DISCOS
Safety Scissors
Tainted Lunch
· 06 Mai 2006 · 08:00 ·
Safety Scissors
Tainted Lunch
2005
~Scape / Flur


Sítios oficiais:
- ~Scape
- Flur
Safety Scissors
Tainted Lunch
2005
~Scape / Flur


Sítios oficiais:
- ~Scape
- Flur
Será escassa a seriedade que sobra impune a “I Am the Chesse”, o aperitivo inicial do farto e cornucópico Tainted Lunch. Sem oferecer tempo que sirva para colocar o guardanapo sobre o colo, alguém trata de anunciar, num tom messiânico-gastronómico (escutar para crer), que ele próprio é o “queijo”. Num categórico golpe de rins pavloviano, consegue a tal entidade produzir saliva por desfile provocatório de electrónica descomplexadamente lúdica condimentada por um sexto sentido quase funk e servida com a (aparente) ingenuidade eterna de Michel Gondry (cuja estética se daria bem com a infantilidade de Safety Scissors). Quando já se entoam os seus refrões mecanizados sem pedir licença ao embaraço, custa ganhar coragem para arrancar satisfações ao infiltrado excêntrico que mantém a sua melhor pose dandy à mesa de um restaurante bem frequentado (por colaboradores que, a seu tempo, serão citados). Está o caldo entornado.

Sobre Tainted Lunch pode-se também dizer que convida à adopção de um estilo de vida europeu sobre o tipicamente americano. Matthew Patterson Curry pressentiu isso mesmo e abandonou a costa oeste rumo à Meca berlinense. Antecipava-se, portanto, que um tipo que tem Curry (caril) como sobrenome fizesse da sua estadia em Berlim o pretexto ideal para, por contraste com sintética dieta californiana, tecer uma elegia à culinária do centro da Europa. Mais que um qualquer pretexto, parece ser a dominante obsessão a principal responsável pelo diferencial de qualidade entre os dois álbuns conhecidos a Safety Scissors. Quando comparado a este segundo tomo, o primeiro Parts Water parece sofrer de subnutrição (a distinta palete de texturas era bem mais inferior e presentemente digital) e de falta de confiança própria de novato (Curry agora canta, em vez de murmurar à deriva). Perante esta renovação, não surpreenderia, se MPC adoptasse outro pseudónimo para assinar o disco que manipula em chalaça o bom nome do hit universalmente reconhecível dos Soft Cell – “Tainted Love”.

Além disso, parece Tainted Lunch decidido em utilizar como centro de mesa um artificioso e algo descartável glam glitch, que já servia de camaroeiro de tiques cosmopolitas aos Soft Pink Truth por altura da autópsia socialite que era Do You Party?. Como pode então a anomalia glitch assumir um prateado perfil glam? Apresentando-se manipulativa, afirmativamente sedutora (é vê-la fundir-se com um coro quase OutKast em “After Disaster”) e, sobretudo, sorrateiramente sincronizada com as restantes plumas que a adornam. Quem não precisa de responder por esse rol de crimes é o single “Sunlight’s on the Other Side”, viciante flirt que pede emprestada a inspiração de Erlend Øye, metade dos Kings of Convenience, para compor seu refrão e ainda comete o bom senso de o convidar a cantá-lo em uníssono descontraidamente apaixonado.

Assim que chega ao fim o buffet, é legitimo palitar aos dentes todo o caramelo catchy que se entranhou enquanto se sugava o açúcar a "Sunlight's on the Other Side". Com as mãos presas entre o umbigo e o queixo, há-de haver quem afirme com satisfação momentânea:"Agora que já dei conta de todos os petiscos e entradas, venha de lá o prato principal.” É nesse altura que azeda o leite que ainda há pouco era um super-heróico queijo. Porque pode até Tainted Lunch comprovar surpreendentes níveis de produção e a sua eficácia enquanto anedotário (“Amnesia, I Need you to Remind me” é disso elucidativo), mas nunca alcançar uma integridade que faça dele um objecto capaz de sobreviver a um médio prazo - não deixando, ainda assim, de ser infinitamente superior a Parts Water (em termos de maturidade e consistência). Sim, também este é um daqueles discos que deixa a barriga a dar horas. Enquanto vegetariano, não pude deixar de me sentir excluído pela resenha sobre The Books em que o colega de caserna Hélder Gomes anunciava “Pato à Pequim” para toda a gente. Tainted Lunch cede-me o direito à retaliação: beringelas berlinenses recheadas para todos!
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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