ENTREVISTAS
Cacique 97
Eles querem tudo
· 30 Jul 2009 · 15:53 ·
Já foi dito nesta casa, e é verdade. Portugal precisava de um disco assim. Um disco que mergulhasse no legado riquíssimo do afrobeat - cunhado pelo enormíssimo Fela Kuti - e pusesse Portugal a pensar e a dançar com as suas coordenadas. Diz-se por aí, com propriedade, que ao vivo isto é coisa para abanar com qualquer sala; e nós sentimo-nos tentados a concordar, pelo menos a ver e ouvir pelo que se explora naquele que é assumido como o primeiro disco de afrobeat feito em Portugal. Dois países no centro da criação: Portugal e Moçambique trocam galhardetes e entregam um disco que apetece ter ao vivo, não fosse o afrobeat linguagem para absorver ao fruir natural da vida, ali no momento, sem intermediários de qualquer espécie. Milton Gulli, vocalista e guitarrista dos Cacique´97, trata de explicar com que linhas se fazem os Cacique´97 para que se possa perceber o que querem eles e com que intensidade.
Dizem orgulhosamente que este é o primeiro disco de afrobeat feito em Portugal. Como é que se sentem ao lançá-lo? Esperam que este seja o primeiro de muitos para o género em Portugal?

É uma grande responsabilidade. O disco de Cacique´97 vai ser sempre o primeiro do género em Portugal e esperamos ter lançado uma boa semente. Já várias bandas se dedicaram ao afrobeat em alguns temas isolados (Cool Hipnoise, Spaceboys, Philharmonic Weed e Terrakota, entre outros) mas este é o primeiro exclusivamente afrobeat. Esperamos que haja muitos mais. O afrobeat é um ritmo infinito, nunca vai acabar.

Que impacto esperam deste disco para a música portuguesa, para os Cacique´97?

Para a música portuguesa é mais uma expressão da multiculturalidade patente em Lisboa. Esperamos que os media em geral reconheçam este fenómeno não como uma moda mas como um novo elemento indissociável da música portuguesa. Hoje em dia a música portuguesa já não é só rock, pop, fado ou folclore. É altura de reconhecer isso e reconhecer a multiculturalidade como algo nosso. Para os Cacique´97 é uma forma de darmos a conhecer o nosso trabalho, espalhar a mensagem do afrobeat e se possível, levarmos a nossa música a todos os cantos do país.

Como é unir assim esforços entre Portugal e Moçambique para o lançamento de um disco? Acham que tem um valor simbólico especial?

Do meu ponto de vista sim. Eu sou moçambicano e tenho pena que pouca música moçambicana chegue a Portugal. Muita música angolana e cabo verdiana chega, mas moçambicana é quase nula. O facto de os Cacique´97 terem elementos moçambicanos é uma forma de elevarmos o estandarte da moçambicanidade e defendermos a nossa bandeira. E se fizermos com que mais pessoas se interessem pela música moçambicana melhor.


Lisboa é um factor central neste disco por ser, como dizem, um “palco do encontro de várias culturas”?

Claro. Cada vez mais. Dás um passeio na baixa da cidade e vês pessoas de todo o lado. E não são turistas, são pessoas que vivem em Lisboa. Tens brasileiros, guineenses, angolanos, cabo verdianos, italianos, chineses, moldavos, russos, romenos, indianos, etc. Lisboa é uma cidade global, como o é Nova Iorque, o Rio de Janeiro, Amsterdão ou Berlim. E no campo artístico isso nota-se mais. Tens muitas bandas em Lisboa a fazerem mistura de sons com elementos de países muito diferentes. Eu acho isso benéfico. Só nos enriquece.

Como foram as gravações do disco? Foi fácil canalizar a energia que já traziam convosco para este novo disco?

Sim, foi fácil. Os temas que gravámos já eram tocados nos nossos concertos antes. Foi uma questão de organizá-los para disco. Alguns tiveram que ser encurtados, outros rearranjados. Mas foi um processo sereno. Gravámos com alguma calma e ao longo de vários meses. A base rítmica foi gravada em Coina, num estúdio que fica quase no meio do campo. Os metais foram gravados noutro estúdio em Lisboa. E houve também algumas gravações adicionais e edições no estúdio do Francisco Rebelo dos Cool Hipnoise, que é também o nosso baixista. As misturas foram feitas no estúdio da Praça das Flores. Foi quase como juntar as peças todas do puzzle que estavam separadas e organizá-las em disco.

Trouxeram alguns vícios – bons ou maus – dos vossos projectos anteriores ou quiseram começar do zero com os Cacique´97?

Tentámos evitar os maus vícios. Somos todos músicos com alguma experiência no meio e estamos sempre a aprender com os erros. Por isso partimos para este projecto com um boa definição daquilo que queríamos ou não fazer. Não é fácil, com uma banda que tem 10 elementos, manter a organização e a objectividade, mas temos conseguido até agora porque estamos todos com as agulhas apontadas para a mesma direcção. Os bons vícios são sempre bem-vindos.

Há algum projecto em Portugal que partilhe as mesmas coordenadas musicais que os Cacique´97 ou que possam evoluir para aí? Era importante haver mais “adversários” para os Cacique´97?

De momento creio que não há nenhum outro projecto exclusivamente afrobeat. Se aparecerem mais é sempre bom. Veremos com bons olhos qualquer projecto que apareça e daremos o nosso apoio. Temos que espalhar a mensagem do afrobeat.


Participam neste disco uma série de músicos que fizeram de certa forma este disco numa espécie de celebração, numa comunidade. Acham que era assim que o Fela quereria?

Acho sinceramente que sim. O Fela ficaria muito contente se pudesse ver que o afrobeat continua de boa saúde e a crescer. Os músicos que convidámos para o disco são todos fãs de afrobeat e abraçaram o projecto com bastante convicção e empenho. A música africana é sempre uma celebração, mesmo quando fala de assuntos sérios.

Nunca sentiram a vontade de levar uma das canções para os 15 ou 20 minutos como levava o Fela? Chegar àquele estado hipnótico tão característico da música dele?

Isso acontece sempre ao vivo. As músicas, quando tocadas ao vivo, expandem-se. São mais longas que no disco. O afrobeat é essencialmente um género de música que tem que ser ouvido ao vivo. Nós não poderíamos desrespeitar esse efeito hipnótico do afrobeat. Como dizia um baixista amigo nosso: podemos estar num mau dia, mas quando tocamos afrobeat tudo isso passa. É esse sentimento que queremos passar nos nossos concertos.

Dizem que não querem perder “o lado reivindicativo e de promoção da consciência social característica do afrobeat”. O que é que vos preocupa em Portugal?

O facto de haver ainda bastante racismo, se bem que deliberadamente dissimulado. O facto de as comunidades de imigrantes terem sempre as mesmas oportunidades de trabalho e não poderem evoluir. O facto da consciência social ser apenas uma coisa bonita de se dizer mas não ser uma preocupação verdadeira. O facto de os media e o governo não promoverem a multiculturalidade com a qual só temos todos a ganhar. A mesquinhez e o sentimento de inferioridade. Um avanço tecnológico que anda mais rápido que as mentalidades. O completo desprezo pelo meio artístico. Podia ficar o dia todo nisto...

Não resisto a perguntar, a morte do Michael Jackson. Sentem que é um passo atrás na vossa própria luta, da música dita negra?

A morte do Michael Jackson teve um grande impacto em toda a gente que faz música de inspiração negra. Nunca vai haver nenhum artista com o mesmo impacto global que ele teve. Eu fui bastante influenciado pelo Michael Jackson desde a minha infância. Foi o primeiro músico que ouvi realmente e gostei. Não creio que a morte dele seja um passo atrás na luta da música negra. Pelo contrário, é mais um herói a juntar às divindades da música negra que olham por nós, como o Bob Marley, o Fela Kuti, o Marvin Gaye ou até mesmo o James Brown. O seu trabalho e influência perdura e a sua música há-de estar sempre aí para a podermos ouvir e estudar.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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