ENTREVISTAS
Carlos Bica
A Voz do contrabaixo
· 20 Out 2005 · 08:00 ·
Carlos Bica, o contrabaixista e compositor português que trabalha com alguns dos melhores músicos do mundo, acaba de editar um novo disco. Desta vez não se trata de um novo álbum do magnífico trio Azul, onde se junta a Jim Black e Frank Möbus, mas sim do seu primeiro disco de contrabaixo solo – Single. A editora Bor Land, propulsora maior dos indies nacionais, alarga horizontes estéticos e recebe o músico para esta aventura. A capa do disco é apropriadamente branca, provavelmente para podermos rabiscar as imagens que a música nos sugere - e são muitas porque as melodias, essas marotas, não se cansam de se insinuar. Numa agradável conversa de fim de tarde, entre goles de cerveja, Bica fala de Single, conta o seu percurso e revela planos futuros.
Porquê editar neste momento um álbum a solo?

As coisas até agora têm acontecido comigo um bocado naturalmente. Não há nada muito previsto, as coisas acontecem naturalmente e foi o caso deste álbum a solo. Eu vivo com um pé em Berlim (e o outro em Lisboa) e tive uns convites para tocar lá a solo e senti que me apetecia, que era a altura certa. Pouco tempo depois tive também um convite para gravar nos estúdios da rádio de Berlim (RBB), de maneira que foi estar a viver o futuro no presente. E um álbum de contrabaixo a solo, com a crise na indústria discográfica, é uma daquelas coisas que não há muitas oportunidades para gravar. Foi no momento exacto.

O que o levou a editar pela Bor Land, editora conotada com o rock independente?

Era difícil encontrar uma editora neste momento interessada em gravar um disco de contrabaixo solo. Foi através do Jorge Coelho [guitarrista, Zen, Mesa, Tenaz] que me disse: “eh pá, de certeza que arranjo uma editora independente que trabalhe para ti” e apresentou-me ao Rodrigo [Cardoso] da Bor Land. E eu gostei… gostei da onda, gostei da dinâmica… Ele disse-me que o interesse deles não era necessariamente estarem limitados a uma área. E eu acho óptimo não ficarem limitados a um rótulo de certo tipo de música.

Esta união é para continuar, o trio Azul vai editar o próximo trabalho pela Bor Land?

Ainda não sei. O único senão da Bor Land é a distribuição. Os discos do Azul foram editados pela Enja, que é uma editora alemã com distribuição mundial, e é claro que o interesse de qualquer músico é que os discos cheguem ao maior número de países. E isso é uma coisa que eles [Bor Land] ainda não têm capacidade neste momento. Mas há outros projectos que quero gravar e eles vão ser daqueles com quem eu vou falar, porque até agora a nossa relação de trabalho tem sido óptima. Eu prefiro inclusivamente estar a trabalhar com uma editora independente, com poucos meios, mas onde exista um trabalho de equipa entre músicos e editora, do que estar numa major que, apesar do nome, seja Sony, Universal, etc., logo a priori não me interessa porque sei que eles não têm nenhum interesse pela música, o único objectivo é só mesmo facturar.

Single afasta-se dos trabalhos anteriores e dos padrões jazz mais comuns; arrisca aproximações à pop, à música clássica, à música antiga, à música contemporânea. Como é possível conciliar tudo isto?

Eu acho que isto já é um bocado a minha característica: abordar vários tipos de música e tentar que tenha a minha assinatura, que a minha personalidade esteja presente, independentemente de ser uma composição minha ou um tema popular ou uma canção medieval - são coisas que me tocam e que não estão ligadas ao compositor, à época ou ao estilo. No jazz não é propriamente o facto de ser jazz que me agrada em especial, normalmente aquilo de que gosto no jazz é o músico – gosto deste músico que tem um rótulo de jazz, mas gosto de músicos e compositores de áreas completamente diferentes. Eu tenho uma expressão para definir isso que é: “deixar a porta aberta”. E quando as coisas me tocam, passam de certa maneira a ser minhas; assimilo estas coisas que me tocam. E depois trata-se de dar um formato a essas canções/composições de maneira a não se sentir que de faixa para faixa se está a mudar de estilo – é a função do músico conseguir uniformizar os vários universos. Por outro lado tenho formação de música clássica, pop e rock foi com o que cresci, o jazz e a improvisação conheci mais tarde e eu vejo-me num universo onde todas estas linguagens coexistem.

O booklet do CD é embelezado com um conjunto de fotografias e, tal como acontece com o último trabalho de Bernardo Sassetti (Ascent), há uma forte ligação da música com a imagem. A sua música pressupõe a existência de um complemento visual?

Eu acho que as minhas músicas têm um bocadinho de cinema…neste caso eu dei mão aberta ao Pedro Cláudio, um fotógrafo reconhecido pelo seu trabalho, que é um grande amante da música e é daqueles amigos com quem eu me entendo especialmente bem. Quando o convidei para fazer a capa ele perguntou-me como se chamava o álbum, disse-lhe Single e ele respondeu: isso tem mesmo que ver, que eu estou single neste momento! [Risos.] Quando se separou da companheira fez uma viagem ao Brasil de maneira que é um bocado o filme dele…mas com ele estou à vontade, porque sei que tem especialmente bom gosto e entendemo-nos às mil maravilhas. Por outro lado é óptimo hoje em dia que os CDs, que são copiados, tenham uma mais valia, que é uma maneira de se conseguir que as pessoas optem pelo objecto original. Para além disso, como um disco a solo não é uma coisa que se faça todos os dias, queria que fosse uma joiazinha, uma coisa especial – e fico contente isto por ter acontecido.

A música de Single sugere inúmeras imagens - alguns amigos já me falaram em coisas como “bailarinas imaginárias em trajes rosa púrpura” e “frangos ululantes à beira-rio”. Estas imagens vão de encontro àquilo que idealizou?

[Risos.] Qualquer imagem é óptima! Até uma sujeita a fazer strip-tease…eu próprio não faço uma associação da música a imagens concretas. Eu tento mais focar estados de espírito, sentimentos. Se conseguir documentar esse sentimento através da música depois esse sentimento no ouvinte irá despertar imagens, que poderão variar de pessoa para pessoa ou conforme os estados de espírito.

Fez uma versão de “Paris, Texas”, para uma compilação lançada no Dia Mundial da Música. Porque é que a interpretação de música de outros autores é uma experiência rara para si?

Já tem acontecido… No último disco do Azul o título, “Look What They've Done To My Song”, é uma canção da Melanie, uma cantora do tempo do Woodstock. Não ando à procura de canções para interpretar, mas às vezes acontece, como foi o caso desta canção. Estava a brincar ao piano e de repente vi que me lembrava da minha infância, fiquei com ela na cabeça e resolvi fazer a minha própria versão. O primeiro álbum do Azul tem a “Canção de Embalar” do José Afonso, outra música de que gostei imenso da melodia e também fiz a minha versão. Mas as coisas vêm ao encontro, não vou à procura. No caso concreto do “Paris, Texas” o convite foi feito uns dias antes da gravação. Já tinha visto o filme, há muito tempo, mas só depois de voltar ouvir a versão original é que pensei: “é fácil”. Mas depois optei por fazer vários overdubs (vários contrabaixos, com pizzicato, com arco) e depois aquilo tomou um outro carácter, acho que ficou um bocadinho “Paris, Xangai”.



Poderemos dizer que Portugal é um país de contrabaixistas, já que os expoentes do jazz nacional se dedicam a este instrumento?

De facto é curioso, mas o motivo não sei exactamente… Houve bons professores de contrabaixo, o que naturalmente ajuda ao músico ter uma boa formação.

Quais são os planos para o futuro do projecto Contra3aixos [n.r.: composto por Carlos Bica, Carlos Barretto e Zé Eduardo]?

Vamos gravar um álbum em Fevereiro e vamos ter vários concertos. Vai ser mais um desafio, porque nós somos os três completamente diferentes – tanto na maneira de abordar o instrumento, como nos gostos musicais. Penso que o desafio vai ser pôr os três, com as personalidades diferentes, lado a lado - não podemos pensar como uma orquestra, onde há três instrumentos iguais, cada um a tocar uma melodia, a personalidade de cada um tem de estar presente. Mas ainda eu estou para saber como vai funcionar. Já tivemos um concerto e foi interessante de maneira que penso que a questão se há-de resolver.

Qual será o futuro do trio Azul, com Frank Möbus e Jim Black? Haverá novo disco?

Já está gravado. Aquele que será o quarto álbum foi gravado depois da nossa tournée em Maio, está agora em fase de mistura. Conta com a presença de um DJ, o DJ Ill Vibe, que é filho de um dos pais do free jazz europeu, Alexander Von Schlippenbach. A princípio estava um pouco de pé atrás, para evitar comentários do género “ah, agora é moda e tal”, mas depois de ver um concerto com pai [n.r.: Von Schlippenbach] e filho [n.r.: Ill Vibe], músicos de gerações e linguagens diferentes, a comunicar com tanta fluidez, fiquei completamente convencido.

Porque é que voltou a promover o projecto Diz, com a cantora Ana Brandão, cinco anos depois do lançamento do disco?

Nós temos tocado, todos os anos temos uma tournée lá fora, só em Portugal é que é raro tocar. O Diz é um projecto completamente diferente. É uma formação que permite uma certa música de câmara mas também pode haver improviso total, pode haver um lado popular, e tem a componente de teatro pelo facto de a Ana Brandão ser actriz - e isto é algo que nos últimos tempos tem sido mais explorado. Só que é daqueles projectos que, por ser difícil de rotular, sobretudo em Portugal, não teve aceitação fácil.

Porque é que, entre tantos instrumentos, escolheu o contrabaixo e enveredou pelo jazz? E qual o papel da formação clássica?

Eu comecei pela formação clássica mas já consciente que não queria ser músico de orquestra. A ligação ao jazz começou quando estive pela primeira vez no Festival de Jazz de Cascais, estava perto do palco, senti a vibração dos músicos, foi isso que me despertou para o jazz. E comecei a aprender contrabaixo por mero acaso – tive um baixo eléctrico nas mãos uma semana antes. Tinha uma banda de garagem e tocava um bocadinho de guitarra, mas como já havia um guitarrista que tocava melhor do que eu (que era o José Peixoto) passei para o baixo eléctrico - mas não achei piada nenhuma àquilo. Pouco tempo depois, quando fiz 18 anos e entrei para a universidade, ia inscrever-me num instrumento mas ainda não sabia qual. Fui espreitar o contrabaixo e quando ouvi no auditório o professor [n.r.: Fernando] Flores a praticar, fiquei fascinado – ele por sua vez tinha estudado com o melhor contrabaixista que na altura existia, em Viena de Áustria: Ludwig Streicher, que era um solista impressionante. De maneira que ter chegado ao contrabaixo foi um feliz acaso.

Quais são as suas referências no contrabaixo jazz?

Em primeiro lugar foi Charlie Haden. Depois Mirouslav Vitous, com quem também tive umas aulas. E outro de quem também gosto muito é Marc Johnson. Estes serão os três contrabaixistas de eleição. Por acaso são todos brancos (não procuro ser racista, como é evidente), penso que será sobretudo pela aproximação ao instrumento pelo lado melódico. Não escolhi o contrabaixo por fazer parte da secção rítmica, escolhi o contrabaixo para tocar melodias. É claro que cedo descobri que a sua função no grupo é de suporte harmónico e rítmico, mas nunca foi isso o que me deu especialmente gozo. Daí ter escolhido três músicos que são muito melódicos.

Apesar de residir na Alemanha, deve ter uma opinião sobre o jazz nacional. Como vê o actual panorama e o choque entre o circuito do jazz clássico (com base no Hot Clube) e o movimento cada vez mais visível da música improvisada (centrado no Bairro Alto)?

Agora há muitos mais músicos que antigamente e é bom que haja músicos diferentes, correntes diferentes, acho isso muito saudável. Eu gosto do Hot Clube, gosto de tocar lá e não o vejo necessariamente como conservador. Acho que as correntes devem coexistir e, pessoalmente, estou sempre curioso por ouvir música diferente. Gosto de ser surpreendido, de maneira que é óptimo que existam pessoas a tocar músicas diferentes.
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
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