ENTREVISTAS
Erica Buettner
Uma americana em Coimbra
· 09 Mai 2011 · 23:18 ·
© Fábio Teixeira
Erica Buettner nasceu nos Estados Unidos, mudou-se para Paris e acabou por se apaixonar por Coimbra e por Portugal por razões que só o coração conhece - e por outras que ficam bem claras nesta entrevista notoriamente reveladora das suas intenções em relação à música. Em 2011 lançou True Love and Water, um disco de estreia que não esconde a sua admiração por nomes como Joni Mitchell, Nick Drake ou Judy Collins, referências na definição da forma como se aproxima das canções e na busca da melhor colheita de palavras para encontrar o verdadeiro significado da sua missão. Erica Buettner não esconde o seu fascínio pela Europa e por Portugal: parece conhecer já melhor o velho continente do que a sua terra natal e nos entretantos, contra todas as possibilidades, estabeleceu Coimbra como a sua base. Numa entrevista em que não quis poupar nas palavras, Erica Buettner abriu o mapa mental da sua criatividade e engenho para contar quase tudo acerca de Erica Buettner. Lê-la é conhecê-la muito melhor e o complemento ideal para o que se pode descobrir nas suas canções. E por falar em descobrir, no próximo domingo, dia 15 de Maio, Erica Buettner é a razão de viver da 5ª edição do BODYSPACE AU LAIT, no sítio do costume, à hora do costume.
És originária da costa nordeste dos Estados Unidos, depois foste para Paris e agora vives em Coimbra. Como é que raio explicas tudo isto?

Acabei de regressar de alguns espectáculos na Itália e esta citação do livro Italian Journey de Goethe anda na minha cabeça: “…I am a voluntary exile, a wanderer by design, unwise with a purpose, everywhere a stranger and everywhere at home, letting my life run its course where it will, rather than trying to guide it, since, in any case, I don’t know where it will lead me”. Identifico-me com isto. Fui para Paris no âmbito de um programa de estudo no estrangeiro e tinha intenções de ficar lá um ano. Mas depois estabeleci ligações com a cidade, amizades, relações, colaborações artísticas, temas para estudar e queria ver essas coisas com mais profundidade por isso decidi ficar mais tempo (embora não tenha sido uma decisão fácil). Adorei a energia de Paris e agora posso dizer que vivi em quase todos os bairros e que conheço a cidade como a palma da minha mão. O meu tempo em Paris começou mais como uma fantasia ou um capricho, mas depois de vários anos transformou-se numa parte muito significativa da minha identidade, novas raízes entrelaçaram-se com as minhas raízes americanas. No que toca a Portugal, estou a tentar encontrar uma forma inteligente para evitar contar a minha história de vida inteira e apenas dizer que tenho uma razão mais pessoal para me mudar para cá (e não podia estar mais feliz com essa escolha). Eu acredito que todos temos uma espécie de radar para os lugares em que sabemos que podemos viver os ou sítios que não aguentamos sequer. E no caso de Portugal eu sinto uma espécie de harmonia com a cultura e o clima, a forma de viver, e sinto-me agradecida por isso. Tudo se resume ao facto de me sentir inspirada por contrastes, algo que me torna muito aberta a viver em sítios novos. Enquanto Paris é glamorosa e movimentada, Portugal é mais terra-a-terra e calmo. Enquanto Paris é cinzenta e ela própria todo um mundo, Portugal é claro e verde, com o oceano à mão de semear. A costa alimenta sonhos acordados e a sensação de possibilidades infinitas. Eu cresci no outro lado do Atlântico (muito mais para norte), mas aqui o oceano desempenha um papel maior para mim. Há um sentimento “tão longe quanto os olhos podem ver”, um espaço para preencher com a tua imaginação…

E Coimbra, é um bom berço para as tuas canções?

Esta questão lembra-me a história do meu primeiro dia em Coimbra (e Portugal em geral). Tinha sido convidado pela Lugar Comum para fazer três concertos em Portugal, e no primeiro dia do concerto de Coimbra, a minha anfitriã Susana estava a mostrar-me as vistas. Tinha-me falado da guitarra portuguesa, com a qual fiquei muito curiosa porque nunca tinha visto uma. Depois ela levou-me ao café Santa Cruz na baixa e aconteceu uma coincidência: um dos empregados estava a aprender guitarra portuguesa e estava a mostrar a um amigo. A Susana levou-me até lá e perguntou-lhe se eu podia experimentar. Estava um pouco nervosa, uma vez que não tinha ideia nenhuma do que fazer – nunca tinha visto uma guitarra como aquela e eu sou muito desajeitada com as unhas de plástico que eles usam para tocar. Mal consegui tocar e de repente um homem diz da sua mesa: “já não era sem tempo uma mulher aprender a tocar a guitarra portuguesa”. Por isso fiz uma piada e disse que ia voltar a Coimbra para a tocar. Naquela altura era apenas uma piada, não fazia ideia que viria mesmo viver para Coimbra. Neste momento lembro-me que devia tentar aprender, apesar do instrumento ser ainda um mistério para mim mesmo que esteja mais familiarizada com a forma como soa. Isto é uma forma bastante longa de dizer que sim. Adoro o fado de Coimbra e a forma como podes encontrar música em qualquer lado, os instrumentos tradicionais que são únicos em Portugal, e o papel que as canções tiveram na revolução portuguesa – enquanto escritora de canções não posso senão sentir-me encantada por tudo isto. Quando cheguei a Coimbra tinha acabado de fazer dois discos (True Love and Water, assim como o álbum com a minha nova banda The Resident Cards que será lançado em Janeiro de 2012), por isso estava com disposição para compor. Tenho a certeza que Coimbra deixará uma marca nas minhas canções, ainda não sei como no entanto.

© Fábio Teixeira

Tens planos para ficar em Portugal no futuro?

Sim, tenho. Considero Portugal a minha base. Viaje para onde viajar, sinto-me sempre bem quando volto a Portugal.

Podia perguntar-te como uma rapariga Americana se sente em Paris mas prefiro perguntar-te então como é que uma rapariga americana se sente em Portugal…

Bem, este é o tipo de pergunta que é difícil de responder, porque sempre que te mudas para um sítio novo, o teu ponto de partida é aquilo que imaginas que o sítio vai ser (o que foi o caso de Paris para mim). Muito rapidamente, as noções pré-concebidas são filtradas e substituídas por experiências concretas, e acho que demora vários anos até realmente conheceres um sítio e a forma como te inseres nesse sítio. Como este é o meu primeiro ano em Portugal, neste momento tudo é novo, mas posso dizer que os portugueses fazem-me sentir à vontade. São muito calorosos, e é fácil encontrar amigos. Artisticamente, há uma cena muito interessante – existe muita criatividade e a sensação que as pessoas querem experimentar coisas novas e trabalhar juntas. Gostava apenas de conseguir falar português um pouco melhor. As fonéticas! Mesmo que soubesse o que dizer na minha cabeça, o que sai da minha boa soa totalmente mal… acho que vou demorar alguns anos.

Já tiveste tempo de ouvir alguma música portuguesa? O que é que conheces até agora?

Sim, encontrei muita música portuguesa maravilhosa. Foi apresentada ao José Afonso, e quando soube a história dele lembrei-me da forma como os músicos folk nos Estados Unidos usavam a música como forma de protesto - o Woody Guthrie, Pete Seeger, a Joan Baez. É um espírito semelhante e mostra-nos o surpreendente poder das canções para juntar as pessoas e efectuarem-se mudanças. Este ano vi o Sérgio Godinho com a sua fantástica banda, do qual gostei imediatamente. Estou também totalmente viciada no António Variações, que era um artista incrível. É uma pena que não haja mais gravações dele. Vi o documentário que o António Ferreira fez sobre os Humanos. Adorei o documentário e fiquei tão feliz por ter legendas em inglês. Espero que muitas pessoas dentro e for a de Portugal tenham a oportunidade de ver esse documentário, para que entrem nos Humanos e, através deles, no incrível talento do António Variações. Também tenho seguido o Norberto Lobo. Já o vi em concerto duas vezes. Para além da técnica na forma como toca guitarra, a música dele tem uma verdadeira alma, uma história para contar. O trabalho dele é incrível.

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Como é que te sentes em digressão pela Europa e a conhecer a Europa cada vez melhor?

Cada país é tão diferente. Às vezes nem consigo acreditar nas coisas que vi, até regiões de países são diferentes. Mas é isso que adoro na Europa, a qualidade imprevisível. Não sei ainda como é andar em digressão pelos Estados Unidos, espero ter essa oportunidade em breve, mas até agora as minhas experiências na Europa têm sido extremamente enriqueceras. Também acho que desde que toco muito ao vivo a solo e não tenho necessidades técnicas complicadas, as pessoas conseguem contratar-me para salas ou locais mais únicos, mais ou menos fora de mão, pouco explorados. Em Catanzaro, na Itália, por exemplo, toquei num museu numa exposição de arte. O artista, Alessandro Russo, estava lá e toquei uma canção em cada sala da exposição… foi um dos meus concertos favoritos.

Sei que acabaste de lançar o teu disco em Portugal. O que é que nos podes contar sobre ele?

O meu primeiro álbum chama-se True Love and Water e é uma colecção de canções que compus e gravei em Paris. O meu produtor é um escrito de canções francês chamado Pierre Faa, e fizemos o disco no estúdio caseiro dele em Montmartre. Todas as canções são composições minhas, excepto a última chamada “A Tale of Norstein”, que é do Stefanos Kotsanis. Toquei guitarra, bando e um pouco de flauta no álbum, e depois um grande grupo de músicos fizeram o resto. Agora estamos todos distantes e a viver em sítios diferentes por isso quando eu toco ao vivo normalmente toco a solo que é como as canções existiram no seu estado original. Acho que o som do álbum anda perto de ser avant-folk, existe algo do passado mas existe também algo do presente. E True Love and Water não é apenas uma faixa do álbum, mas também o tema: é uma espécie de relação entre os nossos ideais e a sobrevivência, o desejo a interagir com a necessidade… como é que atingimos o que precisamos e o que queremos, e como é que nos agarramos a ambos ao mesmo tempo?

Este é o disco que sempre quiseste lançar? Achas que já sabes tudo o que tens de saber para gravar um disco?

Estas canções são mais difíceis à medida que vamos avançando! Primeira parte: honestamente, nunca quis lançar nada em particular, porque eu sinto que a arte se resume à exploração. Há coisas que vagueiam ao nosso redor que continuam por expressar até ao momento em que as resgatamos, e nesse aspecto True Love and Water corresponde a uma altura muito especifica da minha vida, um estado de humor, um conjunto de questões que estava a ponderar e a trabalhar com. Compor e gravar um álbum ajudou-me a dar palavras e sons ao intangível, e isso é uma coisa maravilhosa porque agora posso seguir em frente para outra coisa. A segunda parte da tua pergunta: não, claro que não. Acho que a reinvenção é tão importante como a coerência, e estou bastante confiante quando digo que não vão ouvir a mesma coisa de mim duas vezes.

© Fábio Teixeira

Evocas constantemente a influência de Joni Mitchell, Nick Drake ou Judy Collins na tua música. Como é que eles entraram na tua cabeça e na tua zona de influência?

Porque mais do que tudo estes artistas que mencionas, entre outros, foram verdadeiros trovadores. Sozinhos com a guitarra, com o poder das suas vozes e com a sua forma de tocar e com as suas palavras, eles conseguiam lançar um feitiço e levar-te para outro mundo. ao mesmo tempo, neste espírito trovador, dão eles dão uma voz e uma banda-sonora ao mundo que todos partilhamos a experiência de viver. É isso que a que sempre aspirei, e uma nota especial sobre a Joni Mitchell – ela elevou tanto a fasquia para outros escritos de canções. Independentemente do gosto pessoal de cada pessoa, a Joni Mitchell “puts the writing in songwriting” [na falta de tradução justa]. Esse foi sempre o meu ponto de referência. Escrevo canções por causa daquilo que tenho para dizer. Não é apenas pela música, não apenas para cantar, não por pensar que é uma grande profissão (tem definitivamente os seus altos e baixos). É mais por causa das palavras, da poesia, em combinação com a música. É uma forma incrível de expressão. E tem bastante eco em mim.

Como é que começaste a fazer música em primeiro lugar?

Comecei a cantar em tenra idade, na maior parte das vezes em musicais e em coros na escola. Também cresci a tocar flauta, por isso a música teve um grande papel na minha educação. Mesmo assim, era muito claro para mim que não ia acabar por ser uma cantora de ópera ou uma estrela na Broadway. Demorei algum tempo até perceber o que me caía bem. Quando tinha dezasseis anos, a minha melhor amiga e eu decidimos aprender a tocar guitarra juntos. O pai e o irmão dela tocavam ambos, por isso ela aprendia canções e depois ensinava-me. Continuamos ambas assim, e assim que aprendi a tocar alguns acordes, comecei a escrever canções. Fico envergonhada quando penso em algumas daquelas primeiras canções, apesar de algumas terem aguentado o teste do tempo. Escrevi a “Under the Radar”, a terceira canção do meu álbum, quando tinha dezoito anos.

Tens também uma nova colaboração com a escritora de canções nova-iorquina Dana Boulé e o baterista Boris Gronemberger num projecto chamado The Resident Cards, dos quais já falaste. É muito diferente do teu trabalho a solo?

Sim, e fico muito feliz por falar-te disto. A Dana Boulé vive em Paris há pouco tempo. Ela é de Nova Iorque, onde é a vocalista de bastantes bandas punk entre outros projectos incluindo o seu álbum incrível a solo, Going, Gone. ela é uma pessoa incrível e um dos melhores músicos com quem tive o prazer de tocar. Conheci-a através de um amigo em comum, Liam Carey (dos Secondstar, uma banda na qual toquei quando ele vivia em Paris). A Dana e eu estávamos a tocar no mesmo circuito de clubes em Paris, mas os nossos espectáculos não podiam ser mais diferentes. Eu levava toda a gente para um espírito de meditação, e a Dana levava as pessoas a estalar e a gritarem coisas. As pessoas não conseguiam acreditar quando dissemos que íamos trabalhar juntas, uma vez que parecemos totalmente opostas. No entanto, quando começamos a compor, apercebemo-nos que tínhamos muito em comum, especialmente a visão daquilo que queríamos fazer juntas. O álbum que fizemos soa completamente diferentes dos nossos dois álbuns a solo. Existem muitas harmonias vocais – a Dana adicionou piano e acordeão e eu adicionei guitarra e banjo. Depois o Boris Gronemberger, o nosso amigo da Bélgica, adicionou a percussão. Também vale a pena ouvir o trabalho dele, com a sua magnífica banda de sete pessoas, chamada V.O. Estamos muito orgulhosos com o álbum. Para mim é muito honesto – é sobre renovação e deixar o passado para trás. Além disso, é óptimo dar concertos com a Dana, porque temos uma dinâmica totalmente diferente em palco e é muito divertido ver isso combinar.

É uma experiência natural ou catártica a de tocar ao vivo para ti?

Depende – ambas, alguns concertos são mais catárticos que outros… A catarse é boa, mas é provavelmente a excepção para a regra “uma coisa boa nunca é demasiado”, considerando aquilo pelo qual tens de passar para lá chegar…
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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