DISCOS
Takagi Masakatsu
Journal for People
· 23 Jun 2006 · 08:00 ·
Takagi Masakatsu
Journal for People
2006
Car Park / Daisy World


Sítios oficiais:
- Takagi Masakatsu
- Car Park
- Daisy World
Takagi Masakatsu
Journal for People
2006
Car Park / Daisy World


Sítios oficiais:
- Takagi Masakatsu
- Car Park
- Daisy World
Já soa a cliché encarar com uma postura trocista a compulsiva necessidade do turista japonês em fotografar tudo o que se lhe surge à frente. Ou assim acontecia há uns dez anos, quando o comum dos orientais já dispunha da infinita liberdade de manobra que oferece uma máquina fotográfica digital. Quando a direcção da objectiva é completamente aleatória, não custa a crer que um qualquer pombo de Belém se arrisque a ser uma celebridade menor. Na era da abundância digital, os 15 minutos de fama estabelecidos por Andy Warhol passam a abranger o mais insignificante dos animais. Não surpreende isso quando qualquer cidadão pode, se aceitar os sacrifícios que isso implica, obter o direito a uma meteórica passagem pela ribalta televisiva na era pós-Emplastro / Animal. Não deve, contudo, ser o nobre e pacifico visitante japonês a pagar a factura por essa falta de critério. Muito menos assim é se tivermos em conta o historial nipónico de álbuns de viagens onde a cada instante se denota mestria no processo de edição, objectos elaborados com base num percurso geográfico de enriquecimento pessoal a que, na prática, se pode apenas sublinhar algumas passagens representativas. Enquadram-se nesse padrão três trabalhos fascinantes: Journal de Tokyo, crónica estruturada de experimentações várias a cargo do projecto Yuko Nexus6, o infalivelmente enternecedor Hokane, que regista o progresso musical da encantadora Aki Tsuyuko dando a conhecer as pautas que esta percorreu na infância, e Journal For People, que agora reedita a Car Park ao prematuramente rico catálogo do multifacetado esteta e músico Takagi Masakatsu. Curioso é dar conta do meio-termo que representa o terceiro face aos restantes - reparar na naturalidade cândida que o torna consanguíneo de Hokane e no tratamento orientado por loops que confere ao piano de eleição e que o aproxima da estética cíclica de Yuko Nexus6.

Muito mais contemplativo e deslumbrado do que indeciso ou estupidamente pasmado, Journal For People descreve uma travessia transcontinental num disco robusto em conteúdo e num DVD paralelo onde Takagi ensaia exercícios visuais correspondentes a faixas presentes no álbum e a momentos recuperados a catálogo anterior (que, entre os seus capítulos, estabelece laços por meio de peças divididas em 3 ou 4 partes espalhadas por vários lançamentos). Sendo que este formato duplo não é de todo estranho a alguém que já editou pela W+K Tokyo Lab., onde essa prática é regra. Será porventura estranha a inserção de substratos microscópicamente efervescentes aos ouvidos de quem até aqui chegou pela mão dos ventos bem mais descontraídos e convencionalmente chill que soprava um disco como Sail. Journal For People é insular face a esse disco, mas constitui parte determinante no equilíbrio ecológico do mesmo arquipélago que inclui o duplo Coieda ou o EP Eating 2.

Atendamos à bifurcação que divide Journal For People numa metade apenas audio e noutra audio-visual. Essa mesma que representa o mote diferencial de uma mesma sensibilidade permanente: a do criativo que aproveita a mesma perspectiva entusiasticamente fragmentária para tornar intermitentes os tons em “Kettle 1” e expor como slides metralhados as várias formas de um simples verter de água no exercício visual que lhe é siamês. A partir desse encaixe duplo, tudo o que transborda ao testemunho peregrino de Takagi vai sendo alisado e adocicado por uma transparência cuja presença pode ser atribuída a alguma dose de ingenuidade (própria de quem aterra num país que lhe é desconhecido e, acrescente-se, menos presente que no supra-citado Hokane). Depois de obtida a fórmula, procede-se à colagem das pontas mais luminosas a um colorido estelar que, espontaneamente, acaba por reproduzir o mais fielmente possível a simultaneidade de sensações vividas em viagem. Servindo de espécimes a essa radiância multiplamente activa dois pequenos milagres centrados no piano: “Waltz” e “Salida del Sol” que, por si só, valeriam a escuta do disco, e cuja longevidade clássica não seria eclipsada caso viesse a ser confiada ao relicário onde Sakamoto preserva o seu melhor trabalho. E é logicamente impossível estabelecer essa comparação gratuitamente.

Acerca da infame sequência de tortura – em que Mr. Blonde corta à navalhada a orelha de um polícia – que Tarantino filmou para Cães Danados, o próprio realizador revelou que, se for certeira a aplicação da música ao momento exacto, as imagens e o som, tal como o impacto que essa combinação provoca, permanecerão para sempre indissociáveis. E de facto ninguém consegue evitar a conotação violenta que obtém a ligeirinha “Stuck in the Middle With You” em reacção química com a mais atroz projecção mental individual de um momento sangrento – o da orelha decepada - ocultado por um brilhante mise-en-scéne. Journal For People oferece a faca e o queijo, a representação musical de um percurso revelador e parte mais que suficiente do material visual que lhe serve de complemento. Constitui uma diamantina e refinada peça completa a inserir numa obra que desde há muito urge tentar completar.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
RELACIONADO / Takagi Masakatsu