ENTREVISTAS
Arborea
O mundo, em estado natural
· 26 Mar 2007 · 08:00 ·
Dificilmente outro nome seria tão indicado para dar cara às manifestações musicais Buck e Shanti Curran que aquele que escolheram. Os sons da dupla norte-americana nascem profundamente enraizados na vida natural e por aí se desenvolvem. Wayfaring Summer é o primeiro capítulo de desta união, à luz da folk. O Maine, nos Estados Unidos, é um território maioritariamente formado por florestas e, logo, profundamente tocado pela natureza. Pelas suas características, é um local propício a uma comunhão íntima e frutífera com a essência do mundo. E é daí que surge a inspiração de Buck e Shanti Curran, um duo que um dia se transformou nos Arbórea algum tempo depois de se terem transformado num casal.

Conscientes da história da música que decidiram explorar, são seguidores devotos de John Fahey, tanto no que diz respeito à música como no que toca à forma de estar na vida e de viver a música. Wayfaring Summer é o primeiro testemunho de uma história que urge ser contada – e que agora começa a dar os seus primeiros passos visíveis. Buck e Shanti Curran insistem em fazer parte da natureza que os rodeia; fazem música camuflados na paisagem e no tempo que (sobrevive e) nasce para eles. Aproveitam o isolamento e a distância de influências nefastas para criar folk de raízes seguras, intimamente espiritual e encaminhada tanto por uma guitarra fugidia como por um banjo tímido, e por uma voz selvagem e dificilmente domável – a de Shanti, embora Buck também empreste ocasionalmente os seus dotes vocais.

O modo de vida de ambos leva-os a preferir estar junto das montanhas do que dos computadores, a facilmente trocar a televisão pelo som de um rio a afastar-se da sua nascente; sabem o que se passa no mundo mas às vezes preferiam não saber.
Como é para vocês viver no Maine? Que influência directa na vossa música exerce essa posição geográfica?

Shanti Curran: Estamos um pouco isolados neste momento, vivendo aqui no Maine, e eu tenho vindo a apreciar isso neste local. Não existem tantas distracções, e a minha criação artística vem de dentro e não é tão influenciada como seria se provavelmente eu vivesse em São Francisco, ou Nova Iorque. Não estou a dizer que somos desconhecedores dos acontecimentos no mundo que nos rodeia. Demasiadas vezes somos dolorosamente conscientes das lutas e angústias que acontecem todos os dias, em todo o lado, e canções como “Beirut” e “Dance, Sing, Fight” são um testamento da tristeza que sentimos.

Buck Curran: Estamos um pouco isolados musicalmente aqui nesta parte do Maine, o que significa menos distracções e ajuda-nos realmente a ligarmo-nos um com o outro. Dá-nos bastante tempo para compor, gravar, e praticar os nossos instrumentos. A paisagem é definitivamente uma inspiração para a nossa música. “Shagg Pond Revival” é um bom exemplo já que foi gravada na terra do avô da Shanti, junto a um ribeiro que corre gota a gota até Shagg Pond, que é no pé das montanhas Apalaches aqui no Maine.

Vi algumas fotografias de vocês no vosso Myspace e quer-me parecer que estão ambos profundamente envolvidos com a Natureza; diria que quase de uma forma reclusiva…

S.C.: Bem, nem tanto no Inverno… mas nos meses mais quentes passamos dias e dias nas montanhas, longe de todos os carros e computadores e telefones, e do zumbido da humanidade. Somos verdadeiramente abençoados por sermos capazes de chamar a floresta a nossa casa. É um local aparte do tempo e da civilização. Sinto que sou desta terra, que não sou diferente dos animais ou das árvores, ou o solo debaixo dos meus pés. É a mesma vida misteriosa que flúi através de mim, do Buck, e das nossas crianças e da nossa música.


E de onde vem afinal o nome Arborea? Parece de novo uma ligação com a natureza… confirmam essa raiz?

B.C.: Curiosamente, quando eu pensei na palavra pela primeira vez eu relacionei-a mais com a palavra em latim para as luzes do norte, “Aurora Borealis”’, que ela própria é uma ocorrência natural que é análoga à forma que me sinto quando a Shanti e eu fazemos musica juntos… como se algo espantoso e belo desabrocha perante nós. A outra selecção óbvia é que é uma derivação da palavra latina Arboreal que significa “de uma árvore” ou “acto de habitar árvores”… que é o local onde muitas vezes nos encontramos a nós próprios e a inspiração.

Li algures que Wayfaring Summer, o vosso disco de estreia, nasceu de comunhões de final de noite entre dois amantes. Como foram esses dias?

S.C.: Esses dias ainda estão aqui… todos os dias. Gravamos e tocamos à noite, quando as crianças estão a dormir. É o nosso tempo, quando o dia cai longe e todas as necessidades e expectativas se tornam sem sentido. Existimos juntos, almas despidas, abertos um ao outro e à música que está sempre lá.

Eram já uma banda antes de serem um casal. Quando e como é que a música entra nas vossas vidas?

S.C.: Conhecemo-nos e apaixonamo-nos há muitos anos atrás, e todo este tempo o Buck tocava música e gravava canções como artista solo. Depois há poucos anos deram-me um banjo no meu aniversário, e já que tinha esse instrumento nas minhas mãos as comportas abriram-se… começamos a tocar e a cantar juntos e um som arrebatador pareceu de repente brotar para a vida. Parecia apenas natural formar os Arborea a partir disto, e agora penso porque é que não decidimos fazer músico juntos mais cedo.

B.C.: Durante anos toquei como músico solo, mas ansiava por uma parceira musical já que sempre apreciei a música mais quanto partilhava a experiência com outra pessoa. A Shanti tinha crescido em redor da música já que a mãe dela cantava e tocava guitarra. Uma coisa que sempre tivemos em comum foi ouvir música. Eu sempre pensei que a Shanti tinha uma belíssima voz e encorajava-a muitas vezes a cantar, mas devido à sua timidez ela não cantava em frente de ninguém. Durante a primavera de 2004 trouxe um microfone óptimo na esperança de gravar um disco instrumental com guitarra acústica. Tendo em conta o meu envolvimento com a construção de guitarras acústicas à mão fui desviado e nunca cheguei a gravar nada. Foi em Dezembro antes do Natal que a Shanti aprendeu – em segredo – a usar o equipamento de gravação que nós tínhamos, e começou a gravar-se a si própria como presente de Natal para mim. Ela fez um trabalho tão fantástico que começamos a passar mais tempo na brincadeira e a canção canções – ela era mesmo incrível a acompanhar na voz os discos de Jeff Buckley e da June Tabor. Em troca, durante o seguinte Verão, o de 2005, comprei-lhe um banjo pelo aniversário dela pelo qual ela se apaixonou instantaneamente e começou a desenvolver a sua voz única no instrumento. A outra coisa fantástica é que a Shanti chegou à nossa música sem quaisquer preconceitos e com uma mente completamente aberta e fresca, por isso foi apenas natural que tenhamos começado a fazer música sem limites ou preconceitos.

De que forma é que a vossa relação contribuiu para toda a ambiência que se nota do disco e o intimismo à flor da pele?

S.C.: É tudo. É a maior história de amor nunca contada…

B.C.: Música é a ambiência da nossa relação e da nossa intimidade; é o mundo que criamos através da nossa existência juntos.

Porquê Wayfaring Summer? O que é que significa? O primeiro tema do disco, “Wayfaring Summer” dá a impressão que são ouvidos atentos de fingerpickers como John Fahey, Robbie Basho e outros. É verdade?

B.C.: “Wayfaring Summer” é uma derivação da canção folk tradicional icónica “Wayfaring Stranger”, e foi uma escolha óbvia porque espelha os tons melancólicos dessa música, e representa uma jornada pelo Verão (onde a nossa música começou), Verões intermináveis que passam todos demasiado depressa. Tal como a faixa que abre o disco, a música tinha de ser reflectiva do estado de espírito, e do lugar no tempo. Somos muito conscientes da história e de guitarristas como Blind Willie Johnson, John Fahey, Robbie Basho, Martin Simpson, e tocadores de banjo Apalaches como Fred Cockerham, e Hobart Smith.

A propósito, li no vosso Myspace que as vossas influências directas são a “folk americana e das ilhas britânicas, um pouco de blues, música clássica da Índia e uma pitada de sal rock”. Como se gerem essa raízes, essas ascendências?

B.C.: John Fahey é uma inspiração para nós não tanto na forma como ele toca, mas na forma como grava, a natureza experimental das suas primeiras gravações, e sentimo-nos parentes da natureza terra-a-terra da folk arcaica e blues que é o âmago do trabalho de Fahey. Mais importante é a inspiração musical e a alma que sentimos quando ouvimos artistas como o tocador de sitar Pandit Nikhil Banerjee, o guitarrista/vocalista britânico Martin Simpson, e a vocalista Sinead O’Connor.


Tocam muitas vezes ao vivo? Como são os vossos concertos em comparação com aquilo que acontece nos vossos discos? Exploram mais o lado experimental dos Arborea preferem accionar o modo canções?

B.C.: Neste ponto as nossas actuações ao vivo têm sido esporádicas já que temos estado intensamente envolvidos com a criação e com a gravação da música. Quando tocamos ao vivo é um balanço entre a canção estruturada e o nosso próprio lado improvisador, que é como a música começa. A música é em grande parte escrita em afinações alternadas e desdobra-se através da exploração melódica. Bastantes canções em Wayfaring Summer foram mesmo gravadas ao vivo em apenas um take.

S.C.: O Buck tem muita experiência e adora actuar ao vivo, enquanto que eu luto com isto. Sou uma pessoa muito tímida e é difícil para mim querer tocar a nossa música ao vivo, acima de tudo pela intimidade da música e pela forma como foi criada. Parece quase uma completa inversão pegar em algo tão privado e torná-lo público daquela forma. Estou a trabalhar em mudar a minha atitude acerca disso, e por vezes surge uma intensa emoção que brota quando canto ao vivo… possivelmente por causa dos meus nervos, e estou a aprender a usar isso para minha vantagem. Vamos dar um concerto no próximo mês com a Marissa Nadler, uma música fantástica e uma mulher extraordinária, e temos uma digressão pelo Reino Unido planeada para o Outono de 2007.

O vosso disco de estreia foi editado na Summer Street Records. Não existe muita informação acerca da editora na Internet, por isso presumo que seja um selo da vossa responsabilidade…

B.C.: É a nossa editora. Sempre estivemos abertos a trabalhar com uma editora independente, mas sentimos que era importante não esperar, e fazer com que a música seguisse por aí pelo mundo. Tem dado muito trabalho mas é uma parte essencial para comunicarmos a nossa visão e liberdade artística.

Além dessa urgência de editar a vossa música quais foram os outros motivos para a criação da Summer Street Records? Parece haver algo mais do que isso por detrás dessa decisão… Quais são as maiores dificuldades em gerir uma editora para vocês?

B.C.: Artisticamente fazia total sentido para nós criar a nossa própria editora. Uma editora normal apenas mantém um artista para um disco ou dois, e as coisas são maioritariamente baseadas no lucro e não na arte. A Shanti e eu não estávamos realmente interessados em procurar muito tempo alguém que editasse o nosso disco, quando sabíamos muito bem que éramos capazes de fazer as coisas por nós próprios, na nossa própria forma, no nosso próprio tempo. Inicialmente inspirei-me no John Fahey que fez o seu próprio caminho, tomou uma posição perante o pensamento convencional, e começou a sua própria editora, a Takoma. A coisa mais difícil em criar uma editora própria é a distribuição, mas a distribuição sempre foi um desafio para as editoras Indie. No entanto, felizmente, a música independente é tudo sobre a base, e acho que estar a nível do solo é tudo sobre a Alma e as pessoas reais, não a realidade plástica que as companhias seguem. A nossa distribuição principal é feita através da loja independente CD Baby, e temos tido uma experiência maravilhosa ao trabalhar com eles. Esperamos eventualmente encontrar uma óptima editora pequena com quem trabalhar, já que adorávamos dedicar toda a nossa energia a criar nova música.

O que é que fazem artisticamente para além da música? Tanto quanto sei movem-se por outras áreas… De que forma é que essas “escapatórias” influenciam a vossa música?

S.C.: Sou uma fotógrafa de Belas Artes, mas também uma mãe e professora das nossas crianças, o que me influencia musicalmente mais do que qualquer outra coisa, creio eu. Tenho a oportunidade de passar os meus dias com estas almas bonitas, inocentes e selvagens e tudo nelas faz-me apreciar a maravilha, o mistério e a tragédia da vida.

B.C.: Eu construo guitarras acústicas, escrevo poesia e pinto. Também escrevi artigos para a revista americana Acoustic Guitar. A minha entrevista/artigo mais recente foi sobre o músico sueco Jose Gonzalez e foi publicada da edição de Novembro. Sou muito inspirado por tudo na vida, especialmente a História.

No vosso Myspace é já possível ouvir canções que serão incluídas num próximo EP que deverá ser lançado em 2007. O que é que nos podem adiantar acerca desse disco?

B.C.: Wayfaring Summer acabou de ser lançado, por isso sentimos que é importante concentrar os nossos esforços em dar-lhe uma “vida” e torná-lo vivo nos concertos. Estamos a escrever novo material a toda a hora… as novas canções são talvez um eco de coisas que estão para vir.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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