ENTREVISTAS
Ava Rocha
Não vai ter samba
· 16 Nov 2015 · 16:36 ·
Fez cinema, fez teatro e faz música. É filha de um dos maiores cineastas brasileiros de todos os tempos, Glauber Rocha, e de Paula Gaitán, também ela cineasta. A arte está nos genes de Ava Rocha, mas está sobretudo no pensamento. Apesar da morte prematura do pai - apenas dois anos depois do nascimento de Ava -, a ligação subsistiu através da perpetuação do pensamento de Glauber. "Na coragem, no risco, na liberdade, na ética, na estética", para citar Ava. Na música, a artista multidisciplinar iniciou-se com a banda homónima, que entretanto se dissolveu, cujo lançamento do único disco, Diurno, aconteceu em 2011. Mais recentemente lançou o primeiro álbum a solo, Ava Patrya Yndia Yracema (2015), que juntou o marido, Negro Leo, e mais alguns amigos, e que já garantiu a Ava diversas comparações com Gal Costa. Embora restem vestígios do passado recente da música brasileira, nomeadamente do movimento Tropicália, este é um disco do presente e, portanto, de ruptura, cuja edição foi mote, mas não um fim, para esta conversa. Fala-se de música, mas sobretudo de ideias.
© Diego Ciarlariello
Dizias em entrevista ao PÚBLICO que este é um disco muito feminino com a ressalva de que não por ser feminista. Por um lado, gostava que falasses um bocadinho mais sobre o porquê de considerares este álbum feminino e, por outro, por que não feminista?

O que tento dizer é que sou mulher e o universo feminino, as suas nuances e camadas, a sua complexidade tanto no campo real como surreal, político ou poético, existencial ou espiritual, acompanham-me, mas gosto sempre de frisar a dualidade com o masculino. Quer dizer, não acho que o universo feminino não abranja o paradoxo e complementar universo masculino. Não é feminista no sentido que não é panfletário, embora acredite e lute de forma concreta pelas questões feministas, mas a essência parte de um devir que não é racional, que está incrustado na minha existência e experiência de mulher.

No disco há um desdobramento dos teus vários papéis enquanto mulher, o que implica por si só uma reflexão sobre a questão de género, mas também sobre a tua relação com os outros. O que resultou desta meditação?

Não são bem os "papéis" da mulher, mas, como frisei acima, a própria realidade da minha existência. O disco é apenas um recorte e uma fotografia do momento em que ele foi criado, com as inspirações, acontecimentos e descobertas do momento, como por exemplo a maternidade, a minha urgência de empoderamento político, a minha imaginação poética, o meu devir espiritual, a minha relação e história com o universo amoroso e erótico, a minha paixão e por aí fora. E como esse território singular e fragmentado se conecta a um território amplo, universal, onde não sou mais eu, ou a minha imaginação, mas parte de um todo. Na verdade não penso em géneros, nem na música, nem no corpo. As coisas têm as formas que têm e seus devidos mistérios, seus possíveis desdobramentos. Defendo que o disco é transgénero. Na verdade é sair desse lugar onde procuramos encerrar-nos enquanto experiências formais e concretas, imagens reais, projecções. Somos sempre a unidade e o todo, uma complexidade infinita de possibilidades e também do desconhecido.

Curioso também que a letra "Você não vai passar de um cara / Que nunca tomou conta de mim" tenha sido escrita pelo teu marido Leo Negro, estando subjacente uma ideia de alteridade. Foi provocada ou foi espontânea?

Ele compôs a música muitos anos antes de me conhecer e quando eu escutei, e ainda mais apaixonada por ele, a música fez todo o sentido para mim. É uma canção que acho que todas as mulheres, e mesmo homens, gostariam e gostam de cantar pois se identificam, não só na perspectiva do amor, independentemente do lado em que estejam, mas porque fala do espaço temporal, onde há passagem de tempo, superação, empoderamento, etc.

© Diego Ciarlariello

Paralelamente há também um desdobramento das próprias canções em vários géneros musicais: temos pop, rock, experimentação e tropicalismo. Por que quiseste que isto acontecesse?

Não estou preocupada com o tipo mas com o sentido, com o conceito, com o espírito da coisa. Quando vou realizar uma obra procuro a sua essência e a melhor forma para ela. É por isso, entre outras coisas, que faço cinema e música e também me desdobro noutras expressões. Acredito na forma contundente das coisas, mas não as encerro nisso ou aquilo. Deixo que a própria essência se manifeste e não o contrário. Sou contra rótulos, imposições, caixinhas. Atiro-me para o abismo para depois bater as asas.

Apesar de ressoar ao clássico imaginário musical brasileiro, há um lado de fusão revolucionário, se assim lhe podemos chamar. De certa maneira propões um diálogo tenso entre passado e presente. A memória é fundamental?

É fundamental mas sempre numa perspectiva que é também arqueológica, espiritual e antropofágica. Relacionar-se com a nossa ancestralidade, história, cultura é muitas vezes perceber-se no todo e estar em constante transformação. Por exemplo no caso da cultura, que não é algo parado no tempo mas em constante movimento de construção, de resignificação. No meu caso particular, se eu me encerrasse na condição real de mulher carioca estaria estagnada. Eu vejo-me quase como um ser sem cor e sem terra, ao mesmo tempo que plena de todas as cores e todas as terras. As minhas raízes são diversas e os espíritos que me habitam são um mistério.

Não és apenas cantora, és artista. De que forma é que a tua experiência como realizadora, por exemplo, contamina a tua música e vice-versa? Talvez haja uma transversalidade estética e conceptual porque, no fundo, servem um mesmo propósito.

Exacto. É tudo isso que estou a falar. Eu vou no fluxo. Cinema não é só plano na tela. Cinema é o pensamento e a imaginação. É o território realista e surrealista. É a confusão entre as camadas e as percepções da realidade, do consciente e o inconsciente. Música também. Outro dia dei um concerto em que eu mesma operei a luz do palco enquanto cantava. Não premeditei. Como a mesa de luz estava ao meu lado, não havia técnico e as condições eram precárias, fiz o meu cinema ali, enquanto fazia música, que para mim já é ritual. Um ritual performático onde tradição é elemento, mas não condição. Onde eu posso recriar através da minha imaginação e minha amálgama, enfim… Algo alquímico, misterioso. Isso transborda até na minha cozinha, na minha vida, na maneiro como vivo, numa experiência constante. Está tudo ligado de forma orgânica. Não separo arte e vida, e tampouco tenho um guião estabelecido. Nem para arte, nem para a vida.

Falar do teu pai é falar de cinema, mas é também falar de ética como pilar do processo de trabalho. Conta-nos um bocadinho da forma como trabalhas e o que te preocupa.

Falar de meu pai é falar de estética da fome e do sonho, a política e a arte, o consciente e o inconsciente. Esse pensamento me guia. Na coragem, no risco, na liberdade, na ética, na estética. Não quero regras só invenção e que isso seja arma poética para uma transrevolução pessoal e também mundial.

© Diego Ciarlariello

Na mesma entrevista a que anteriormente me referi, contavas que houve falta de dinheiro e que sem amizade o disco não teria sido possível. Qual a tua relação com a indústria musical?

A minha relação é o fazer, é construir um campo de possibilidades que, ou resistam na nossa realidade capitalista, ou se invente um novo paradigma. Não tenho relação com a indústria porque ela não se enquadra dentro da minha perspectiva de indústria. Não sou eu que não me encaixo nela, mas ela que não se encaixa em mim. Isso já não representa mais o caminho de um artista e da sua relação com o mundo. Inclusive não faço o que faço para acumular dinheiro embora a necessidade seja uma realidade. Mas o dinheiro é destrutivo, corrosivo e eu não quero nem destruir-me, nem corroer-me. Quero inventar novas maneiras de viver cada vez consumindo menos, por exemplo, e isso não está ligado só ao facto de se ter muito ou pouco dinheiro, poder de acesso. É toda uma cultura do dinheiro que gera infinitas necessidades e, portanto, escassez para muitos e excesso para poucos.

Vários nomes novos vão chegando do Brasil: Banda do Mar, Rodrigo Amarante, Silva, Cícero Rosa Lins… É uma época especialmente frutífera na música brasileira ou é apenas resultado da condição actual em que cada vez é mais fácil fazer e distribuir música, ainda que por canais alternativos?

É tudo isso. Democratização dos meios, independência, explosão criativa, amadurecimento e colheita de frutos, reinvenção dos paradigmas, empoderamento, fortalecimento das redes, etc.

Parece-me interessante trazer à tona, ainda que de forma supérflua, a relação histórica entre Portugal e Brasil. De alguma a cultura portuguesa contribuiu para a construção da tua identidade?

Claro. Além de eu ter ascendência portuguesa, e ter morado em Sintra quando era pequena com meus pais, o Brasil é impregnado culturalmente de Portugal. Faz parte da nossa história. Para além disso admiro a cultura portuguesa e a sua terra, apesar dos erros históricos.

Estas canções são bastante plásticas e performativas até, num certo sentido. Nas actuações ao vivo, o disco transforma-se? É um disco transformista?

Sim, porque um disco é um disco. Está plasmado, eternizado. Um concerto é a resistência disso. É a possibilidade de mantê-lo vivo enquanto experiência. Assim, os meus concertos são uma transcriação musical do disco, no caso inspirado em toda a beleza e alma do disco que foi produzido pelo Jonas Sá, mas agora ao lado de Marcos Campello (guitarra), Thomas Harres (bateria, mpc, percussões), Eduardo Manso (guitarra e synths), Felipe Zenícola e Pedro Dantas (ambos no baixo), que são geniais e que labutam na construção da cena de música experimental aqui do Rio, consolidada através do Quintavant e da Audio Rebel e de toda uma rede de artistas, pensadores, produtores. E não são só do Rio… Após a realização do disco eu parti para redescobrir o disco e sobretudo criar algo novo que era o concerto. Assim, entraram novas músicas, uma construção diferente onde há outros elementos em jogo como o meu corpo, o corpo dos músicos, a luz, etc. Quando vou para o palco estou a experimentar. Por mais que domine cada vez melhor uma canção por exemplo, quero sempre correr algum risco, improvisar, descobrir algo, seja no canto, no corpo, na cena, no sentido, na política que aquilo me traz. O lugar, a cidade do concerto… Tudo incide. Para mim o palco é um terreiro, uma possibilidade de conexão, um campo de experiência e vivência, também de um trabalho já maturado, consistente, mas sempre novo e de novo. Outro dia fiz dois concertos seguidos em Salvador [da Baía] e foi impressionante a diferença entre eles enquanto percepção íntima. É muito intenso. No primeiro mergulhei e no segundo habitei.
Alexandra João Martins
alexandrajoaomartins@gmail.com

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