ENTREVISTAS
Filipe Sambado
Quanto do teu sal
· 16 Mar 2016 · 14:45 ·
É perto do ex-Indie Rock Café que nos encontramos com Filipe Sambado, lamentando de imediato a perda de um espaço que outrora foi bastante aprazível. A perda, conforme viemos a aprender, é também uma das temáticas presentes em Vida Salgada, o álbum que o músico se prepara para lançar pela Spring Toast Records, após alguns EPs e incursões por duas bandas muito apreciadas deste lado da barricada, os Cochaise e os Chibazqui. Hoje, contudo, foi apenas ele quem nos abriu a porta dos seus estúdios, depois de uma pequena apresentação do edifício onde, futuramente, a Cafetra assentará a sua magia e conquistará o mundo. Ouvimos Vida Salgada ali mesmo, em primeira mão - escuta, pausa, escuta, pausa - e daí rabiscámos as linhas que se seguem. Uma senhora conversa. Eis Filipe Sambado ao Bodyspace - discurso mais directo seria impossível.
Moda

Alguma vez seguiste alguma moda quando eras mais puto?

A moda do skate. E primeiro a de bicicleta. Tinha assim essa cena dos desportos radicais.

Nenhuma subcultura musical? Nunca tiveste uma fase punk, uma fase metaleira?

Não, tive uma fase hip-hop. Quando estava em Lagos, fazia hip-hop.

...Sobrou alguma coisa desses dias?

Daquilo que faço agora, há a parte rítmica. Há muita coisa daí. Tanto métrica como ritmicamente, há sempre muito do género.

Alguma vez farias um disco do género?

Não, já não seria capaz. Acho que não...

Por medo ou por haver demasiada concorrência?

Nem uma coisa nem outra. É só porque seria um bocado desonesto. O que eu ainda possa ter daí será só uma componente sónica. No 1234 [EP de 2012], por exemplo, isso acontece. Os beats são todos muito trabalhados por aí. E depois tive uma fase rap em Cochaise, no primeiro disco.

O hip-hop foi o primeiro género pelo qual te apaixonaste?

Não sei... Eu queria fazer música e achava que não sabia cantar. Temos que ter em conta que o meu universo musical, em Lagos, sempre foi muito limitado ao que passava na Antena 3 e ao que chegava à MTV - eu não tinha noção de mais nada. Aquilo que eu ouvia era o que aí passava. Nessa fase, ouvia imenso Da Weasel, Mind Da Gap, algumas coisas de Almada, da Quarteira... Já nem sei os nomes, apareciam umas mixtapes em que um gajo ouvia uma música de cada artista e decorava a letra.

Como é que te começaste a interessar por música?

A minha outra fonte musical, para além dessas duas, era o meu pai. Mostrava-me música mais fora da caixa, diferente daquilo a que estava habituado. Nessa mesma fase em que ouvia muito hip-hop, ouvia também Mercury Rev, que era completamente diferente, era um universo muito mais onírico. Ouvia também Elliott Smith... O meu pai, volta e meia, fazia-me umas mixtapes. Eu ia a casa dele e ouvia algumas coisas que ele tinha sacado da net, e punha algo como duas músicas de Young Marble Giants, duas músicas de Mercury Rev, Elliott Smith, uma data de coisas. Era isso que eu ouvia ao mesmo tempo que ouvia hip-hop, e é radicalmente diferente daquilo que eu faço agora.

Lagos era assim tão aborrecida?

À parte jogar à bola e andar de skate, em Lagos não se passava nada. É muito bonita no inverno, porque não tem confusão, mas a nível de desenvolvimento é mesmo zero.

Isso quer dizer que és anti-turistas?

Não, não sou anti-turistas... É só que tu tens focos de atenção, e quando há gente, tu focas-te na gente. E eu foco-me muito nas gentes, gosto muito de pessoas, se há gente à volta eu olho muito mais para as pessoas do que para o que está à minha volta. E quando não há ninguém, tu consegues perder imenso tempo a contemplar toda aquela paisagem. E Lagos é uma cidade mesmo muito bonita.

Lagos inspirou-te, nessa ideia de solidão?

Este é claramente o disco em que eu assumo a minha falta de localidade. Nasci em Lisboa, fui em bebé para Santo André, depois fui para Elvas, depois Lisboa mais um ano, Lagos outro ano, voltei para Elvas onde estive até aos 12 anos, daí para Lagos até aos 18... Os meus pais são meio nómadas, eu tenho sempre uma dificuldade muito grande em perceber onde é que é a minha terra de pertença. E este disco tem imensas coisas assim, imensos laivos de "paisagem", de "passeio", porque eu fazia muitas vezes o percurso Elvas-Santo André e Lagos-Santo André para ir ter com o meu pai. Essa ideia de contemplação de paisagem permanece muito naquilo que eu faço. Aliás, eu escrevo imensas letras em viagem.

É onde escreves mais?

Isso e esplanadas de café, quando são mais sobre pessoas. As [canções] mais contemplativas são em viagem. Eu tenho uma relação muito bonita com o "chegar", não é tanto com a viagem. Normalmente perco a vontade de escrever assim que "chego"... Quando estás mais perto da plenitude há menos controvérsia - não tens tanta necessidade de escrever. Normalmente, quando "chego", chego sempre muito feliz. Não interessa o "onde" chego. É o simples facto de chegar. Se vou para Lagos, assim que lá chego é incrível. Quando volto para Lisboa é lindíssimo. Sinto sempre isso, fico sempre contente. Parece sempre que é uma nova oportunidade para fixar os pés.

Vida Salgada

Sendo esta a canção que dá o título ao disco, é mais acarinhada por ti em relação às outras? De onde é que vem o nome?

É por causa do refrão. Aquela coisa do antes queria não viver / do que andar a viver mal / dá-me beijos sem saber / dá-me vida com mais sal... Do quereres uma vida menos insossa, não quereres uma vida confusa, quereres algo animado e palpável. Toda a letra da música é sobre chatices - neste caso o romper com um período amoroso menos conseguido.

Quando escreves és autobiográfico?

Em parte. Quando começo a escrever, sou. Depois não tanto, porque é rara a vez em que escrevo uma letra de seguida. [A letra] arranca autobiograficamente e depois começa a ir atrás do lado mais ficcional. Aquilo que tu tens que fazer, quando escreves uma letra, é conseguires explicar uma coisa de uma maneira tão inteligível que se torna mais real que o objecto concreto. Se eu te descrever este computador, por exemplo, criando uma imagem que supera a deste computador e que para ti passa a ser a imagem do computador em si... Isso é quando se atinge poesia, quando consegues passar aquilo que sentes ou vês. Tentares explicar uma sensação com imagens. Ou mesmo que sejas literal, mas explicares a coisa de forma a que superes o teu próprio entendimento. A Sallim faz isso muito bem: Sinto mais vontade quando penso que tenho vontade... É daquelas frases que tu pensas: «Fogo, pois é»! Tão simples, não é? Mas ela acabou de explicar, na perfeição, essa sensação.

Falavas de Lagos ser mais bonita no inverno, e mencionaste nesta canção, pela segunda vez, a palavra frio...

Aqui é um lado mais esotérico. Quando estás assustado, ficas com muito frio, é uma coisa que te bate mesmo nos rins. É aquele frio nas costas, aquele arrepio... Esta canção tem muito a ver com isso, a primeira parte da letra é sobre o lado obstruído da pessoa, em que eu estou mais encolhido, e a segunda parte é a da libertação.

És uma pessoa que se assusta muitas vezes?

Sim, sou um mariquinhas [risos].

Com qualquer coisa?

Com sentimentos...

Então não é mariquinhas, é choninhas...

Sim, é mais isso [risos].

És tu que tocas todos os instrumentos neste disco?

Sim, tirando a última música. Aí, foi o Luís [Barros] que tocou a bateria, porque eu tinha estado o dia inteiro a tentar tocá-la e não consegui. O Luís é muito mais técnico que eu, e saca um som muito mais detalhado da bateria. Houve uns teclados numa outra canção que quem tocou foi ele e o Manel [Lourenço]. O Manel também fez umas segundas vozes.

Qual foi o primeiro instrumento em que pegaste, em toda a tua vida?

Acho que foi a guitarra. Uma guitarra com uma corda... Lembro-me de fazer uma música praí com cinco ou seis anos, em casa dos meus avós. Eu batia nas cordas, batia na caixa e cantava uma coisa qualquer... Aos sete anos escrevi uma letra e fiz uma canção com um amigo do meu pai, porque ele tocava [guitarra]. Desde essa canção que eu quis ter uma banda - e como sempre achei que não sabia cantar, veio o hip-hop, porque o hip-hop era aquela coisa de expressar as minhas letras, de qualquer forma. E depois percebi que não era bom o suficiente a fazer aquilo, e não fazia sentido estar a forçar uma coisa completamente desnecessária. Era só uma coisa de que gostava.

Enquanto músico, achas que é mais importante saber tocar muito bem um só instrumento ou saber tocar razoavelmente uma série de instrumentos?

Eu tenho uma cabeça que funciona muito atrás dos arranjos... Esta necessidade que tive de começar a tocar outras coisas tinha mais a ver com a fase em que achava que tocava mal guitarra, e então pensava: «tenho esta guitarra menos boa, se eu puser uma bateria vai soar melhor». E acabava por fazer a coisa assim. Agora tenho feito o processo exactamente inverso. E acabei por crescer, no que toca a saber tocar outros instrumentos, de forma um bocado igual. Se bem que a guitarra seja o instrumento que toco melhor.

E aprendeste a tocar sozinho...

Não tive formação, não. Quando isso me foi sugerido, foi numa altura em que não ligava nenhuma a isso, quando era muito puto.

Consegues situar a maior parte das tuas influências numa década específica? Por exemplo, os teclados nesta canção soam muito anos 80...

Eu acho que eles soam aos anos 80 porque o teclado é mesmo dos anos 80, mas... Sei lá. Eu comecei a ouvir Beatles muito tarde, só quando vim para Lisboa é que comecei a ouvir coisas com um bocadinho mais de critério e triagem, foi quando conheci o João Coração...

Pára aí: porquê «comecei a ouvir Beatles»?

Pá, porque são os melhores songmakers que existem. O percurso deles é quase imaculado. A partir de certa altura, especialmente a partir da altura em que eles deixam de dar concertos, aquilo torna-se completamente ridículo. Não há vez que não acertem, corre-lhes tudo bem...

É a banda por excelência?

Hm... É. Pelo número de canções feitas. A percentagem de qualidade de canções pelo número de canções em cada disco torna-os a banda por excelência. Não há ninguém que tenha tantos discos em que há sempre percentagens tão altas de boas canções.

Achas que dizes isso enquanto fã da banda, ou enquanto músico?

É complicado. Um bocado as duas coisas. A forma como eles o fazem, o espaço que dão a tudo... Está tudo demasiado certo. Chegaste a ver o documentário do Martin Scorsese sobre o George Harrison?

Não.

Há um momento em que eles falam desse período, em que tinham de gravar discos "de repente". A editora ligava-lhes e eles tinham que ir gravar um disco... O John Lennon e o Paul McCartney tinham que ir fazer canções, chegavam ao estúdio, iam gravar... Está tão distante daquilo que fazemos hoje! Eles chegavam ao estúdio e limitavam-se a impulsionar a canção, era tudo nesse sentido. Não podias estar a perder tempo com arranjos, eles surgiam no processo. Mas não pensavas «fiz esta canção na guitarra e na voz a pensar que vai levar esta volta»... Mas também adoro o Pet Sounds e o Surf's Up, que são discos completamente diferentes - o Brian Wilson, no caso do Pet Sounds, pensou muito mais nos arranjos. Aquilo é perfeito enquanto obra única. Na minha opinião tens três grandes discos dos Beach Boys: o Sunflower, o Pet Sounds e o Surf's Up...

Isso quer dizer que vais ao Primavera este ano?

Não sei. No ano passado tive bilhetes de borla por causa do disco de Chibazqui, este ano não sei...

Volta lá ao João Coração, antes de te ter interrompido.

Quando vim para a faculdade conheci-o, e ele foi uma pessoa muito importante, apresentou-me ao Cão da Morte... Foi nessa altura que eu comecei a ouvir coisas com mais critério. Cheguei a Lisboa ainda com o balanço que tinha, continuava a ouvir a MTV, não tinha muita noção. Quando conheci a Cafetra, senti que estava no mesmo sítio que eles, e eles têm menos cinco anos que eu. Senti que estava a descobrir o universo da mesma forma que eles. Nós partilhávamos imensas músicas; a minha amizade com o [Luís] Severo e com a Cafetra tem a ver com isso, embora eu fosse mais velho e tivesse um conhecimento mais aprofundado, se calhar, a nível do som. Por isso é que acabámos por gravar imensas coisas juntos, na altura, quando eles eram menos independentes. Às vezes contradizíamo-nos, uns achavam isto, outros aquilo, mas a piada era essa. Eu descobri neles parceiros equivalentes. Com o Daniel [João Coração] sentia-me sempre um bocado como o aprendiz, que ficava sempre ali caladinho...

Considerando a influência que o João Coração teve na grande maioria da malta que hoje em dia faz "canções", será ele os Beatles desta geração?

O mais engraçado é que ele é o gajo mais naïf de todos nós. É um gajo com uma cultura musical incrível. Eu, o Coelho [Radioactivo] e o Severo fomos os gajos mais influenciados por ele, se calhar. Eu não tão directamente, pelo facto de termos idades muito próximas - sentia-me aprendiz dele a nível da cultura mas não tanto do lado "vida". Não diria Beatles, mas... Quer dizer: o que estás a dizer até faz algum sentido, se formos pelo lado naïf. Pode ser visto dessa forma. A maneira como ele fez o segundo disco, o Muda Que Muda, que eu co-produzi, tinha esse lado. Ele chegava com canções muito simples, e depois teve a sábia ideia de convidar pessoas incríveis para tocar, e a malta impulsionava as canções.

© Sara Alvarrão

Achas que o eclipse dele é uma perda para a humanidade?

Ele não se eclipsou. Repara que, quando tu estás em paz, escreves menos. E ele excedeu-se com isso. Parou de escrever. Mas tem feito canções, e a coisa há-de voltar. Os dois discos que ele fez surgiram numa fase em que a vida dele estava a mudar, e ele começou a querer fazer canções. Na altura até tive uma banda com ele... Tínhamos uma banda domingueira, que fez três ensaios, e ele depois convidou-me para participar nos dois discos. Há até uma música minha que acabou como um lado B.

Isso quer dizer que um artista tem que estar em perpétuo sofrimento?

Não, mas trabalhas bué no limiar! É uma g'anda esfrega... Ainda ontem estava a falar disso com uma amiga minha. É um bocado excessivo, e não é nada obrigatório, há pessoas que têm uma paz gigante - o Lourenço Crespo, por exemplo, parece uma pessoa bem encontrada consigo próprio, até é uma pessoa que prefere falar sobre coisas um bocado menos negras, e não deixa de ser óptimo no que faz... Eu falo por mim, e agora pelo Daniel: eram as letras que ele escrevia, sobre os seus problemas, sobre o divórcio dele. Agora está casado e é pai, logo tem que encontrar um lado emotivo para poder voltar a escrever.

Tou Confuso

A repetição é importante na música?

Claro. Super importante. É a maneira de enganares as pessoas. Não sei, lá está: o Oscar Wilde diz que a poesia era feita para ser cantada no tempo clássico, então é normal que tu repitas o chavão, já nas cantilenas populares é assim. Quando bates o chavão crias um mantra e a letra.

É uma espécie de experiência religiosa, de trance...

É. Mas a música, e especificamente a malta da folk, a partir dos anos 50, virou tudo crente, portanto...

A religião é importante para ti?

Não. Estou a ficar cada vez mais esotérico. Não sei o que me considero, sei que os esoterismos têm estado cada vez mais próximos na minha vida: crenças nos zodíacos, nos mapas astrais... Se calhar é das drogas.

...A droga é importante no processo criativo? Seja tabaco, álcool, até a música...

Já foi. Mas mais como processo de auto-conhecimento, porque depois acabas por perceber o que ela te dá, e consegues ir buscar isso. Escrevo relativamente bem quando bebo e toco bem quando fumo. Mas não faço melhor do que quando estou sóbrio. É uma espécie de kick...

Também assumes, neste disco, o trabalho de produtor. Foi-te mais fácil produzir o teu próprio disco do que os discos dos outros? És mais crítico em relação ao teu trabalho que ao dos outros?

Tenho meia-dúzia de pessoas que me importa sempre ouvir. Quando são os discos dos outros imponho muito mais a minha razão. Por exemplo, fico muito self-conscious com o que o Lourenço Crespo diz, porque é uma pessoa cuja opinião eu levo muito a peito. E é uma estupidez minha, porque ele nem gosta muito do meu trabalho [risos]! Eu não devia fazer isso, fico sempre demasiado confuso e atrapalhado com o que ele vai dizer, mas por outro lado acaba por ser uma coisa fixe - ok, até a este gajo eu quero agradar!. É muito mais trabalhoso produzir um disco meu que produzir o de outra pessoa. Tenho mais certezas com os discos dos outros. No do Severo, nós acabámos por não assumir a produção do disco como minha por questões de pesquisa sónica - fiz uma produção muito longa com ele ao nível da construção das músicas, mas depois, na parte sónica, a coisa começou a perder o controlo. Porque eu estava a gravar o disco do Alek Rein ao mesmo tempo, e o Severo começou a vir para aqui, fazer as coisas sozinho... Ficou com produção dele, e fez todo o sentido, ele fez todo o trabalho. Mas é isso. Quando estou a produzir o disco de alguém, luto pela minha opinião com unhas e dentes; quando o disco é meu, reflicto muito mais sobre a opinião do "outro".

Quando produzes os discos de outras pessoas, qual é o teu método?

Penso um a um. No outro dia estive a gravar uma banda, os Vinho, que devem lançar o disco deles lá para Maio, e eles mandaram-me as maquetes - porque eu gosto sempre de fazer um bocadinho de pré-produção - e a produção foi algo género "este espaço é caótico, 'bora lá montar os microfones, vocês tocam todos ao mesmo tempo e criamos aqui um som claustrofóbico". E ficou fixe. Fiquei satisfeito com a cena. Com o Severo não; a ideia base do Cara D'Anjo era trabalhar os arranjos. Tal como ele tinha feito comigo no Ups... [EP de 2014], a ideia era atacar o disco juntos, formalizarmos a banda, e esta ainda se ia reapropriar das ideias que tínhamos tido juntos e fazer uma coisa que funcionasse como o resultado de algo meio banda, meio autor. Com Primeira Dama também está a ser um trabalho muito conjunto - eles já têm as canções feitas, nós já temos o espaço sónico, os arranjos a nível das harmonias de voz, porque é um disco com muita voz e teclado... É mesmo caso a caso. Quando foi com Os Passos Em Volta rodávamos as músicas três vezes para eu ouvir tudo antes de começarmos a gravar. E, às vezes, vai mesmo ao ponto de eu dizer «experimenta mudar o acorde», de interferir no processo criativo.

Qual foi o disco que mais gozo te deu a produzir, até hoje?

Diria o do Alek Rein. Foi o que me deu mais gozo, o mais desafiante. Ainda por cima tive que gravá-lo duas vezes... Foi desafiante porque ele, a nível musical, está um bocadinho [acima]. Não é que as canções dele sejam melhores que as dos outros: adoro as canções dele e acho-o incrível, mas não o estou a pôr acima de todos os outros. O que se passa é que, a tocar, ele está um nível acima - pelo menos dentro deste conjunto de pessoas que não têm formação e que faz as coisas à sua maneira. Explora a forma da canção de uma maneira muito mais inesperada e, ao mesmo tempo, expectável: aquela coisa clássica das partes C, todas as canções têm uma bridge gigante, há espaço para viajar imenso... E depois é um gajo muito imediato nas harmonias de voz, super sensível nos solos... O trabalho que eu fiz com ele foi «ok, como é que nós vamos resolver todas estas ideias em bruto e tentar fazer disto o mais perto possível de canção pop?». Porque a dificuldade é essa: quando ele toca só guitarra e voz, isso acontece; quando toca em banda a coisa corrompe-se um pouco. E então o trabalho de produção do disco dele foi esse, fazer daquilo um disco mesmo pop. Foi muito giro, mesmo que a primeira vez a gravá-lo tenha dado barraca. Ficámos proibidos de lançar a primeira versão...

Existe alguma cadência no alinhamento do Vida Salgada?

Não pensei em contar uma história por capítulos. O disco é que acaba por ter uma temática um pouco constante, e isso acaba por acontecer com alguma frequência.

Roda A Garrafa

Dizes que esta é a canção do disco mais Talking Heads. É uma banda importante para ti?

É. Não é uma banda que eu conheça a fundo, mas é daquelas bandas que eu sempre que me lembro de a ir pesquisar, é sempre óptimo. Género: «foda-se, porque é que eu não ouço isto mais vezes?». É um problema que eu tenho; como produzo muita coisa de muita gente, às vezes chego a casa com os ouvidos cansados, e apetece-me ouvir música e não consigo... Quando me lembro de ouvir Talking Heads acho-os sempre do caraças. Fico sempre surpreendido. Eu disse que esta é a mais Talking Heads pelo lado groovy, tem aquele groove muito simples.

Porque é curioso: há pouco falámos do João Coração, e ele também pegou nos Talking Heads...

Sim, pois foi. Mas eu lembro-me de já ouvir Talking Heads quando era puto, em casa do meu pai. Depois foi fácil lembrar-me de os ir buscar mais tarde.

Qual é que foi, até hoje, a tua maior bebedeira de sempre?

Foi nos anos de um amigo meu, o Gonçalo, lá de Lagos. Bebi demasiado... Acabei na casa-de-banho de um barzinho de karaoke, sentado na sanita a vomitar-me, e o pai dele é que me foi lá buscar.

O álcool torna-te uma pessoa mais sociável do que o que já és?

Sim, muito mais [risos]. É incrível.

Qual é que é a tua bebida preferida?

Cerveja não posso beber, porque tenho uma série de intolerâncias alimentares, e não posso beber o malte da cevada fermentado. Mas posso beber destilado. O whisky é das minhas bebidas preferidas, o bagaço, medronho...

Fala-me da voz feminina desta canção.

Não tem.

Então que era aquilo que eu ouvi?

Sou eu.

Então alteraste o pitch...

Não, não! Todas as vozes neste disco são minhas, excepto a da próxima canção, onde canta a Calcutá. Sou sempre eu nas vozes agudas.

Preferes vozes masculinas ou femininas?

Ambas. E não tenho preferência entre vozes graves ou agudas. O ideal é quando consegues descobrir o que podes fazer com a tua voz e tornares isso uma coisa tua. E este disco tem uma cena que eu quis mesmo fazer, que foi aceitar o meu registo mais puto, que nos outros EPs tentei sempre descer. Quando falo tenho uma voz naturalmente infantil, adolescente, e este disco assumiu-o. E no entanto é o meu disco mais adulto, porque não tento ser adulto... Sinto que fiz as pazes com imensas coisas e apeteceu-me experimentar. O Alek Rein, no outro dia, disse-me que o disco está bué prog. E eu não conheço muito prog, mas tem a ver com esse lado de querer explorar uma série de coisas. Eu sempre tentei fazer músicas muito diferentes umas das outras, porque andava "à procura", e neste disco sinto que encontrei melhor o espaço que isso ocupa, como fazer isso durante a música, saber melhor as coisas... É um aguçar, um limar de ideias que já tinha.



Também existe aqui uma certa dinâmica quiet-loud. Influências do grunge?

Não, serão mais influências de Beatles, que fazem misturas muito vivas. Quem misturou o disco foi o Alex e quem me ajudou muito foi o Luís Barros. Porque ele não é técnico de som, nem vasto conhecedor do que é fazer som, mas é um gajo muito curioso com as misturas e acredita muito nessa ideia de misturas muito vivas, de coisas a aparecerem. No refrão, tanto o shaker como o teclado estão na tua cara, e tu não te apercebes disso - mas isso traz muita dinâmica. Este tipo de coisas tornou o disco muito vivo. Às vezes são coisas muito simples das quais tu não te apercebes, e quando tu fazes isso, especialmente com os instrumentos que não são importantes, coisas que andam mais escondidas na mistura... Quando estes sobem criam pequenas explosões, pequenas rupturas, e parecendo que não voltas a prestas atenção à música por alguma razão. Ele também tem essa tendência a tocar bateria; quando a música está mais baixa ele impõe um bocadinho mais de respeito com uma única pancada. É uma pessoa bastante importante, a par do Severo. São muito diferentes na forma como vêem a música, mas muito importantes.

Já tinhas em mente as pessoas com quem querias trabalhar antes de gravar o disco?

Essas pessoas foram aparecendo. A vantagem de termos este sítio é que, neste prédio, tocam os músicos lisboetas que eu mais aprecio, só faltava aqui o B Fachada. O Rodrigo [Soromenho Marques] não trabalha aqui mas passa cá imenso tempo. Todos os músicos, de Primeira Dama ao Severo, Alek Rein, Caveira, a malta da Spring Toast com os Mighty Sands, a Cafetra... A malta vem fumar uma, beber uma jola, ouvir uma cena nova... E acaba por ser fácil demais! Mesmo que esta malta ache que o que o outro faz é pior do que aquilo que ela própria faz, é inevitável que o que se está a passar neste prédio seja relevante para a cidade. Há aqui uma percentagem muito grande daquilo que se está a passar.

Porquê a ligação à Spring Toast?

O Rodrigo começou a dar-se muito com eles, até por ser mais a onda dele, a cena garage, surf rock. E começou a ser habitual fazer jams - eu, o Alek Rein, o Manel, íamos para ali fazer jams com os Mighty Sands. Quando estava a fazer o disco tive um convite da FlorCaveira para o lançar, mas não fazia sentido, porque nunca tive ligação com eles. Tive depois um convite da Gentle, que embora adore, achei que não fazia sentido lançar por uma editora do Porto. No final, a Spring Toast foi a única que não me propôs nada, mas quando falámos ao de leve sobre a coisa foi super entusiasmante, de parte a parte. Foi óptimo, deu-me muito mais motivação.

Como é que separas, criativamente, o Filipe Sambado do Filipe de projectos como Cochaise ou Chibazqui?

Bem, Cochaise parou. Com eles lançava muitas ideias e tentávamos trabalhar isso em banda. Já Chibazqui é a banda mais banda que eu tenho. Fazemos tudo de raiz, pode vir de uma canção do Diego, de um groove de baixo e bateria... Agora estamos na fase Silas [Ferreira]: ele chega e começa a montar as coisas, começa a tocar, e de repente já estamos todos a incentivá-lo... Mas não é uma separação muito difícil de fazer. O facto de Cochaise estar parado - era o único trabalho em que havia essa separação mais ténue - torna-o mais fácil. Tudo o que é pessoal, mais emotivo, vai parar aos discos a solo.

Aprender A Ensinar

Assinares com o teu próprio nome, em vez de usares um moniker qualquer, torna o trabalho mais autobiográfico?

Era desperdiçar um apelido incrível [risos]...

...Então porque não fazes baile funk?

Pode acontecer...

Alguma vez disseste "não" a um género de música específico?

Math rock, talvez.

Disseste-te "aprendiz" do João Coração. Vês-te a ensinar outras gerações?

Não é "ensinar", mas o que mais faço é gravar discos de borla, logo há sempre um input qualquer que dou às pessoas. Não me sinto propriamente professor de nada, mas acho que já fiz parte de alguns processos de alguma malta.

Dizias que esta canção tem teclados à Enya. Achas que a Enya merecia mais atenção do público e da crítica?

Nah. Ela tem aquela, a do sail away... ["Orinoco Flow", um puto de um malhão e odiadores vão odiar] Mas uma coisa que eu curto fazer nas minhas músicas é recorrer, assumidamente, a uma coisa de outra canção, desvirtuá-la...

Isso vai muito de encontro ao hip-hop. A questão do sampling...

Sim, sim. Eu no outro disco tinha uma malha de baixo que era igual a uma voz da Rihanna, por exemplo... Acho piada a esse tipo de coisas.

Retiras influências dos lados mais mainstream ou alternativos?

Ambos. Gosto muito, muito de pop. Como passei aquele tempo todo a ouvir a Antena 3 e a MTV era impossível desligar-me disso. Aliás, das coisas que demorei mais tempo a fazer foi aceitar esse lado. A primeira vez que isso aconteceu foi no Ups... Assumir esse lado da batida sexy, acho bué piada a isso.

Ficas de alguma forma decepcionado por não teres a tua música a passar na rádio, ou noutros meios?

Têm passado, à sua maneira. Eu sou péssimo a fazer promoção. Agora com a Maternidade as coisas vão começar a mudar... Eu falava disto com o Severo, o Rodrigo, com a malta em geral: é aquele efeito Cafetra, eles estão em todo o lado, é uma maneira de promover bem as coisas. Não há concerto que tu não vás ver que não te apareça alguém da Cafetra. À hora de sair à noite, normalmente estou em estúdio a fazer alguma coisa com alguém que quando tiver essa oportunidade irá promover-se, enquanto eu vou continuar aqui, a fazer um disco com outra pessoa. Não estou tão dentro desse espaço habitual de engate ou confraternização.

Como vês o crescimento da Cafetra, desde 2008 até hoje? Que achas que o potenciou?

É salutar, é incrível. Foi uma questão de condições: o que a 'Fetra é para mim, acima de tudo, é um conjunto de pessoas pouco prováveis que se encontram. É normal tu teres pessoas com as mesmas idades e gostos em vários sítios, mas não é normal teres treze, quinze pessoas tão interessadas e interessantes [no mesmo sítio], a fazer um número infinito de bandas.

É algo que já faltava à música portuguesa?

Pá, tiveste coisas igualmente importantes e interessantes. Eu acho que o que sobressai aqui é que eles são mesmo amigos, e todos eles interessantíssimos. Não são só pessoas que se foram juntando depois porque faziam todos a mesma coisa: eles já estavam juntos antes de o fazerem e, quando o decidiram fazer, tornaram-se bons a fazê-lo. Isso é que é estranho. Isso é que acontece poucas vezes na história de uma localidade, isso é que foi incrível. E depois deu tudo certo, [existiram] todas as condições. Eles são pessoas bastante sociáveis, fazem boas canções, apareceu o B [Fachada], que os ajudou imenso...

Qual é que é a importância da Maternidade para a cidade de Lisboa?

É a orfandade. Pegar nos órfãos de tudo e mais alguma coisa. Malta interessante que, por alguma razão, não fez parte de outras coisas - e acabou por precisar disso. Acabámos por perceber que o colectivo funciona melhor que o individual, foi só isso. E depois havia este lado de ajudar a malta que estava a começar. Quando o Rodrigo me falou da Maternidade, que era uma coisa de que já falávamos há muito tempo mas que ele só formalizou com o Van Ayres, mais tarde, fez todo o sentido. Quero estar nisto porque quero apoiar a malta. A ideia da Maternidade é ser uma rampa de lançamento. Agora está a formar muito o lado de agenciamento, de promotora. Mas a ideia base é ser uma rampa de lançamento - o que o Rodrigo fala, com muita frequência, é de como ninguém poderá levar a mal quando este ou aquele for para uma agência muito melhor receber muito mais dinheiro. Até porque não temos como comportar esse tipo de artistas; a ideia é levá-los a esse sítio. E a Maternidade irá continuar, é suposto ser algo que se desenvolve. Se daqui a algum tempo eu, o Rodrigo ou o Severo não fizermos parte da Maternidade, o nosso desejo é que ela continue a existir, com outras pessoas à frente. A ideia é estar sempre a ajudar no desenvolvimento artístico e musical.

Nó Do Peito

Consideras-te uma pessoa nostálgica?

Sim, até demais. Já houve alturas em que me sinto mais enraizado, e aí tento perpetuar essa ideia para que quando estou mais nostálgico me consiga lembrar dela. Não sei se é um erro, mas é a minha ideia de ser, trabalhar no limite, naquela linha meio perigosa entre estar triste e não estar. Parece que a neutralidade não existe, é sempre algo muito exagerado. Aquilo que eu disse do Lourenço tem um bocado a ver com isso: nós damo-nos muito bem quando estamos juntos mas quando falamos dessas coisas é sempre... Ele é completamente o oposto de mim! Uma vez ele disse uma frase óptima: «Adrenalina? Eu odeio adrenalina [risos]!».

Quanto tempo demoraste a escrever este disco?

Comecei em Maio e acabei em Setembro. Houve uma música que mudei na totalidade antes de gravar, a que ouvimos antes desta... O período de gravação foi mais lento, a partir de Junho, e acelerou a partir de Outubro.

É esse o tempo que tu demoras a compor, regra geral?

Neste disco fui muito mais exigente. Fiz um processo de simplificação das minhas letras no último de Cochaise, em que quis ser o mais simples possível com aquilo que dizia, e neste fiz um bocado as pazes com o lado mais poético da coisa, sem receio de ir por aí.

Qual é que é a importância do amor ou da falta dele?

Não sei qual é a importância... Para mim é motivo de apropriação lírica ou poética.

Até porque muitas grandes canções são sobre o amor...

Sim, mas não é só falar de amor. O amor está em tudo o que fazes, é inevitável, ou mesmo a falta dele. Seja num trabalho que adoras ou num que odeias. A maneira como fazes as coisas tem a ver com a tua relação com aquilo de que gostas.

Fala-me da importância das tuas tatuagens.

Esta [número do bilhete de identidade, pulso esquerdo] tem a ver com a minha crença no desenvolvimento das pessoas, a maneira como chegámos, o que acaba por estar resumido no nosso país. Mas podia ter aqui o meu número de passaporte em vez do número do B.I.. Não é de todo uma coisa género eu ser um número, sou só mais um dentro desta gente toda... E esta [corrente de corações, pulso direito] acaba por ser um bocado o complemento da outra.

Consideras-te uma pessoa patriota?

Não. Considero-me um amante de espaço. E acho que isto é uma benesse. Acho que já fizemos muita asneira mas continuamos sempre a tentar resolver. Não digo os altos líderes dos capitais, e políticos... Eu sou da opinião de que as pessoas que vivem a vida que é real, e não aquela vida estranha de quem tem o que não existe, que não faz as coisas com intuito maldoso, mas sim pela necessidade. São sempre coisas que te levam àquele estado de miséria que te tornam uma pessoa pontualmente má. Custa-me um bocado a ideia de que tu pensas em fazer mal.

Ligas à política?

Ligo ao estado das coisas, não às facções políticas. Gosto de estar a par e de discutir política, mas não sou minimamente partidário.

Transpondo isso para a tua realidade enquanto músico: achas que a classe política poderia fazer mais por aquilo que se está a passar não só em Lisboa mas no país inteiro, artisticamente falando?

Pelo contrário: eu sou completamente adepto de que se acabe com os subsídios às artes. Acho que as artes é que têm que aprender que isto não é feito de um momento para o outro, aprender a serem auto-suficientes. Uma das coisas que eu tenho falado com a malta, aquela cena dos cartões de alimentação - que já há, já várias empresas pagam o subsídio de alimentação com esses cartões -, transpor isso para o consumo cultural.



Como em Itália.

Exactamente. É um poder facultativo que tu tens mas que ao mesmo tempo está direccionado: podes usar no que quiseres, mas é para o consumo de arte. Sou completamente apologista disso. É uma maneira do Estado conseguir realmente ajudar. Outra maneira seria através de apoios às empresas, em que seriam estas a ajudar companhias de teatro, orquestras, o que fosse, através de incentivos. Benefícios fiscais, por exemplo. Era uma maneira de não ser o Estado a dar o dinheiro, mas sim a empresa a decidir a quem o dar. Esse lado de não ser o Estado a fazer a triagem também é muito importante, porque quando é o Estado a dar os incentivos ao cinema, ao bailado... Acaba por os dar sempre aos mesmos, e torna-se igualmente discutível. É mais interessante que tu dês esse poder às pessoas. Pode ser incentivado pelo Estado, mas é mais interessante que seja feito dessa forma.

Um pouco como levar o DIY ao extremo.

Exactamente. Faz todo o sentido que assim seja.

Telhados De Vidro

Tens telhados de vidro?

Claro.

Quando produzes o disco de alguém, há algum momento em que penses "não vou criticar porque se calhar também faço isto de forma errada"?...

Sim... Normalmente há um momento na discussão em que digo "pá, o disco é teu". E não é de uma forma condescendente. Nisso eu e o Severo temos formas muito distintas de trabalhar, enquanto produtores. Acho que tanto ele como eu aprendemos muito um com o outro. Ele é um gajo que gosta de levar o perfeccionismo a um ponto muito alto, mas em função do seu critério; e eu gosto que a coisa seja perfeita pelo critério do artista... Portanto, chega a um certo sítio em que eu prefiro que a pessoa assuma o que está a fazer. Eu levo o processo todo ao melhor porto possível mas chega uma altura em que faz sentido que a pessoa assuma a fragilidade das coisas. E isso é interessante - torna-se mais pessoal, para o próprio artista.

Quais é que são as tuas maiores influências, para lá da música?

Acho que sou muito impressionista na música que faço. Lautrec e Van Gogh são das minhas maiores influências imagéticas. A nível literário, o [Oscar] Wilde e o [Jorge Luis] Borges.

Que andas a ler?

Um livro que se chama Lua Sim Ou Não. Escrito pré- e pós- Apolo 11. São só ensaios de imensos pensadores da altura, daquilo que eles achavam que era a importância de ir ou não à Lua, sobre os gastos que se tinham... Criticavam muito a questão de se gastar demasiado dinheiro quando se devia era tentar trazer paz ao mundo, uma coisa assim muito básica a nível de ideologia, mas que acaba por ser muito interessante.

Que te parecem os teóricos da conspiração que dizem que o Homem nunca foi à Lua?

É-me indiferente. Mas neste livro a piada é que todos eles assumem que o Homem foi. Agora, se foi ou não... É possível que não tenha ido, até pode não ter ido naquela altura. Mas já foi trazido o que se queria trazer da Lua, que é o comprovativo de que aquilo não é habitável. À parte isso, o que se fez depois já está mais do que comprovado, senão não tinhas telemóveis... Todos os passeios que se fazem à volta da estratosfera, e os satélites que estão montados para que isto funcione como funciona hoje em dia, comprovam-no. Não há discussão. A questão da Lua é irrelevante.

E quanto à malta que diz que a Terra não é redonda?

Pois, pá, não sei... [risos]

Falaste do Van Gogh. Alguma vez pensaste em estudar Belas Artes?

Só desisti disso quando comecei a fazer teatro... Quando comecei no teatro, decidi que não ia continuar a pintar, pelo menos como principal função artística.

O teatro também é uma influência na tua música? Alguma peça específica?

[São influência] Várias coisas que foram importantes. Quando faço a retrospectiva do meu ano, faço-a sempre a tudo o que vi, ouvi, não só à música. Lembro-me perfeitamente de ter ido ver, há dois anos, um espectáculo do Miguel Moreira, que se chamava Pele, e que foi das coisas mais avassaladoras que eu vi! Essa peça marcou-me tanto quanto marcou a primeira peça que eu vi em miúdo. O mais normal é que quando te apaixonas artisticamente por uma coisa já nada te marque tanto, mesmo que depois vejas algo muito melhor. E essa peça foi um relembrar daquela sensação do "sublime"...

Farias a banda-sonora de uma peça de teatro?

Já o fiz! Fiz a banda-sonora para A Menina Do Mar, para o Teatro da Terra, da Maria João Luís. Foi engraçado. Só que eu queria fazer uma coisa muito à base de drones, e depois acabou por ter que ir para outro lado... Por ser uma peça infantil, ela acabou por ficar um bocado assustada com aquilo. Eu tinha a ideia de criar um tema que se ia alterando ao longo da sua duração, mas que estava sempre constante, e trabalhei numa coisa muito à base de delays, pitch shifting, criava sensações de ondas do mar... Só que depois começou a ficar demasiado pesado e pediram-me uma coisa mais musical. E já fiz a banda-sonora, com o Severo e o Alex, do programa do Herman. Tivemos durante muito tempo uma empresa de jingles, acabou por não dar nada.

Subo A Montanha

De que é que depende uma boa queca?

São sempre melhores quando se repetem, quando o fazes mais vezes com a mesma pessoa. Há óptimas quecas só de uma noite, mas geralmente é melhor quando duas pessoas se apropriam uma da outra e se começam a conhecer melhor...

Há que criar ambiente, ou acontece espontaneamente?

Acontece quando há tesão. E, às vezes, quando não há.

E quanto a ouvir música durante o sexo?

Também gosto. Mas não a minha própria música, isso é só constrangedor. Porque a letra está na cabeça... Também já me aconteceu estar a fazer amor com uma namorada que eu tive e de repente começar a tocar Cão da Morte, e eu tive que ir mudar...

Não percebo porquê, a música do Cão da Morte é extremamente sensual.

É, mas não pode estar ali um dos meus melhores amigos, não é suposto... Sou adepto de threesomes, mas não quero é que apareça ali um amigo sem bater à porta.

E quanto aos melhores locais onde o fazer?

Há vários locais bons, mas sou adepto da casa. É o local onde as coisas podem ir mais longe. Fora de casa tem só a ver com a tesão da situação em si.

Já Não Vou Sair Daqui

És uma pessoa propensa à porrada?

Não. Sinto-me mais afectado quando é com gente próxima. Quando andei à porrada foi só porque a situação estava agressiva para com alguém próximo. A última vez que andei à porrada não conto porque não quero, mas antes disso tinha sido em Lagos, por causa de um amigo meu, o Fernando, que já tocou em Cochaise. Coisas de copos. O Fernando estava completamente fora de si e eu senti que o que se tinha passado ultrapassou os limites e, pronto, envolvi-me eu à pancada com o outro gajo.

Se te abordam na rua com um tom mais ríspido tendes a ignorar?

Eu falo muito. Acho que me torno chato [risos]. No outro dia aconteceu-me uma com o Cão, no dia do concerto de Flamingos, no Lounge. Estávamos cá fora a fumar e apareceram dois gajos a pedir dinheiro ou cigarros. E eu disse: «cigarro não te dou, e dinheiro não tenho»... Ele estava a insistir, a insistir, e eu a retribuir a insistência, até que ele me disse: «o karma é fodido, man». E começou-se a ir embora. E eu chamo-o e digo «man, isso não é bem assim, o karma não é fodido quando tu não tens mesmo, se eu não tiver dinheiro o karma não pode ser fodido de volta»...

Sendo esta a última faixa do disco, como é que achas que um disco deve encerrar? Deve manter a toada das anteriores ou agir como uma espécie de fade out?

Normalmente faria em fade out, mas a temática desta música é totalmente de fecho de disco. Ou seja: lanço um disco que acho que está óptimo, e acabo com uma música em que digo que cheguei finalmente a um sítio.

Como é que comparas este disco aos outros trabalhos que já fizeste?

Acho este melhor. Mais aguçado, mais certo, menos preocupado. Foi onde eu levei mais longe uma ideia que já tinha tentado introduzir no outro EP e em Cochaise, mas um bocadinho em vão. Uma ideia de balanço doloroso, ou nem isso, mas de algo que custa. Como se fosses o Son Gokou e estivesses a treinar com pesos nos pulsos e nos tornozelos...

Os discos devem ser concisos em termos de duração, ou devem durar mais que uma hora?

Se o conseguires fazer... Hoje em dia é difícil, porque há tanta coisa boa para ouvir, e a malta está com um défice de atenção maior. É natural que tu queiras expor o que tens para expor mais rápido. Estamos naquela fase em que há aquelas entrevistas de elevador, em que a malta tem que expor aquilo que tem para oferecer no tempo que leva um elevador a subir... E acontece o mesmo com os discos. Está a ficar tudo muito parecido com a fase "editora de singles", porque como voltas a comprar músicas em avulso a ideia de ter um single forte volta a ser tão importante como o era antes. Passámos uma fase em que os músicos sentiam a obrigação de ter discos incríveis, por inteiro.

Assim sendo, fazeres um disco não será um bocado contra-producente?

Sim, um bocado. Mas continua a fazer sentido para quem o faz. O caso dos Flamingos, em Portugal, é um caso de sucesso da ideologia single. Perde-se na conversação, mas sais a ganhar com outras coisas. É só a metamorfose desta maneira de fazer as coisas. Vamo-nos adaptando à forma como acontece. Acho que o formato single ainda não está totalmente a ganhar, mas os EPs são a coisa que mais se faz. E eu acho que têm um tamanho muito porreiro. É uma maneira fácil de conheceres algo.

Chama [tema que ficou fora do disco]

Costumas cortar muita coisa quando estás a fazer um disco?

Sim, sim. A "Chama" cortei já gravada - normalmente corto antes de gravar.

Não tens, portanto, uma espécie de "arquivo", onde vais guardando o que sobrou dos trabalhos anteriores...

Não, isso vai desaparecendo. Porque, normalmente, são só esboços de músicas. Ou é uma música que é um esboço na temática, ou na estrutura e na forma... Mesmo em Cochaise tirávamos sempre músicas. Neste disco fiz praí umas 16 músicas e outras tantas letras que também não usei.

Onde é que costumas apontar as tuas letras?

Actualmente tenho estado a escrever no telemóvel, porque é um bocado novidade... Normalmente é no caderno.

És adepto da selfie?

Sim, estou a criar toda uma imagem da selfie ao canto...

Que é que achas do Instagram do Cão da Morte?

Acho que já esteve mais activo e acutilante. Mas ele é um vasto conhecedor.

Tirarias uma selfie com ele em que estão ambos de tronco nu?

Já tive essa discussão com o Silas, na net. Está mais que provado que eu já mandava o tronco nu nas fotografias antes do Cão. Até foi essa a capa do meu EP... Há inclusive um cartaz de um concerto no Chapitô em que ele está vestido e eu estou de tronco nu.

Para rematar: quando sai o disco, e quando é que o apresentas ao vivo?

Sai a 23 de Março. Apresento-o ao vivo no dia 3 de Abril com acompanhantes de luxo na Escola das Gaivotas.

Vais andar em tour com ele? v Estamos a tratar disso. A dificuldade será levar a banda, mas é difícil puxar orçamentos.

Onde é que gostavas mais de tocar?

Olha, na Lua... Mas não sei: apetecia-me tocar num sítio qualquer que me deixasse nervoso. E isso pode vir em qualquer altura ou situação.

Quem é que gostavas que abrisse os teus concertos?

O Lourenço Crespo. A Sallim. O Jasmim, que o vai fazer. Gostava de abrir para as Pega Monstro... Não sei, a proximidade é tão grande que a cena tuga já só precisa de crescer a nível financeiro. Objectivos de estima pessoal já estão cumpridos.

E internacionais?

Connan Mockasin. Ou o Mac DeMarco. Ariel Pink tinha medo, ia ser só ridículo...

Achas que o Mac DeMarco alguma vez vai arranjar os dentes?

Não, porque se ele o quisesse já o teria feito...
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
RELACIONADO / Filipe Sambado