ENTREVISTAS
The Partisan Seed
Ramificações inesperadas
· 07 Mar 2007 · 08:00 ·
The Partisan Seed é o alter-ego de Filipe Miranda, que depois do final dos Kafta sentiu a necessidade de continuar a sua actividade musical. Sozinho e em diferentes moldes. Longe das explorações sonoras dos Kafka, encontrou neste novo projecto o veículo ideal para suas as canções, e não só - Filipe Miranda não quer decididamente ser visto como mais um cantautor. Visions of solitary Branches é a soma das suas experiências, das suas viagens, de cidades, do que o rodeia, dos seus retratos mentais. Logo, um disco bastante pessoal, de risco assumido. Visions of solitary Branches é um dos quatro álbuns que a ambiciosa editora nortenha Transporte de Animais Vivos, com ligações à Quasi, lançou ao mesmo tempo. Aparente motivo de orgulho para Filipe Miranda, que numa entrevista ao Bodyspace se mostrou entusiasta em falar do seu trabalho.
Em tempos fizeste parte dos Kafka e actualmente estás nos Interm.Ission. O que é que não tinhas ou tens em ambos os projectos que vieste procurar neste projecto?

Não sei. Acho que não passa por essa questão do procurar ou não, ter ou não, nada é intencional... o que sei é que a coisa que eu detenho agora com The Partisan Seed é, obviamente, o total controlo artístico. É um projecto pessoal e não um projecto desenvolvido por um grupo, não componho a pensar num colectivo, aberta e eclecticamente. Quando falo de controlo artístico quero dizer o seguinte: componho e sei o que quero, é algo bastante directo, mas deixo uma margem de incerteza que se completa com outras pessoas a participar. E deixo essa liberdade que existe na margem da minha incerteza para outros trabalharem, consoante as suas próprias influências. As pessoas que tenho convidado, tanto para o disco como para me acompanhar em concerto, operam desta forma. O José Arantes, por exemplo, é uma peça importante para este projecto. Produziu o disco comigo, escolheu os planos ambientais e orientou todas as gravações. Ao vivo é igual. Eu mostro-lhe as coisas e ele pensa na melhor forma de veicular a essência das minhas canções. O Pedro Oliveira e o Nuno Fernandes - assim como o João Coutada, o Pedro Cabral e o Nelson Coelho, que são ou foram colaboradores de concerto - têm ajudado a completar esse círculo em torno das canções. Com a Lisete então, já são muitos anos de cumplicidade, em tudo, não só na música. Mas são pessoas que me conhecem bem, somos todos muito parecidos, na medida em que existe sempre qualquer coisa em comum que nos une musicalmente. No fundo é isso, com The Partisan Seed sinto-me em casa. Não procurei nada em especial, acho que já estava lá tudo. É como a sensação de ter os amigos e a família na minha sala de estar.

O trabalho que desenvolvias nos Kafka e este agora como The Partisan Seed são obviamente bastante distintos. Guardavas este lado de cantautor há bastante tempo?

A palavra cantautor, geralmente, vem associada ao baladeiro e ultimamente está até a cair na banalidade descritiva de alguns projectos mais individuais. Pode até ser algo redutora, se interpretada dessa maneira. O que fazia nos Kafka continuo a fazer hoje embora admita que, formalmente, possa soar a outra coisa distinta e, nesse ponto, percebo o que dizes quando falas do lado cantautor. Eu acho é que tenho muitos "lados" que se misturam, que se atropelam até. Nem eu sei muito bem distingui-los. De certa forma, até é isso que faz existir The Partisan Seed. O meu próximo disco poderá ser gravado à base de instrumentos acústicos e ter um carácter lírico forte, como também poderá ser completamente instrumental, industrial ou electrónico. Não gostaria que criassem uma imagem do típico cantautor e a colassem a The Partisan Seed, até porque penso que não se aplica totalmente aqui. Neste disco, os temas que mais se salientam são, obviamente, os que aparecem em formato de canção. Mas, para mim, é muito importante sentir a convivência de músicas como, por exemplo, a “The old garden” ou “Autumn sky” com temas tipo “Muezzin” ou “The narcotic world of scarabs”. Acho que assim existe um maior equilíbrio no tipo de coisas que melhor me representam artisticamente.

Que restou então das experiências nos Kafka para os dias de hoje?

Dos Kafka restou muita coisa. Eu sou o mesmo, embora a solo existam outras formas de comunicar. O que restou é feito, sobretudo, da força de grandes memórias. No fundo – e perdoa-me a metáfora –, a separação dos Kafka foi assim como que um grande incêndio, uma casa que foi consumida pelas cinzas. E quando um fogo é finalmente extinto, conseguimos ver uma parte da estrutura da casa, aquela que não conhecíamos. The Partisan Seed é como essa parte, que agora está bastante mais visível e que se recusou a arder – aliás, o nome do projecto é, também ele, uma metáfora que simboliza a luta, a resistência, a insubmissão e a independência artística. Sinto saudades dos tempos dos Kafka, nunca irei negar o orgulho que sinto em ter feito parte dessa experiência. Tínhamos uma química fabulosa, uma energia colectiva que me fazia sentir seguro ali no meio daquilo tudo. Quando a banda acabou, senti-me algo perdido. Mas já aprendi a recriar essa mesma energia sozinho, pelo menos para mim, dentro da minha cabeça. A necessidade do experimentalismo que tinha nos Kafka está cá ainda intacta e a predisposição para correr riscos não se alterou. Continuo sem medo de criar, independentemente do que outros poderão achar do meu trabalho. E isso era uma das características principais dos Kafka.


Antes de editares Visions of solitary Branches saiu em 2005 um EP de três temas, uma co-edição Honeysound e Transporte de Animais Vivos. Serviu para ti como um tubo de ensaio?

O EP foi o ponto de partida, marcou o nascimento oficial de todo o projecto como também orientou grande parte do artwork posterior para o álbum e para as primeiras apresentações. E demorou a sair. Oficialmente foi lançado em Outubro, mas penso eu que só começou a chegar à mão das pessoas em Janeiro ou Fevereiro de 2006 e houve, de imediato, boas reacções ao som. Nesse aspecto, sim... foi uma espécie de tubo de ensaio. Algo bastante importante nessa promo foi o facto de ter sido uma edição muito reduzida, como uma pequena peça coleccionável. O design da Loucomotiv ajudou a que existisse uma abordagem à ilustração em que esta surgia retalhada, não desvendando a imagem total, que mais tarde foi exposta totalmente no disco. Os primeiros cartazes de concertos foram também nessa linha de retalhos e, entretanto, estava uma acção artística a decorrer – ao longo de vários meses, foi-se conhecendo a capa do LP. A textura do cartão foi um entrave para a edição, obrigou à tal espera de alguns meses... mas foi produtivo. Quando essa edição se esfumou completamente, comecei a fazer impressões em casa e a assinar ou a desenhar os CD-Rs, fui-me divertindo a criar exemplares personalizados em que cada 20 tinham um tratamento plástico diferente. Estou com vontade de fazer isso no próximo EP, capas em litografia, todas assinadas e numeradas. Gostava que The Partisan Seed fosse, também, expressão plástica.

Ainda em 2006 mostraste música em duas compilações: Acorda! e input/output

Sim. Primeiro na compilação input/output, que comemorou o primeiro aniversário da Honeysound e depois no Acorda!. A primeira foi organizada por todos os que participaram e eu entrei, não só com The Partisan Seed, mas também com outros projectos dos quais faço parte (Nikouala, Interm.Ission e Milagro). Colaborei com Das Christian a fazer vozes e com Umbilical Nod no baixo e no coro. Houve uma espécie de ponte criada entre algumas pessoas e bandas para a compilação que eu espero que se repita em breve, devido à actividade gerada e entrega de todos. Foi mais um encontro Honeysound. O Acorda! já foi algo diferente. Houve ali uma selecção do Henrique Amaro e da Cobra. Gostei da qualidade que vi nas bandas apresentadas e gostei, especialmente, do facto de os lucros do disco reverterem para o IPO. Um gajo fica a sensação de que está a fazer algo de verdadeiramente útil, a música a não se limitar ao plano estético, mas sim a assumir um carácter social activo, ao serviço de alguém que precisa.

Como é que surge este Visions of solitary Branches? Qual é a história do disco?

A história do disco é bastante simples... foi também imprevisível que chegue, mas fez-se a ela mesma. Primeiro, nunca seria um disco, não o imaginei chegar tão longe. Seria apenas um conjunto de registos que eu iria fazer com o Mariano Dias (dos ex-The Astonishing Urbana Fall) no estúdio da Oops!, quando tivéssemos ambos a disponibilidade. Eu tinha muitos temas escritos à margem dos Kafka e dos Interm.Ission e queria fixá-los apenas, experimentá-los em gravação, ver como soavam. Na altura em que estava mais ou menos programado irmos gravar alguma coisa, encontrei o José Arantes, um amigo de muitos anos – que também colaborou com os Kafka em algumas ocasiões – e falei-lhe disso, de registar os temas. O José tinha acabado de assumir a parte técnica e de produção do estúdio do Mariano e mostrou-se entusiasmado em experimentar. Combinámos uma noite, levámos vinho, alguns instrumentos e montámos dois microfones. Estivemos até de madrugada a conversar e fomos gravando, sem qualquer preocupação com o que quer que fosse. E fiquei com metade do disco pronto nessa noite, sem sequer dar por ela. Depois, ele misturou aquilo no apartamento onde vivia no Porto. É claro que me soou muito bem e mostrei-o primeiro às pessoas mais chegadas. Surgiram boas reacções, especialmente da parte do Pedro, que insistiu muito para que eu editasse aquilo. Por fim, veio a proposta da Transporte e eu fiz nova investida com o José no estúdio e na casa dele. Passou por lá o resto do pessoal que colaborou nas gravações e, com mais duas noites, concluímos o trabalho. O resto seguiu naturalmente como até aí.

Este disco parece-me, até pelas palavras, um disco muito íntimo. Como é condensar as tuas memórias pessoais num disco que pode ser ouvido por qualquer pessoa?

Este disco é, talvez, uma das coisas que mais revela aquilo que eu sou... Realmente íntimo, sem dúvida. As palavras lá contam – e de que maneira – partes da minha vida que foram importantes no meu crescimento pessoal. Pequenos retratos de vida, do que me rodeia, de quem me rodeia, auto-retratos, aparições e vistas panorâmicas e ambientais de algum desfoque emocional... é isso que está lá. Expor essa intimidade não é fácil, torna-se até algo violento o que, obviamente, me fragiliza perante os olhos do mundo. Mas não me preocupa essa exposição, porque acredito que ninguém irá fazer do disco uma caricatura, ninguém é assim tão má pessoa que se dê a esse trabalho. Acho que este disco vale mais para quem se identificar com as vivências lá expostas, com as coisas que estão lá descritas. Qualquer pessoa sensível àquelas pequenas e grandes etapas da vida – o amor, a perda, a beleza, a solidão, a memória, a morte – vai rever-se facilmente no álbum. É que apesar de ser produto de uma expressão pessoal, acho que todos temos essas visões, todos nós somos como ramos solitários que se desprenderam de uma árvore comum. Esta foi a imagem poética que me sugeriu o nome para o disco e penso que resume bem o sentimento global da obra em si.


De que sítios e cidades falas tu no disco e como é que te relacionas com elas?

Neste disco, existe uma certa ausência de geografia específica. Na sua globalidade, é mais ou menos como aquela perspectiva que há no Os Passos em Volta do Herberto Helder, um dos meus livros preferidos. Apesar de existirem referências a locais, toda a acção desenvolve-se em planos interiores. Ou seja, o espaço cria em mim uma impressão que ultrapassa o mero sentir físico de permanência. Mas também existem alusões um pouco mais claras e essas estão em temas como “The old garden”, “Did a gun give you a name?” ou “Breed low” - Barcelos, baixa do Porto e Esposende respectivamente. Do festival de Paredes de Coura, passando pela solidão refrescante da estação de comboios e do ferry-boat de Viana do Castelo, até ao abandono total da razão no sul de Espanha. Estas cidades e locais são importantes para mim. Barcelos pelas razões mais óbvias, onde moro e onde cresci, no Jardim Velho, no Bonfim ou na Urbanização de S. José (conhecida na terra como “Urbe”, o título provisório do tema “Koala j”); Viana do Castelo, cidade mágica, foi onde estudei e com a qual me identifico; a Ribeira no Porto, aquele lugar belíssimo que não precisa de comentários; Esposende ou Paredes de Coura nos despertares matinais; e por aí fora... Tudo sítios por onde passei ou que frequento e que me dizem alguma coisa.

Visto de fora, quais dirias serem as influências directas do teu trabalho neste disco a solo?

Nunca o conseguirei dizer, não o consigo ver de fora. O que te posso dizer é como é que o vejo de dentro – tudo muito desfocado, mas sei que é a minha vida a desfilar, visões dispersas de coisas que vi, li, ouvi, senti, etc. Sabes, é que não gosto muito de rótulos nem gosto de ser comparado directamente com quem quer que seja. Não é por mal ou por me considerar melhor ou pior que outros, nada disso. Mas é complicado... Acho que isso é comum a toda a gente que faz música ou que está ligada a qualquer uma outra criação artística. Eu gosto de muita coisa diferente. É difícil assumir influências directas, mas a verdade é que a sombra de algumas personagens que admiro estão no disco, sem dúvida alguma. Se alguém se dedicar a procurá-los vai encontrar, de certeza, várias referências.

Como é que foi ocupar o primeiro número da Transporte de Animais Vivos? Como é que esta colaboração aconteceu?

Já o contei antes e é, de facto, uma colaboração que vem na sequência de uma série de acontecimentos curiosos. Escrevi uma carta à Quasi a propor a edição de um livro de poemas, o qual estava a ser ilustrado por um meu professor da altura, o pintor Francisco Trabulo (é ele o autor da ilustração que eu, diabolicamente, adulterei para a capa). Juntamente com esse livro ilustrado, iria um disco de bónus com alguns dos poemas musicados. O que eu não sabia era que o Jorge tinha intenções de editar discos, criar uma outra vertente editorial dentro do projecto Do Impensável que não a da literatura. E a sugestão dele foi apostarmos no disco, visto que estaria prestes a acontecer o nascimento da Transporte. O que também não aconteceu de imediato. Foi um parto demorado e algo doloroso para mim enquanto músico/autor, assim como para ele enquanto editor. Fez aumentar muito os níveis de ansiedade. Mas valeu a pena, acho que poderá ser algo equiparado às Quasi, no que respeita aos critérios editoriais, com os habituais registos muito cuidados e sérios. É algo de diferente dentro do panorama nacional e, claro, é para mim um orgulho ter assinado o primeiro trabalho editado pela Transporte. Sinto que a história da Transporte começa, também, comigo. Isso é uma boa sensação.

Como é e como será The Partisan Seed ao vivo?

Ao vivo tenho tido a colaboração de outros músicos. A formação de um concerto varia muito, por que tanto poderão estar duas pessoas em palco, como só eu, como seis elementos... não existe um tipo de concerto definido. Quando tenho algo agendado, convido os amigos para tocar, geralmente são aqueles dos quais falei há pouco. Em concerto, tenho tocado guitarra acústica, piano e alguma percussão. Os restantes músicos dividem-se por instrumentos como bateria, darbouka, guitarra eléctrica, baixo, bandolim, piano, melódica e uma ou outra percussão. Tudo depende do espaço onde vai acontecer e, também, da disponibilidade dos músicos, porque têm as suas bandas ou outros compromissos agendados. De futuro, talvez exista uma maior colaboração da Lisete, ao nível de vozes.

Como é o trabalho nos Interm.Ission. Quais são os planos para esse projecto?

Os Interm.Ission não são um projecto convencional, no sentido em que não ocupam muito o nosso tempo. É mais uma forma de me encontrar com o João e o José Novo, de passarmos um bocado de tempo juntos, a criar. Tem esse nome exactamente por causa disso, é um intervalo. Eles têm o projecto deles, os Biarooz, e eu tenho The Partisan Seed e as composições para teatro com Nikouala. Não ensaiamos há mais de um ano, nem sequer temos o hábito de fazer ensaios. Interm.Ission são três amigos de longa data, é um conjunto de experiências assim como Milagro. É um projecto que possibilita a comunhão de ideias e o cultivar da amizade. Mas este ano vamos lançar um LP, estamos até em fase de misturas. E, muito provavelmente, vamos fazer alguns concertos.

E quais são os planos futuros para o projecto The Partisan Seed?

Bem, para já é apresentar o disco ao vivo. Já tenho umas datas confirmadas, outras quase certas e, entretanto mais irão surgir, espero eu. Vou também participar numa compilação que está para sair e existe uma outra a médio prazo. Fiz algumas gravações com o José durante dois dias no passado Verão, tudo fora de estúdio, sempre com um som caseiro e meio lo-fi. Tenho intenções de lançar outro disco para o final deste ano e, se calhar, as experimentações que vamos gravando ocasionalmente serão esse disco. Mas nada está definido. Primeiro quero continuar a levar o Visions... ao vivo em vários palcos. Depois penso nisso de voltar ou não a editar como The Partisan Seed.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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