ENTREVISTAS
Cristina Branco
O caminho da Paz
· 10 Mar 2008 · 07:00 ·
Com Abril, Cristina Branco volta a surpreender. Não propriamente pela admiração por Zeca Afonso (que essa já conhecíamos há bastante tempo), mas sim porque a cantora nascida em Almeirim saiu deliberadamente, informadamente e democraticamente do seu "espaço de conforto", o fado e os seus músicos habituais. Para o retrato da obra de José Afonso, Cristina Branco recrutou músicos como Alexandre Frazão e Mário Delgado e deu-se bem com isso (com o jazz, com a companhia, com os arranjos).

Começou lá fora a dar cartas e aqui em pézinhos de lã mas agora Cristina Branco conquistou finalmente lugar merecido no panorama musical. Episódios essenciais de uma biografia que passou a correr, cheia de sucessos e conquistas. Em entrevista ao Bodyspace, Cristina Branco apresenta-se em tom confessional, livro aberto em relação às questões fundamentais da sua existência musical (ou mais do que isso). Fora dos palcos, é assim que soa Cristina Branco, honesta, transparente e perto de conseguir a paz.
Há quanto tempo trazia dentro de si esta homenagem a José Afonso?

Penso que desde sempre, sendo que não olho para este disco como uma homenagem, a música quando é tão valiosa como neste caso, não precisa de “panfleto”, basta-se a si própria, bem como o seu autor. Cresci a ouvir José Afonso e nunca recusei a ideia de interpretar o seu repertório (o meu primeiro disco Murmúrios já contém um dos seus temas).

Como é que nasce este Abril propriamente dito? Foi fácil para si escolher os temas que acabaram por integrar este disco?

É antiga a minha vontade de cantar José Afonso, mas não imaginava como poderia misturá-lo mais profusamente com tudo o que tenho feito. Mas quando surge o convite do Teatro São Luiz (em Lisboa) para realizar 8 concertos no Jardim de Inverno com o conceito de “homenagear” a carreira do Zeca, não olhei para trás. Aceitei de imediato. O repertório não foi fácil de seleccionar. A obra é vastíssima, como sabe, para além disso propus-me escolher temas menos óbvios e também pouco reinterpretados, o que por si já fecha o círculo sobre a escolha.

Sentiu na pela a responsabilidade de fazer um disco destes? Encontrou dificuldades em alguma fase do processo?

Senti sim, desde o início. Não há ninguém mais realista e consciente da dificuldade mas também da barreira a transpor, do que eu! E ao aceitar o desafio foi por aí que procurei o caminho, ou seja, o que vou eu aprender com tudo isto, com a experiência? Sabia de antemão que tal como no Fado, os guardiães do templo do Zeca estariam lá, na primeira esquina mais insinuada, para apontar e reeducar, possivelmente. Além disso, o que haverá a acrescentar ao tanto que já se fez (e desfez) com este património? Foram algumas das dúvidas, claro! Mas não hesitei, digamos que foram dúvidas “na passada”… Houve dificuldades sim, como não? Em todo o repertório escolhido (comecei com uma amostra de 26 temas), houve 4 ou 5 temas difíceis de entrar no espírito, no ritmo, na interpretação. Não queria desvirtuar, adulterar uma nota, uma partícula da harmonia e para isto contei com a preciosa e persistente ajuda do Ricardo Dias.


Com este disco saiu do espaço confortável que conquistou por força própria e recriou-se; optou por trabalhar com músicos diferentes do habitual, alguns associados ao jazz. Como é que tudo isto acontece?

Sabia que o trabalho exigia outro género de sonoridade e foi em conversa com o Ricardo que percebi que estes seriam os músicos certos. No fundo, nós os cinco convergimos no universo do Zeca, oriundos de 3 géneros musicais diferentes, sendo que todos eles estão vagamente presentes em toda a sua obra: o Fado (eu…talvez), o Ricardo Dias (música Tradicional) e o Bernardo Moreira, o Alexandre Frazão e o Mário Delgado (Jazz).

Tive a oportunidade de ver o concerto no Theatro Circo e não pude deixar de notar como é curioso ouvir a sua voz junto com uma bateria. Foi muito natural para si o trabalho com o Alexandre Frazão?

Não acho um instrumento estranho (remotamente, a bateria está para este género como a viola está para o Fado) e depois não é a primeira vez que participo em projectos com bateria ou percussão (por cá, é que essas coisas não se sabem!). Para além disso, o Alex é um músico brilhante, virtuoso, (aliás como todos eles) não “ameaça” a voz, não machuca, pelo contrário.

Sente a falta da guitarra portuguesa neste projecto? Ou acredita que cada coisa deve estar no seu lugar?

Cada coisa no seu lugar. Confesso que ainda aventei essa hipótese, mas felizmente tenho por perto um “grilo falante” que me recolocou no caminho do bom senso!

Voltou a gravar “Redondo vocábulo” para este novo disco. Quantas vidas tem essa canção? Concorda comigo se disser que "Redondo Vocábulo" é um dos mais belos textos escritos na nossa língua?

Costumo dizer que é uma caixa de Pandora, logo reinventa-se a cada retomada, redescobre-se de cada vez que se canta, há sempre elementos novos a aparecer. De facto, é como alguém que caminha de olhos vendados dentro de uma casa e vai tropeçando em objectos, em pessoas… em situações. É de todos os poemas do Zeca, para mim o mais emblemático do seu surrealismo exacerbado, o mais místico também. Estará entre os mais “aflitos”, quero dizer densos, obscuros. Mas nós temos uma lírica de excepção, uma prosa maravilhosa para um país tão pouco esclarecido, tão pouco instruído!

Se voltasse a fazer um disco exclusivamente com canções de um autor, esse autor poderia ser Fausto? Alguma vez lhe passou pela cabeça fazer algo similar com as canções dele?

Acho que ele não iria gostar… suspeito. Mas sim, claro que gostava. Considero o Fausto um autor genial, de uma sagacidade social! Profundo conhecedor da língua e da rítmica tradicional.
Propus recentemente ao Fausto escrever um tema para o meu disco seguinte e isto é o mais próximo que se pode estar da sua obra. A comunhão e homenagem a um autor vivo e brilhante como ele, faz-se desta forma (opinião muito pessoal)


Voltando ao assunto deste disco, em que condições é que Portugal e os portugueses preservaram a memória de Zeca Afonso?

Ai, que esse território é muito pantanoso! As autoridades revelam alguma hipocrisia e preconceito, enfim, é o Portugal que nós temos! E nós dividimo-nos entre reconhecimento e admiração, também preconceito e esquecimento aleatório, exaltação e profundo desconhecimento.

Acompanhou alguns dos projectos que em 2007 prestaram homenagem a Zeca Afonso? Nomeadamente os Couple Coffee ou mesmo o Drumming. Parece-lhe que neste ano que passou a homenagem foi justa ou suficiente?

…e ainda Jacinta. Penso que foi tudo digno. Justa foi com certeza, agora suficiente? Nem assim se “agitou a malta”!

Este disco poder-se-ia chamar de outra forma?

O nome era tão óbvio, que se escondeu até ao final da produção. O que me deixava tremendamente preocupada, porque eu escolho sempre os títulos antes de partir para a recolha de temas.

Diz que José Afonso não é o cantor da revolução. Que cantor é então Zeca Afonso para si?

Eu disse isso? Ele também é isso, digamos que um líder, um visionário apartidário! E talvez por aí, eu olhe para a sua obra ainda com mais admiração. Nunca se deixou corromper. Este é um dos valores que me move, ainda acredito nos “bons”, sabe!? A música do Zeca habitava-o, eram uma mesma coisa, vinha-lhe das entranhas depois de observar o que o rodeava, como exemplo podemos olhar para a apropriação de sonoridades africanas, do profundo conhecimento daquela luta surda que por lá se vivia… se vive. Sem esforço, a sua música soava a uma miscelânea natural, digamos que “afro-europeia”!

Já lá vão mais de 10 anos desde que começou a sua carreira. Que possível resumo poderia fazer de todo este tempo? O que espera ainda que a música lhe possa trazer?

Foi tudo tão rápido que uma década é um quase-nada! Ainda será cedo para resumos, suponho. É assim como um carrossel o meu tempo… como alguém diz por aí: ”prognósticos, só no fim do jogo!”. A música, mais propriamente o canto, é a minha vida, parece que só sei ser por aí. Relaciono-me com os outros por aí, cresço por aí. Só quando fecho a porta de minha casa, carregada de malas, de dores e alegrias é que essa aprendizagem, a “Lição”, repousa sobre o tapete até ao próximo concerto, entrevista, disco. Não é que a cantora não seja também a mãe, a mulher, a filha, irmã e amante, mas ainda andam a aprender como coexistir pacificamente. Gostava que a cantora terminasse antes da exaustão, da decadência, isto é certo!
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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