver o catálogo da Altare, está um bocado fora do que é normal para eles. Dedicam-se mais ao lo-fi e aquele estilo de black/doom metal muito lo-fi. No primeiro ainda passava um bocado despercebido. Era diferente, mas era português, percebia-se a relação. Quando começou o processo de preparaçao do segundo álbum percebemos completamente que esta sonoridade já não tinha relação nenhuma com a Altare e achámos na altura que se calhar ia ser mútuo. Para além de nós já não querermos lançar uma coisa naquele contexto, porque se calhar não íamos ter a promoção certa para o tipo de sonoridade que procurávamos, eles provavelmente também não estariam interessados na sonoridade, porque era muito diferente do catálogo. A Avantgarde surgiu de forma muito natural porque é uma editora de que já gostávamos bastante antes, são muito abrangentes, em termos de géneros, tens muita coisa diferente desde black metal tradicional a bandas sonoras de filmes, a cenas folk.
 
Nuno Craveiro: Os primeiros álbuns de Katatonia!
 
João Freire: Tudo isso para nós foi uma razão para estarmos interessados.
 
Nuno Craveiro: Na altura, gravámos umas demos, sem voz.
 
João Freire: E foi uma coisa do género: “Isto é o que a gente está a fazer, estarão interessados?” E o Roberto [Mammarella], que é o dono da Avantgarde disse logo nessa altura que sim, que estaria muito interessado. Estivemos a discutir quais seriam os objetivos, o que é que a gente gostava de alcançar e ele apoiou muito desde o início. Eles dão muita importância à edição física. Tudo o que lançam, seja em CD ou vinil, nunca é um simples digipak normal. E isso para nós também é muito importante.
 
Nuno Craveiro: Ele trabalha de uma forma em que confia no que vamos fazer. Gostou muito do disco anterior e nós dissemos que íamos mudar. E ele foi muito à base de “gosto muito do disco anterior, confio no que vocês vão fazer” e acho que resultou.

 
Em relação às questões visuais, tencionam manter o formato para concertos? Não sentem falta de uma estética que seja mais condizente com o género? Pergunto porque é quase raro ver uma banda neste género tocar sem qualquer tipo de artifícios.
 
Nuno Craveiro: Não sei bem o que pensar disso. Acho que essas partes dependem das bandas. São coisas que pertencem a cada género. Eu, pessoalmente falando, acho que dá algum impacto quando a banda tem todo um cenário, um contexto. Mas, por exemplo, Oranssi Pazuzu foi uma banda que vi no Roadburn e eles não tinham lá nada, tinham as luzes e davam o espetáculo todo, não precisavam de mais nada. E acho que nós também somos assim. Não é uma coisa que descarte no futuro, mas focamo-nos mais na música do que estar a pensar nisso.
 
João Freire: Essa opção estética no palco de que falas acabamos por ter, de alguma forma mais subjetiva. As projeções para nós também são importantes.
 
Nuno Craveiro: Se [vier a acontecer] é mais pelos instrumentos, pela estética que damos ao palco. Esperemos que as pessoas percebam a ideia toda pela música e pelo que está no palco e não seja só “ok, eles estão vestidos assim”.
 
Para onde é que vocês se veem a caminhar em termos musicais?
 
Nuno Craveiro: Aquilo que perguntaste há bocado de no espaço de um ano termos lançado outro álbum, provavelmente daqui a um ano temos outro. Preciso de compor, preciso de fazer música. Já tenho 'riffs' para o próximo e já temos um conceito. A ideia era ir mais pela estética da primeira, segunda música. Como já disse a algumas pessoas, esta foi a fase de passagem. Também por ser curto, foi a fase de passagem, em que já percebemos o que é que queremos fazer. No próximo disco, a ideia é fazer uma coisa maior e mais focada. Se calhar mais para os lados de Swans, esta cena toda da música tradicional. Se calhar meter algum noise também. É mesmo a questão de experimentar.
 
João Freire: E a coisa acaba sempre por mudar um bocado. É isso que também é interessante. Porque este disco foi um bocado imprevisível para todos nós. Não sabíamos o que é que ia acontecer.
 
Nuno Craveiro: Houve partes que foram compostas lá [no estúdio]. Eu sabia que precisava de uma segunda guitarra para aquela parte.
 
João Freire: E as percussões todas. Tínhamos uma ideia para um ritmo, um padrão e depois no último dia foi “olha, afinal vai lá acima gravar mais uma cena”. Esse lado de ser imprevisível é muito interessante. As coisas se forem planeadas não têm metade da piada.
 
Tencionam manter-se os dois como núcleo?
 
João Freire: Em princípio sim. Já pensámos em mudar isso algumas vezes, mas acabamos sempre por achar que se calhar resultamos melhor em termos criativos se formos só os dois. O Ivo tocou baixo no álbum e faz tanto parte de nós como [o Nuno] na construção do álbum. Desde o início que percebemos que estando só eu e ele acaba por resultar melhor. É mais eficiente.
 
Nuno Craveiro: Começámos isto os dois e somos nós que tratamos da cena mais virada para a parte do conceito. Mas é claro que o Ivo e o Miguel, neste momento temos um ambiente espetacular entre os quatro, não sentimos que eles não façam parte. Claro que fazem.
 
João Freire: E acabamos por fazer a separação entre o nosso modo ao vivo e o modo banda. Ao vivo eles são 100% parte. Não há separação nenhuma. Em estúdio gostamos mais de trabalhar os dois.
 
O que é que vos levou ao metal em primeiro lugar?
 
João Freire: Eu tinha já uma ligaçao maior com o black metal. Já ouvia os “tradicionais” do género antes de ir para a ESMAE, porque achava que era interessante. Já não sei dizer bem o que é que me motivou a procurar o género. O Nuno, se bem me lembro, era mais Agalloch e mais death metal.
 
Nuno Craveiro: De black só conhecia Agalloch. Fui vê-los ao Barroselas, o dia em que calhou tudo o que queria ver. Antes disso passei por aquelas cenas todas, mais death metal, algumas cenas de deathcore. O que me levou mesmo foi mesmo nu-metal, tipo quinto ano [risos]. Mas sempre ouvi de tudo.
 
João Freire: Depois lembro-me, no primeiro ano da ESMAE, que foi uma questão de “experimenta ouvir isto, mas tens que perceber que é mais pela atmosfera, não é pelo lado técnico nem pela produção”, apesar de estudarmos produção. E a coisa surgiu um bocado por aí. Na altura, lembro-me que lhe mostrei Wolves In The Throne Room, que ele não conhecia.
 
Nuno Craveiro: Eu não gostei, por causa da voz do gajo. Também não gostei de Amenra, por causa da voz do gajo, era tudo muito agudo para mim. Depois comecei a gostar.
 
João Freire: A coisa também acabou por resultar por isso, por não estarmos diretamente ligados ao género.
Tiago Dias
tdiasferreira@gmail.com

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