ENTREVISTAS
Colleen
Fábrica de sonhos
· 06 Out 2006 · 08:00 ·
Depois do lançamento de Everyone alive wants answers e The Golden Morning Breaks, a francesa Cécile Schott está de regresso com Colleen Et Les Boites A Musique (de novo com casa no selo Leaf), narrativa e viagem pelas caixinhas de música, capricho pessoal imerso em fantasia e encanto e com cheiro a Montmartre. Colleen Et Les Boites A Musique é um projecto curioso que parece na verdade ser uma paragem (e uma avaliação) num caminho que se prepara para renovar já a seguir, para se reinventar, como a própria afirma em entrevista ao Bodyspace. Aqui, Cécile Schott aborda a sua relação cuidada e pensada com a música e com os instrumentos e abre um pouco em jogo em relação ao ser terceiro disco. O lançamento de Colleen Et Les Boites A Musique acontece precisamente em alturas do regresso da francesa a Portugal. O reencontro de Colleen com o público português acontece já no próximo dia 7 e Outubro no Festival EME, em Palmela, onde actuará a solo e com a Naja Orquestra.

Tens um novo EP lançado na Leaf… o que é que nos podes dizer sobre ele?

Originalmente eu não tinha planeado lançar um EP entre o segundo e o terceiro disco, mas no final do ano passado pediram-me para fazer um programa de uma hora na France Culture (a rádio cultural nacional aqui na França) para um programa chamado Atelier de Création Radiophonique (literalmente Radiophonic Creation Workshop). Eu era livre para fazer aquilo que me apetecesse fazer, a ideia era que o programa tinha de envolver uma espécie de elemento extra-musical. De qualquer das formas, eu sabia que o meu programa seria feito principalmente de música, mas teria de ser música que eu não faria normalmente num álbum, e eu comecei rapidamente a pensar quão longe eu poderia ir com o uso de caixinhas de música. O elemento não-musical veio da procura de filmes que continham cenas com caixinhas de música (e encontrei imensos). Ao princípio tive medo que a música acabasse por soar toda igual, e depois pensei que esse iria ser o desafio: poderia eu fazer imensa música utilizando caixinhas de som que fosse realmente interessante e soasse variada, ao contrário daquilo que a maior parte das pessoas iriam esperar? Ironicamente, a palavra “caixinha de música” apareceu muitas vezes quando as pessoas se referiam à minha música, ainda que na verdade eu não tenha samplado nenhuma caixinha de música no meu primeiro álbum, e só tenha usado uma no meu segundo disco, na faixa que reaparece no final deste EP, “I’ll read you a story”. Por isso fazer esse programa foi também uma forma de ver como a minha música soaria se eu utilizasse caixinhas de música na verdade, e não apenas sons que as pessoas pensam que vieram de caixinhas de música. Por isso trabalhei com a minha própria colecção de pequenas caixinhas de música (algumas de manivela, outras mecânicas, a mais complexa e todas era um componium, um mecanismo de caixinha de música onde alimentas tiras de papel nas quais introduziste tu própria as notas, um pouco como um piano mecânico de certa forma). Mas para mim a coisa mais interessante no EP aconteceu através de uma dupla coincidência. A primeira é que eu já tinha planeado visitar um amigo que é músico e locutor de rádio que vive na Escócia, John Cavanagh (ele faz música sob o nome Phosphene e costumava fazer parte do realmente bom duo Electroscope). O John costumava vender antiguidades musicais mecânicas e tem uma casa verdadeiramente fantástica cheia de gramofones, 78s antigos, rádios antigos, teclados e duas caixinhas musicais vitorianas enormes que podem tocar várias melodias. Por isso quando o visitei decidi obviamente ver o que podia fazer com elas, e o John gravou os resultados no computador dele para que eu pudesse utiliza-los mais tarde em casa. A segunda coincidência é que eu esperava que as melodias das máquinas vitorianas fossem lindíssimas, mas elas eram na verdade bastante más. Por isso a certa altura sentei-me simplesmente perto de uma delas e passei o dedo pelo pente e ouvi um som verdadeiramente bonito., cheio de ressonância, que tinha algo ao mesmo tempo de madeira e metal nele, já que são os dois componentes principais das caixas. Por isso comecei a tocar o pente com as minhas unhas, depois com pequenas baquetas delicadas feitas de cortiça e concha de tartaruga que vêm com um instrumento fantástico que também pertence ao John e que usei no meu segundo disco, um harmonicon (um glockenspiel de vidro) do século XIX. Fiquei espantada pelos sons que saíam, que eram reminiscentes de muitos dos meus instrumentos favoritos, como o gamelan, a marimba, o thumb piano e o glockenspiel. Para mim o projecto alcançou mesmo uma outra dimensão quando isto aconteceu, porque aquilo não era definitivamente aquilo que esperavas que uma caixinha de música fosse soar. Estou também contente que um par de faixas do EP soem realmente alegres. Não acho que a minha música soe depressiva, mas também é verdade que até agora nada de verdadeiramente alegre apareceu nos meus discos, e com algumas dessas melodias, sentimentos mais leves parece ter saído cá para fora. Para terminar, gostaria mesmo de afirmar que para mim este EP é definitivamente um projecto à parte, e não deve ser considerado como um terceiro disco. De certa forma este EP é também uma forma de “loopar” o loop (ao mesmo tempo literal e figuradamente) neste primeiro período do meu trabalho como Colleen, já que eu pretendo que o terceiro álbum seja bastante diferente daquilo que eu fiz até agora.

Como é que te preparaste para explorar o som das caixinhas de música ao certo ? Quanta influência exerceu a tua infância neste disco?

É um cliché ligar as caixinhas de música com a infância, mas tenho de dizer que muitas pessoas que vêm ver os meus concertos vêm ver-me depois das actuações apenas para dar uma olhadela às caixas de música (especialmente o componium já que é bastante pouco usual) e o olhar que têm nos rostos é sempre de maravilha infantil, por isso acho que há algo de muito primitivo nas caixas de música que nos leva de certa forma para o espanto inicial do som e da música. Acho que também temos de nos lembrar que antes dos tocadores de discos terem sido inventados, as caixas de música foram o primeiro objecto mecânico capaz de tocar música! A minha primeira memória de caixas musicais está relacionada com a minha infância também, porque eu adorava um objecto que pertenceu originalmente à minha mãe enquanto criança que lhe tinha sido oferecido como um presente de Lourdes: uma miniatura de uma caverna metálica dourada onde a Santa Bernadette olhava para a Virgem Maria, e debaixo havia uma caixa musical mecânica que estava ligeiramente partida na altura em que a encontrei quando era criança. Os santos eram feitos de um material que brilhava no escuro por isso era óptimo ver aquelas duas mulheres iluminadas e ouvir a música que vinha por debaixo da caixa como por magia. Depois no final dos anos 90 mudei-me para Paris e comecei a ouvir electrónica e vivia muito perto de uma loja de brinquedos ; entrei nela um dia e vi todas aquelas caixas de música baratas e feitas à mão e comece a toca-las, e acho que fez-me sentir algo próximo àquilo que senti em criança quando ouvi aquela primeira caixa de música. Tinha também descoberto o tema “Nannou” do Aphex Twin que é um tema que absolutamente adoro, e por isso estava talvez igualmente atraída ao som da caixa de música porque era uma versão muito física de sons em que estava a começar a ficar interessada. Depois, quando comecei a fazer peças para os meus primeiros espectáculos ao vivo, utilizando caixas de música e a samplar pedais em conjunção pareceu-me uma coisa muito lógica de se fazer. Por isso acho que podes dizer que tenho vindo a trabalhar com caixinhas de música há quase quatro anos, por isso acho que este EP tinha de acontecer um dia ou outro!

Tens também uma edição dupla que será editada num selo japonês muito bem breve, seguida de uma digressão curta no país. Como é que isso tudo aconteceu?

Essa tem de ser uma das coisas melhores e mais surpreendentes que alguma vez me aconteceu : recebi um e-mail uma manhã em Fevereiro de um homem japonês do qual eu nunca tinha ouvido falar, Kazuki Tomita. Ele tem uma pequena editora chamada Windbell, e decidiu escrever-me depois de ele ter tido um sonho (literalmente) que eu e a Bridget St John estávamos em digressão pelo Japão juntos. Quando acordou, ele decidiu fazer com que isso acontecesse e escreveu-me a mim e à Bridget St John, e ambas dissemos que sim. Estou realmente entusiasmada com esta digressão, já que nunca estive no Japão antes, e sou grande admiradora do trabalho da Bridget St John. Também acho que vai ser particularmente interessante porque vai ser uma estranha mistura : uma mulher francesa com 30 anos, uma americana com 60 anos, e um homem japonês todos juntos numa digressão. Também vaio haver dois projectos japoneses a abrir para nós, Kama Aina e Moose Hill. O Kazuki também decidiu disponibilizar o meu último álbum e o EP no Japão de forma a promover a minha música lá, e decidiu combinar os dois numa edição dupla. Estou também bastante entusiasmada com isto, porque acho que vai ser uma boa oportunidade para tentar e encontrar mais ouvintes no Japão, cuja estética tradicional é – creio eu – muito próxima à minha música.

Como é para ti fazer a música que fazes no país onde nasceste, a França?

Bem, até agora, a relação entre a minha música e a França tem sido um pouco estranha : acho que tenho fãs aqui, mas nem sequer perto que no Reino Unido ou nos Estados Unidos por exemplo, e não vendo muitos discos (acho que uma décima parte daquilo que vendo no mundo, o que não é muito se pensares que é o meu país). não sei mesmo qual é a razão – pode ser em parte por causa de um problema de distribuição que a Leaf teve na França há dois anos atrás, e pode também ser devido ao facto de ainda não ter dado muitos concerto aqui, porque quando eu comecei realmente a ter ofertas de concertos na França aconteceu numa altura em que eu estava a ter muitas ofertas de concertos em lugares realmente excitantes, e muitas vezes estes concertos excitantes eram também melhor pagos, por isso a escolha foi fácil para mim. Ou então são apenas os franceses a serem snobs outra vez. [risos]

Existem alguns projectos musicais franceses de que gostes realmente? Como é que vês a música que é feita neste momento na França, além da "chanson française"?

Os meus músicos franceses favoritos são provavelmente a Anne Laplantine, que vive em Berlim, Pierre Bastien, que vive em Roterdão, e Hervé Boghossian, que vive na França e que tem a sua própria editora que se chama List e que também lançou outras coisas em outras editoras europeias. E engraçado porque eu apercebi-me que tanto a Anne como o Pierre lançam os seus discos fora, por isso provavelmente diz alguma coisa acerca da França e pode estar relacionado com aquilo que eu estava a dizer da minha própria situação aqui. A Anne faz canções pop electrónicas barrocas fantásticas, o Pierre tem construído algumas magníficas orquestras mecânicas que tocam música e o Hervé trabalho numa estrutura musical mais minimal, utilizando ao mesmo tempo instrumentos reais e electrónicas. Para ser justo com os músicos franceses, devo dizer que falando no geral, não ouço muita música contemporânea, já que sinto que existem tantas obras-primas do passado para ouvir. Mas e eu tivesse que talvez comparar a música que faço com a música feita na França em geral, acho que não existe muita gente a tentar tocar instrumentos acústicos de uma forma ligeiramente pouco usual como eu faço, eu acho que eles são ora mais tradicionalmente folk/pop ora mais tradicionalmente electrónicos, por isso é provável que seja essa a razão pela qual não tenho relacionamentos próximos com outros músicos franceses.

Tocaste no Porto e em Lisboa no ano passado. O que é que nos podes contar da tua experiência em Portugal?

Adorei absolutamente Portugal e às vezes chego a sentir que me deveria mudar para aí. O meu sentimento foi que Portugal é definitivamente um país do sul em atmosfera, mas mais relaxado e menos barulhento do que a Espanha ou a Itália. Fiquei surpreendido pela vitalidade cultural de tanto Lisboa como o Porto, e simplesmente adorei as duas cidades, especialmente o Porto (e não estou a dizer isto por seres do Porto) por causa dos seus jardins e o passeio ao longo do rio que vai dar ao mar. Também achei as pessoas unanimemente amigáveis no Porto. No que diz respeito aos concertos fiquei mesmo contente com as reacções das pessoas. Tive a sensação que talvez pela tradição do fado, a audiência tem uma apreciação mais elevada da música acústica. Fiquei também muito impressionada pelo facto das pessoas terem comprado imensos discos depois dos concertos: eu estive em países onde os habitantes são mais ricos que os portugueses e eles não compraram quase nada, por isso eu pensei que era óptimo ver que as pessoas se interessavam pela música dos músicos o suficiente para comprar os discos depois dos concertos.

Agora estás de regresso a Portugal para actuar no Festival EME em Palmela. Além do concerto normal vais também actuar com a Naja Orchestra numa performance especial. O que é que nos podes contar acerca disso. O que é que esperas de ambos os concertos?

Não ouvi nenhuma das colaborações anteriores da Naja Orchestra, mas por aquilo que me disseram vou tocar e eles vão samplar-me e o concerto será algo como uma espécie de diálogo entre o que eu tocar e os sons que eles atiram para mim. Estou um pouco ansiosa porque nunca fiz este tipo de coisas, e nunca colaborei com alguém em palco antes sequer, mas também estou ansiosa para que isso aconteça porque acho que é bom ser agitado dos nossos próprios hábitos. Estes dois espectáculos para o festival são também bastante excitantes para mim porque pela primeira vez vou tocar a viola da gamba, e não o violoncelo que é um dos instrumentos que normalmente levo. Para os vossos leitores que não estão muito familiarizados com a viola da gamba, pode-se dizer que é o antepassado do violoncelo – apesar de soarem bastante diferentes, tendo em conta que as cordas da viola são feitas de corda de tripa como oposto ao metal, e tem seis ou sete cordas em vez de quatro, logo sendo mais próximo a uma espécie de guitarra com arco. Desapareceu durante o século XVIII e tem havido um revivalismo desde os anos 70, mas apenas para tocar música renascentista ou barroca. Para mim é o instrumento mais bonito do mundo, já queria toca-la há imenso tempo (desde que tinha 16 anos e vi um filme na TV sobre a vida de Marin Marais, uma das compositoras francesas para a viola mais importantes) e consegui finalmente encontrar uma no início deste ano. Tenho tido lições desde então e vou tocar as minhas primeiras composições no festival, algumas delas vão provavelmente fazer parte do próximo álbum. Também vou utiliza-la como o meu instrumentos principal para improvisar com a Naja Orchestra, já que tem um som tão versátil e parece realmente ajustado para improvisar. E igualmente muito estimulante já que muito poucas pessoas utilizam-na para fazer a sua própria música, por isso é óptimo saber que eu sou uma das pessoas a tentar fazer isto.

Estás já a desenhar então um terceiro disco na tua mente ou na realidade? Como chamarias ao teu novo disco se tivesses que decidir hoje mesmo?

Neste momento está a tornar-se em realidade (comecei a gravar os primeiros esboços este mes), mas tem estado na minha cabeça desde que terminei o meu segundo disco e comecei a ter ideia acerca de como o próximo iria ser. Também tenho quase a certeza que um par de canções que eu toco ao vivo estes dias vai parar ao álbum, mas e daí, nunca posso estar completamente certa de nada até eu sentir que gravei tudo que podia possivelmente estar lá, e depois tenho de escolher entre as melhores peças, que também terão de constituir um todo coerente. Geralmente acabo com mais gravações nas mãos do que aquelas que posso usar no álbum, por isso a fase de escolha é na verdade uma das mais importantes. Geralmente sei que uma canção está certa depois de a ouvir umas cem vezes: se ainda gosto dela e se ainda acho interessante, depois sei que devia estar no álbum. Não quero dizer demasiadas coisas porque as coisas podem (e devem) sempre mudar durante as gravações de um álbum, mas posso dizer-te que vai ser mais composto e vai confiar menos em loops do que os álbuns anteriores. Tenho vindo a querer sair do formato do loop há já algum tempo: gosto mesmo disso e acredito que muitas coisas podem ser feitas com loops, mas isso leva muitas vezes à mesma estrutura de canção, às vezes começa devagarinho, depois constrói-se e constrói-se e depois esvazia-se mais ou menos abruptamente. Acho que o meu segundo disco estava já a dar um passo mais distante em relação aos loops e depois de o acabar comecei a ouvir música barroca e jazz cada vez mais e comecei a desejar fazer canções nas quais a evolução não significasse necessariamente construir. Desde que toco sozinha, é difícil trabalhar dessa forma (especialmente ao vivo – com o computador é tecnicamente fazível, mas não é nada divertido, porque tens que te gravar a ti própria antes, depois tocar outra parte com a primeira gravação). Comecei a tocar clarinete o ano passado, e esse é definitivamente um instrumento que me fez ter a vontade de tocar longos períodos de melodia e isso levou-me a ouvir jazz. É claro que isso não significa que o meu próximo álbum vai soar a jazz, mas acho que vai haver algo do espírito free do jazz em algumas faixas. A outra grande mudança no meu método de trabalho vem de tocar a viola, porque a viola é suposto tocar-se tanto aos acordes como a melodia (o que é impossível com o violoncelo por exemplo, porque é muito difícil fisicamente tocar acordes – nesse aspecto a viola é muito mais como a guitarra). Por isso agora posso pensar mais em termos de composição, mesmo se as bases da composição vêm da improvisação (não consigo compor em papel porque não tenho esse tipo de treino clássico), e tenho ideias mais claras na minha cabeça sobre que estruturas eu quero em determinada canção. É um alívio e um grande entusiasmo para mim estar a mudar a minha forma de trabalhar: acho que um músico tem de tentar renovar regularmente o seu modo de trabalhar, não só para dizer “estou a trabalhar de forma diferente agora”, mas sobretudo porque acho que não há nada pior do que uma pessoa se repetir a si mesma. E não posso responder à tua última questão porque dar títulos é a última coisa que faço. [risos]

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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