ENTREVISTAS
Vashti Bunyan
Mãe de todos
· 10 Mai 2010 · 19:20 ·
© Whyn Lewis
Durante as escassas entrevistas que a registam em viva voz, Vashti Bunyan parece muito mais confortável a cantar do que a oferecer respostas concretas, embora também o faça com a classe de uma verdadeira senhora. Entre revelações e episódios partilhados, a naturalidade imensa de Vashti Bunyan sobressai realmente quando a encontramos num vão de escada a fazer de “17 Pink Sugar Elephants” um pequeno cortejo melódico entretanto transformado em grande canção. E é esse tipo de naturalidade que nos leva a crer que foi a música a escolher Vashti Bunyan e não o contrário.

Tão rara inversão da lógica conhece adequado testamento num disco também ele desenquadrado dos seus dias: um Just Another Diamond Day, que, para desgosto da própria Vashti Bunyan, não singrou em 1970 provavelmente por soar tão alienado da conturbada agenda política de então. Não lhe tece qualquer crítica específica e é também por isso que ainda hoje está longe de parecer datado. Com esse aparente vazio ideológico, sobra-lhe terreno para lindas ilustrações pastorais da rotina do povo (e perfeitamente apropriáveis por ele), composições enaltecidas pelo menor esforço e também pelos arranjos de Robert Kirby, que conferem contornos a essa preciosidade maior que é Just Another Diamond Day.

O final feliz, que ainda decorre, sucede-se com um atraso de 30 e poucos anos, quando uma nova vaga de músicos folk (tão alienados como Vashti) dedica a Just Another Diamond Day um coro de elogios que passa a ser impossível de ignorar. Estimulada por isso, Vashti Bunyan renasce e responde simultaneamente em duas das mais bonitas paragens musicais de 2005 (e restante década anterior): ao lado dos que a resgataram do esquecimento (Devendra Banhart, Joanna Newsom), no igualmente intemporal Lookaftering, e como singular extensão feminina dos Animal Collective, numa altura em que encerravam o excepcional ciclo Sung Tongs com um EP, Prospect Hummer, pouco aquém de perfeito na sua duração de quase 16 minutos.

As restantes páginas destes capítulos têm sido escritas com raríssimas prestações em palco. Lisboa conhecerá a sua própria sorte, quando Vashti Bunyan actuar no Lux no serão do próximo dia 13 de Maio, sem que isso implique aparato policial ou condicionamento de transportes. A primeira parte ficará a cargo do nosso B Fachada, que tem vindo também a rascunhar a sua própria lenda com um sentir que “não é p’ra toda a gente”. Ciente de que a ocasião deve ser celebrada, o Bodyspace cedeu de bom grado a palavra a Vashti Bunyan para que se pronunciasse sobre os seus dias de diamante.
Em que ponto se encontra o disco que começou a desenvolver há algum tempo?

Encontra-se ainda numa fase muito embrionária. É muito diferente escrever e gravar as minhas demos com a noção de que, desta vez, as pessoas escutarão as músicas. No passado, nunca sabia se as minhas canções seriam escutadas ou não. E sempre fui lenta.

Sei que colaborou recentemente com Andy Cabic, dos Vetiver, na gravação de novos temas. Como aconteceu isso?

Sim, gravei algumas canções novas com o Andy Cabic e o Thom Monahan, em Los Angeles. Temos estado muito ocupados desde então, viajamos muito e raramente nos encontramos no mesmo continente. Ainda assim, podemos trocar algumas ideias por e-mail, o que é sempre muito divertido.

Após lidar com um intervalo tão grande, como aquele que sucedeu o lançamento de Just Another Diamond Day, é mais fácil a espera necessária até concluir um novo disco? Diria que a possibilidade de um novo disco surge na altura certa em vez der ser um objectivo perseguido?

Não faço por apressar as coisas, até porque tudo toma o seu doce tempo. Na altura indicada, estou segura de que todas as pessoas certas poderão estar juntas e prontas para concluir o disco.

Como decorreu a recente actuação na Union Chapel? Tocou algumas canções novas? Pareceu-me uma ocasião única.

Adorei esse concerto. É um lugar lindo para cantar. Sim, cantei duas novas canções. O ponto alto foi quando convidei um amigo, cujo principal instrumento é a flauta, para trazer o seu quarteto e tocar “Rainbow River” comigo, seguindo exactamente os arranjos que o Robert Kirby criou para o álbum. Foi um tributo ao Robert, que faleceu o ano passado. A sua perda despedaçou-me o coração.


Escutei uma parte do concerto na Union Chapel e devo dizer que a sua voz ainda me parece cristalina. Por mais que a questão arrisque o cliché, tenho mesmo de perguntar se adopta algum tipo de método para preservá-la daquela maneira.

Tenho muitos problemas com a minha voz, porque canto muito tranquilamente, e isso, por vezes, acaba por não resultar. Alguns cantores ficam surpreendidos com o facto de não fazer nenhuns exercícios vocais de aquecimento, mas tenho dificuldade em levar-me tão a sério. Ainda assim, descobri recentemente e por puro acaso que a pimenta-de-caiena com sumo de laranja quente ajuda mesmo a clarificar a minha voz. Espero que continue a resultar.

Adoro a forma como “Come wind, come rain” quase sempre me toca no ombro para que vista qualquer coisa e vá dar uma volta. Acredita que a necessidade de compor “canções de estrada” como essa diminuiu com a idade?

Não! A canção “Wayward” termina com as palavras All I ever wanted was a road without end e, sempre que a canto, fico com a certeza de que me sinto muito feliz por estar de volta à estrada.

Diria que Some Things Just Stick in your Mind alberga tudo o que foi gravado antes de Just Another Diamond Day ou já descobriu velhas fitas desde que a compilação foi lançada?

Tenho quase a certeza de que não há mais nada. Gostava que houvesse. Por outro lado, alegra-me estar empenhada em nova música em vez de estar sempre à procura de tesouros pedidos do passado.

Como se deu a abordagem de Kieran Evan com vista a centrar um documentário em si? Participou activamente nesse documentário? Que tal lhe pareceu o resultado?

Adicionava voz a Finisterre, um documentário do Kieran e do Saint Etienne sobre Londres, e foi assim que o conheci. Começámos a falar da minha história e, pouco tempo depois, perguntou-me se estava disposta a fazer um filme em conjunto. Esse projecto ocupou-nos grande parte de quatro anos, que serviram também para que nos tornássemos bons amigos. O filme é essencialmente dele – não exerci nenhuma intervenção editorial. Não gosto de me ver no ecrã, mas, à parte isso, acho que contou muito bem a história.

Mantinha algum tipo de interesse na banda sonora de Blade Runner – Perigo Iminente quando recebeu o convite para cantar “Rachael’s song” no Festival Meltdown? Foi obrigada a fazer alguma pesquisa?

Estive afastada da música durante tanto tempo que nem sequer conhecia a banda sonora de Blade Runner – Perigo Iminente. Sim, tive de pesquisar. O original da Mary Hopkin é extremamente belo, o que elevou o nível de exigência. Julguei que seria fácil, porque não existem letras para decorar ou esquecer. Mas não foi nada fácil.

Ainda acompanha a carreira dos Animal Collective? Atendendo a que Prospect Hummer partiu de instrumentais gravados nas sessões de Sung Tongs, gostava de saber que apreciação faz desse álbum em relação aos outros.

Mantenho-me a par do que fazem – e fico maravilhada com a inventividade interminável que continuam a demonstrar. Todos os instrumentos das três canções incluídas no Prospect Hummer foram gravados durante os três dias que passámos juntos. Nada foi retirado das sessões de Sung Tongs, embora as canções tivessem escritas nesse mesmo período.


É possível dizer que a música de Jackson C. Frank também foi desconsiderada no seu tempo, enquanto nos últimos anos tem acumulado uma admiração crescente. Eu adoro-o. Mantém algum tipo de apreciação em relação a Jackson C. Frank?

Nunca o conheci. Não conhecia ninguém muito bem, até porque era uma pessoa geralmente solitária. Tenho vindo a saber um pouco mais sobre ele e a sua música. Fico muito satisfeita com o respeito que finalmente mereceu.

Que dicas daria a alguém interessado em conhecer um pouco mais do fantástico legado de Robert Kirby?

Aconselharia a ouvir os belíssimos arranjos que faz para o Nick Drake e a compreender como isso é ainda mais impressionante se nos lembrarmos de que ele só tinha 23 anos quando os fez. O novo álbum dos Magic Numbers, The Runaway, também tem algumas canções com os seus arranjos.

Virá acompanhada por outros músicos até Portugal?

Sim, irei com o Gareth Dickson, um guitarrista e escritor de canções extraordinário, que me tem acompanhado desde que voltei aos palcos em 2006. E com a Jo Mango, que o Gareth me apresentou nessa altura. Ela também é uma intérprete e compositora de enorme mérito. Toca tantos instrumentos… Chego a pensar que não existe nada que não seja capaz de fazer. Sinto-me abençoada por tê-los comigo.

No passado, alguma vez imaginou estar onde se encontra agora como artista e mãe de família?

Sempre ambicionei ter uma família grande e vejo esse meu desejo satisfeito com os três filhos e os três filhos adoptivos. Durante os meus anos enquanto mãe, nunca andei sequer perto de imaginar que regressaria à música, quanto mais tocar em tantos países diferentes pelo mundo fora. Tenho muita, muita sorte.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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