DISCOS
Tender Forever
The Soft and the Hardcore
· 21 Jul 2006 · 08:00 ·
Tender Forever
The Soft and the Hardcore
2006
K / Green UFOs / Ananana


Sítios oficiais:
- Tender Forever
- K
- Green UFOs
- Ananana
Tender Forever
The Soft and the Hardcore
2006
K / Green UFOs / Ananana


Sítios oficiais:
- Tender Forever
- K
- Green UFOs
- Ananana
Talvez seja mesmo altura de acabar com a diferenciação que os hipermercados estabelecem entre bebidas espirituais e não-espirituais. Isto porque pode um vinho de colheita vintage Bordéus – numerado e de edição limitada – proporcionar um mais convincente gosto espirituoso que por exemplo um Eristoff, que é produzido em massa e não tem a personalidade do primeiro. Pesa a favor desse argumento a abençoada materialização de alguém capaz de, por si só, colocar o sul de França no mapa do lo-fi de armário. Género menor que, conforme nos actualiza The Soft and the Hardcore, permanece ingenuamente romântico, amplamente confessional, oxigenado por uma natureza intrinsecamente crafty. Ou assim o cultiva a pequena grande Melanie Valera – sob o aliás de Tender Forever – durante os últimos anos alternados entre a Bordéus onde nasceu e a Olympia (no estado de Washington) onde cresceu musicalmente.

As próprias gravações deste aveludado debute foram territorialmente cumpridas à esquerda e direita do Atlântico: em Olympia, incumbiu-se o guru Calvin Johnson – patrão da K - de encapsular o calor e incauta fragilidade que se descobre ao terço exclusivamente acústico do disco, enquanto que a estadia europeia favoreceu a liberdade de movimentos que se escutam às programações rítmicas rústicas e inevitáveis órgãos que a DECO aconselha a crianças abaixo dos 10 anos. Basta porém ter em conta uma noção vaga do legado que edificou a irremediavelmente queer K Records para perceber que não é tarefa fácil ser pertinente como músico associado à cena de Olympia ou sequer fazer jus ao logótipo da label que Kurt Cobain tinha tatuado nas costas. Talvez por isso ou por efeito de espírito de camaradagem, Melanie surge acompanhada por um ensemble de sonho no que toca a notoriedades da K. Aliados como Mikhaela Maricich (actualmente ao comando de The Blow) e Calvin Johnson não são capazes de negar auxílio a uma boa causa lamechas, à semelhança do que acontece no eixo Team Love / Saddle Creek que orquestra o prodígio Conor "Bright Eyes" Oberst.

O trucker hat multi-colorido que usa Melanie só serve mesmo para tapar com a pala a franzina consistência que deixa a descoberto o tradicional swing pinga-amor da K que não conhece forma de cessar a oscilação entre abundância e carência drásticas no que respeita a afecto e a beijinhos trocados sobre a relva. O dilema reflecte-se num disco que não sabe se adoptar a via acústica ou a predilecção por apetrechos de reduzida fidelidade tecnológica, ou tentar cumprir - mesmo que disfuncionalmente - um protótipo de songwriting ou espontaneamente almejar a uma grandiosidade que não se preveria a um disco tão discreto como este (“The Feeling of Love” inclui mesmo glitch maduro e um caudal de graves que não descartaria Dave Sitek dos TV on the Radio).

É sabido que, em circunstâncias tão assumidamente confessionais, quaisquer adicionais 10 minutos de duração implicam reavaliação da capacidade de resposta face ao desgaste da maratona emocional. Apesar de nunca resvalar para uma saturação que o condenasse à indiferença, The Soft and the Hardcore comete a única manobra defensiva ao limitar-se à curta duração de 25 minutos - período suficiente a que o peep-show atraia até si cúmplices ou voyeurs, enlace todos esses em cativeiro e vede o acesso ao seu conteúdo revelador com uma exactidão que provoca adição. Haja coração capaz de sobreviver em estado sólido às três faixas finais e recomenda-se ao seu portador que se aliste numa qualquer associação de dadores de órgãos após falecimento. Apesar de durante grande parte do disco referir-se a um alvo de afecto feminino, Melanie consegue ser perspicaz ao ponto de nem sequer revelar o género quando se despede com um eufórico I want you! / I want you! Yeah!. The Soft and the Hardcore reúne todas as condições para ser um daqueles pequenos milagres capazes de suscitar paixões e ódios em quantidades iguais (um daqueles milagres que se suplica com um tipicamente americano C’mon). Opto pelo primeiro sentimento. Perdoa-me Chan, mas é mais que certo vir a passar o resto do ano embriagado em Bordéus.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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